A reestruturação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras anunciada recentemente é o mote para o psicólogo clínico e forense Mauro Paulino propor, na segunda das suas duas crómicas de janeiro para o Expresso, uma reflexão sobre as práticas de prevenção e intervenção no tráfico de seres humanos
No meio do turbilhão de notícias sobre a pandemia e o iminente colapso do Serviço Nacional de Saúde para a enfrentar, foi apresentada, no dia 14 de janeiro, por Eduardo Cabrita, ministro da Administração Interna, uma proposta de reestruturação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). No que aparenta ser uma maquilhagem política desgarrada das reais exigências e necessidades, pretende-se repartir as funções deste organismo pela Polícia Judiciária, Polícia de Segurança Pública (PSP) e Guarda Nacional Republicana (GNR), sendo criado um novo órgão, o Serviço de Estrangeiros e Asilo (SEA).
As reações não tardaram e o Sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF considera que retirar a investigação criminal ao serviço coloca em causa a segurança dos países da União Europeia e o combate às redes transnacionais de tráfico de seres humanos. É aproveitando precisamente este mote que irei abordar as práticas de prevenção e intervenção no tráfico de seres humanos, refletindo em especial sobre o papel dos psicólogos.
Portugal tem ratificado várias convenções e, simultaneamente, têm surgido diretivas europeias com o objetivo de comprometer os Estados Membros a implementar legislação, a nível interno, de combate ao crime. Desde 2007, foram implementados três Planos Nacionais de Prevenção e Combate ao tráfico de seres humanos, encontrando-se em vigor o IV plano (2018-2021).
Falar deste tema é abordar uma das formas mais graves de violação dos direitos humanos fundamentais, um dos crimes mais nefastos da sociedade contemporânea. Em termos de ação, abrange quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades criminosas. Enquanto meios, consideram-se a violência, o rapto, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, abuso de autoridade e aproveitamento de incapacidade psíquica ou de especial vulnerabilidade.
Trata-se de um crime que vive da opacidade, entre o que é dito (a ameaça concreta que assume diversas formas) e o não dito (a ameaça velada ou indireta, a relação de poder e subjugação).
É uma realidade complexa desenvolvida, quase sempre, por redes de criminalidade organizada que se aproveitam das vulnerabilidades e das fragilidades das pessoas traficadas. Entre as principais causas pode-se mencionar as situações de pobreza, exclusão social e económica, assim como as desigualdades sociais e de oportunidades. Fatores associados à violência de género, a reduzidos níveis de escolaridade, de empoderamento ou informação sobre o crime em específico contribuem significativamente para facilitar angariações fraudulentas para a exploração dessas pessoas.
Numa espécie de escravidão dos tempos modernos, estes processos de vitimação podem assumir vários contornos, nomeadamente tráfico transnacional ou tráfico interno, e exploração para fins sexuais, laborais, da mendicidade forçada ou para a prática de criminalidade, entre outros. Em pleno século XXI, apesar de a realidade atual diferir do modo como o tráfico de seres humanos se concretizou em séculos passados, este assume contornos que têm por base práticas ilegais com séculos de existência.
Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), este fenómeno gera anualmente cerca de 24 mil milhões de euros e o número de vítimas ascende a mais de 2,4 milhões de pessoas.
Se tivermos como base de análise uma investigação publicada em 2017, estima-se que possa afetar 40,3 milhões de pessoas globalmente, com um impacto comparável ao tráfico de armas e de droga, movimentando anualmente cerca de 12 mil milhões de euros, apenas para efeitos de exploração sexual.
Por sua vez, de acordo com o "Global Report on Trafficking in Persons", do United Nations Office on Drugs and Crime, cerca de 53% dos casos destinam-se a exploração sexual e 40% a exploração laboral (maioritariamente, vítimas do sexo masculino), sendo os restantes 7% respeitantes a outras formas de exploração. O mesmo relatório avança que 49% das vítimas sejam mulheres, 21% das raparigas com menos de 21 anos, havendo apenas 18% de homens e 12% de rapazes.
Um eixo que se apresenta fundamental para o combate a este crime é a prevenção dita primária junto da sociedade, em particular dos grupos especialmente vulneráveis, como jovens e desempregados, tendo em conta os fatores de risco que reúnem para se tornarem potenciais vítimas. No que se refere aos jovens, estes constituem-se quer como os futuros sinalizadores e profissionais, quer como os próprios consumidores/clientes de serviços prestados por vítimas.
Estes são alguns dos fatores que sustentam a pertinência e a necessidade de atuação junto destas populações. Para tal, têm sido usadas diversas ferramentas de informação e sensibilização, de que são exemplos as campanhas nacionais ou locais, as ações de formação, a dinamização de conteúdos nas redes sociais, as intervenções de rua, entre outras.
