Opinião

Uma Constituição em confinamento?

A constitucionalidade da Resolução do Governo de proibir a circulação entre concelhos é questionada pelo advogado Miguel Bettencourt da Câmara, para o qual a restrição a um direito fundamental como este só pode ser decidida depois de declarado o Estado de Emergência

Em 22 de outubro de 2020, o Governo aprovou, em Conselho de Ministros, uma Resolução através da qual se determina “a proibição de circulação entre diferentes concelhos do território continental no período entre as 00h00 de 30 de outubro e as 23h59 de 3 de novembro e que define um conjunto de medidas especiais aplicáveis aos concelhos de Felgueiras, Lousada e Paços de Ferreira no âmbito da situação de calamidade decorrente da pandemia da doença Covid-19 a partir das 00h00 de 23 de outubro”.

Não vamos, aqui, discutir os fundamentos de saúde pública que possam estar na origem da necessidade de proteger os cidadãos, pois a bondade da sua defesa e protecção não estão em causa.

No entanto, o que nos parece questionável e juridicamente muito frágil é que se pretenda, através de uma Resolução do Conselho de Ministros, suspender o exercício de direitos fundamentais – liberdade de circulação entre concelhos – sem que haja uma prévia declaração de estado de emergência pelo Presidente da República, previamente autorizada pela Assembleia da República e ouvido o Governo, conforme previsto no art. 19.º, n.º 1 da nossa Constituição, em articulação com o artigo 134.º, alínea d) e artigo 138.º da CRP.

O ponto juridicamente crucial não é tanto o de saber se a Lei de Bases da Protecção Civil pode servir de fundamento normativo para a proibição de circulação de pessoas entre concelhos, enquanto efeito idêntico ao da criação das cercas sanitárias. Isto é, se aquela lei prevê a possibilidade de criação de cercas sanitárias, a questão não pode passar por deixar entrar pela janela da protecção civil, o que a porta da lei fechou, mas sim saber se essa via escolhida pelo Executivo, com dispensa da iniciativa do Presidente da República e sem a prévia autorização da AR e audição do Governo, é ou não constitucionalmente admissível perante a exigência de uma lei ou decreto-lei devidamente autorizado (art. 18º, n.º2 da CRP).

A restrição a um direito fundamental como este, que se traduz em termos práticos na liberdade de cada um nós se deslocar aos locais onde se encontram sepultados os nossos parentes e pessoas próximas, exige a prévia declaração do estado de emergência, nos termos do artigo 19.º, n.º 1 da CRP e demais normas constitucionalmente aplicáveis.

Assim, a imposição dessa restrição de circulação entre concelhos é proferida numa situação de calamidade, o que suscita as já afloradas questões de inconstitucionalidade orgânica e formal, pois, como já referimos, este tipo de medidas apenas poderia ser aplicado em estado de emergência e nos termos constitucionalmente previstos.

É certo que do lado dos cidadãos existem modos de reacção (de natureza ou carácter urgente, sem prejuízo de outros meios processuais não urgentes, nomeadamente a acção impugnatória e a de responsabilidade civil pública) a este tipo de medidas, seja através de uma intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, seja através de uma providência cautelar. O que resta é saber se a proximidade entre a data de publicação da referida resolução e o início da medida decretada permitirá (ou não) extrair algum efeito útil dos referidos meios processuais de reacção. E, se essa inutilidade dos meios de reacção processual se vier a tornar evidente, estaremos perante um procedimento que, culminando na presumível publicação “tardia” da resolução, além de injusto, dificulta seriamente o acesso em tempo útil à justiça (violação da tutela jurisdicional efectiva – art. 20º da CRP), o que redunda em mais uma inconstitucionalidade por violação do direito a um procedimento e processo equitativo (art. 20º, n.º4 da nossa Constituição e art. 6º da CEDH) a somar às restantes referidas!

Tem, pois, o Presidente da República uma posição privilegiada para promover junto do Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade desta resolução.

Por último, e como já sublinhámos, não questionamos que haja restrições de direitos para salvaguardar a saúde pública e outros valores que se devam sobrepor e que justificam claramente esse mesmo sacrifício. Do que reclamamos não é da restrição de direitos – efeito normal do dia-a-dia de quem vive em sociedade –, mas sim do facto de esse sacrifício ser feito através de medidas administrativas avulsas e de duvidosa constitucionalidade, sobretudo quando em causa está a restrição do núcleo duro de direitos fundamentais.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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