Gostava muito de ter sido eu a lembrar-me da frase que dá título a este artigo, mas não fui. “Desconfinem os livros” é o apelo que a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros faz numa campanha de comunicação recente, em que reage à inclusão dos livros na lista de bens que não podem ser vendidos em estabelecimentos abertos ao público por não serem essenciais. “Desconfinar” é a palavra certa, porque, por estes dias, os livros estão de facto confinados. Ainda ontem os vi, no corredor central do supermercado, entre a secção dos cosméticos e a dos enlatados, cobertos por uma capa de plástico e inacessíveis a quem os quisesse levar ou simplesmente folhear.
Dessa lista de bens não essenciais constam ainda artigos de decoração, mobiliário e brinquedos, entre uns quantos outros. A mensagem, no fundo, é a de que mudar o aparador da sala, dar um Lego aos miúdos e comprar o último romance do Raul Minh’alma são coisas que podem esperar. Ou se espera, ou trata-se disso online.
A proibição de venda de livros em estabelecimentos que permanecem abertos ao público, como os supermercados, destina-se a evitar um “desequilíbrio de mercado”, conforme justificou o Governo. A ideia parece ser a de que os supermercados não devem vender livros para evitar que os consumidores, não podendo comprar nas livrarias que agora estão de portas fechadas, os comprem em estabelecimentos que com elas concorrem. É mais ou menos como nas escolas: se uns não têm aulas, os outros também não têm.
É uma medida preocupante por várias razões, mas sobretudo pela incompreensão que revela. Incompreensão, primeiro, sobre o grau de literacia digital e de confiança no comércio electrónico da população portuguesa. Se é verdade que as compras online têm vindo a ganhar adeptos, esses adeptos concentram-se nos maiores centros urbanos. Fora deles, não consta que a compra de livros online seja especialmente popular, sobretudo entre os leitores mais velhos.
Segundo, incompreensão sobre a extensão da cadeia do livro. Aos autores, revisores, designers, paginadores e tradutores pouco importa se o livro se vende numa livraria, num supermercado ou numa bomba de gasolina. O que interessa é que o livro seja vendido. Já basta que os consumidores tenham agora menos dinheiro para gastar em livros do que tinham antes da covid-19 e que as medidas de apoio ao sector sejam escassas. Não é preciso que o Governo dificulte ainda mais a compra de livros.
Terceiro, incompreensão sobre a concorrência no mercado livreiro. Os livros que se vendem nos supermercados podem ser todos ou quase todos encontrados em livrarias. Mas o inverso não é verdade: muitos dos livros que os consumidores procuram nas livrarias não se encontram nas estantes dos supermercados. Ora tentem descobrir o manual de Finanças Públicas ou o caderno de exercícios de História do 7.º ano no vosso supermercado habitual. Posto de outra maneira, os consumidores não deixam de comprar em livrarias ou através dos canais online destas só porque os supermercados vendem livros.
Já aqui escrevi, por alturas do primeiro confinamento, sobre a importância de se criar condições para a subsistência do sector editorial e livreiro. Por entre umas larachas sobre as estantes dos nossos comentadores televisivos, disse então que os livros nos enriquecem o imaginário, alimentam o pensamento e aguçam a análise. É por isso que comprar um livro – seja um romance de cordel, seja alta literatura – não é o mesmo que comprar um aparador para a sala. E é por isso que os livros, ao contrário dos aparadores, devem ser classificados como bens de primeira necessidade. Disse Groucho Marx que “fora os cães, os livros são os melhores amigos do homem; dentro dos cães, está demasiado escuro para ler”. É para que todos possamos confinar em boa companhia que os livros devem poder ser vendidos. Em todo o lado.
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