Ainda assim, outro importante eixo de combate ao tráfico de seres humanos passa também por assegurar precisamente o cabal cumprimento das atribuições previstas na Lei Orgânica do SEF. Uma carreira de investigação e fiscalização robusta com os recursos humanos e logísticos adequados para levar a cabo ações de fiscalização em contexto onde a exploração é mais suscetível de ocorrer, seja ela em campos agrícolas, seja num qualquer estabelecimento de diversão noturna. Adicionalmente, ao se retirar o procedimento de asilo da alçada de um órgão de polícia criminal, corre-se o risco de limitar a capacidade de identificar eventuais redes criminosas ou de auxílio à imigração ilegal, através das narrativas dos requerentes de proteção internacional.
Não podemos perder de vista que a atual realidade nacional de crise e até mesmo global, em muito consequência da pandemia, intensifica a instabilidade política e económica, resultando no aumento de desemprego e das situações de pobreza, assim como a descrença relativamente a um futuro promissor. Este cenário é convidativo a ofertas de emprego fraudulentas que se apresentam cada vez mais sedutoras aos desempregados, mesmo que se trate de empregos precários e mal remunerados, mas que para os migrantes podem representar, ainda assim, uma melhoria de vida.
Muito se tem discutido sobre a invisibilidade das vítimas de tráfico de seres humanos e da ocultação desta problemática, em concreto na escassez de investigação, inclusivamente de outros tipos de tráfico menos estudados. Acresce o facto de, não raras vezes, as vítimas não se reconhecerem nesse papel, o desconhecimento da lei, a falta de confiança ou o medo, a barreira linguística ou o temor de represálias contra a família agravam esta dificuldade.
A sinalização de vítimas consiste num processo determinante para a sua identificação, que, na verdade, pode ser realizado por qualquer pessoa ou profissional e operacionaliza-se através da recolha de indícios que poderão apontar para uma eventual situação de tráfico de seres humanos. O trauma experienciado vai influenciar a intensidade das reações agudas das vítimas e o seu sofrimento emocional. Entre as reações habituais, constam reações físicas, como mudanças do sono e apetite, e reações psicológicas, como choque, medo, pensamentos intrusivos, sentimentos de desamparo e perda do sentido de ordem ou justiça no mundo, inclusive medo do futuro. É significativa a prevalência de sintomas psicopatológicos, como ansiedade, depressão e perturbação de stress pós-traumático, e igualmente frequente a manifestação de comportamentos esquivos, hostis ou agressivos, num primeiro contacto.
Enquanto aspeto transversal, refiram-se as competências culturais como especialmente relevantes do ponto de vista da mediação, não só pelo papel que os valores, crenças, hábitos e formas de interação de grupos minoritários podem desempenhar no processo de vitimação, mas também para assegurar o acesso gratuito a intérpretes qualificados.
Quando concluída a etapa de sinalização, será possível prosseguir com as restantes etapas do Sistema de Referenciação Nacional, concretamente a Identificação e Integração, nas quais se ativam serviços de saúde, serviços sociais e justiça. Em todas elas, a presença e intervenção de um profissional da psicologia constitui um contributo indispensável, útil e em conformidade com a defesa integral dos direitos humanos. Exige-se, por isso, um modelo específico para psicólogos de atuação em tráfico de seres humanos ao nível individual, comunitário e global, de forma culturalmente responsiva e pró-ativa, na promoção dos direitos humanos e justiça social.
Um dos principais objetivos no campo interdisciplinar entre a Psicologia e a lei é o uso de princípios e evidências psicológicas, desde a avaliação na seleção de profissionais, na formação inicial e contínua, mas também na avaliação e monitorização devido às múltiplas exigências inerentes à profissão. Para isso precisa-se de visão estratégica sustentada em boas práticas, muitas delas identificadas e estudadas pela área da Psicologia Policial, e não de maquilhagens políticas na tentativa de agradar (ou calar) gregos e troianos.
Não se pode, nem deve, abordar de forma leviana ou com segundos interesses matérias com profundas consequências no sistema de segurança interna, áreas que estão intimamente ligadas à criminalidade organizada transfronteiriça. Pondere-se com o cuidado necessário que determinadas exigências ao não serem executadas por inspetores poderão, a título de exemplo, deixar inquéritos criminais por autuar; redes e fenómenos criminais por identificar; criminosos por responsabilizar; vítimas por auxiliar.
Não se pode, nem deve, querer apagar a relevância do SEF para a segurança interna devido aos atos absolutamente inqualificáveis de alguns cuja culpa será estabelecida em sede de audiência de julgamento. A intervenção do SEF tem sido reconhecida como um serviço de excelência por relevantes agências europeias, como a Frontex (Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira), a Europol, a Eurojust (Agência da União Europeia para a Cooperação Judiciária Penal) e o Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo (EASO).
É que se os inspetores que, atualmente, constituem o SEF são desumanos, ao ponto de levar à sua erradicação, não os devemos querer nem no SEF, nem em qualquer outro órgão de polícia criminal, mesmo tendo equiparação de carreira.
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