Na passada semana, a OCDE divulgou os dados relativos à Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) disponibilizada, em 2019, pelos Países membros do Comité de Apoio ao Desenvolvimento, de que Portugal faz parte.
No recenseamento então publicado, regista-se uma redução da contribuição nacional que é merecedora de uma explicação que permita sanear qualquer dúvida quanto ao compromisso de Portugal com as parcerias que mantém com um conjunto alargado de países, de sublinhado muito particular no que respeita aos que, em África, têm o Português como língua oficial e Timor-Leste.
O empenho nacional na cooperação para o desenvolvimento é muito mais do que o subproduto gerado por ligações e afinidades históricas ancestrais, ou por imperativos de natureza ética, antes refletindo a especial valia dessa modalidade de relacionamento particular na concretização de objetivos maiores da política externa, quer seja no quadro da densificação da proximidade com os Países parceiros, da diplomacia económica, ou da projeção internacional de Portugal.
Com este apontamento pretende-se dar conta daquele que é o esforço público no domínio da cooperação que, pela sua natureza, a frieza dos números agora divulgados não traduz senão de modo injustamente redutor. Sem desvalorizar o papel da APD e o recuo verificado, importará, sobretudo, avaliar os resultados alcançados no ano de 2019. Para isso, necessário se torna invocar o conjunto dos instrumentos utilizados na concretização dos objetivos da cooperação que não se esgotam na APD e, permito-me acrescentar, são essenciais para, complementando-a e robustecendo-a, melhor responder aos desafios que hoje mais interpelam os Países nossos parceiros.
Voltando aos números da OCDE, a APD portuguesa cifrou-se, em 2019, em 333 milhões de euros (dados ainda preliminares), contra os 349 milhões de euros averbados no ano anterior, o que representa uma quebra global de 5,1%, resultado, sobretudo, da redução na componente bilateral (22%), já que na multilateral se regista um reforço de 6%.
Mas olhemos com detalhe a realidade que aquele número visa representar, para melhor identificarmos o que contribuiu para esse resultado menos positivo da APD bilateral. E quanto a isso, diria que é produto, sobretudo, de fatores exógenos, em particular mudanças verificadas no executivo de alguns dos Países parceiros, com natural vontade de definir novas prioridades, ou no facto de terem chegado ao seu termo programas ou projetos. Num e noutro caso é necessária laboriosa negociação, com a sua cadência própria, entre as instituições públicas nacionais e as dos Países parceiros. Podemos e devemos melhorar estes mecanismos, mas não tenhamos ilusões de que o trabalho conjunto com os nossos parceiros na definição de projetos, de que não prescindimos por sabermos que é essencial ao seu sucesso, sempre introduzirá imponderáveis com reflexo na conclusão do processo negocial.
Outros aspetos de maior tecnicalidade como a redução dos desembolsos das linhas de crédito, a dificuldade na recolha de toda a informação relativa aos recursos públicos disponibilizados a título de APD ou a alteração de regras de reporte introduzida mais recentemente pelo CAD condicionaram o apuramento final transmitido à OCDE.
O cofinanciamento das ONGD’s, apesar de considerado no cálculo da APD, merece alusão autónoma, uma vez que registou, o ano passado, a maior subida de sempre – mais 62% do que no ano anterior – confirmando uma trajetória ascendente que praticamente triplicou os valores transferidos para as organizações da sociedade civil entre 2015 e 2019, materializando uma orientação política, que temos como fundamental, de valorização destes importantes atores da cooperação para o desenvolvimento.
Ainda em 2019, referência à capacidade de reação imediata de Portugal para acorrer à devastação causada pelos ciclones Idai e Kenneth em Moçambique, com uma abordagem multidisciplinar capaz de responder à situação de emergência, mas também a necessidades prementes em matéria de saúde, educação e segurança alimentar, sem esquecer os desafios da recuperação económica, criando-se projetos específicos e reconvertendo mecanismos de financiamento para melhor os adequar à realidade criada. Neste caso, apenas parte do esforço público se encontra refletido na APD de 2019, por força das regras aplicáveis à sua contabilização.
Igualmente excluído da APD está o desempenho da SOFID (a instituição portuguesa para promoção do investimento nos países em desenvolvimento) que assinalou, em 2019, o seu melhor ano de sempre, viabilizando investimentos privados no valor de 62,8 milhões de euros, geradores de 2600 postos de trabalho. Ou as missões de segurança e defesa – elemento distintivo da nossa cooperação e crescentemente visto como essencial para a estabilidade e desenvolvimento dos Países parceiros – que, apesar dos encargos que representam para o erário público, não são consideradas na APD.
Por quanto ficou dito, legitima será a constatação de que, no ano passado, o desempenho global da cooperação portuguesa no domínio bilateral não sofreu impactos negativos, nem do ponto de vista da realização de atividades/projetos, nem tão-pouco dos fluxos financeiros canalizados para os Países parceiros, devendo-se isso também à aposta continuada na angariação de fundos europeus para a realização de projetos, cujo desenho e execução não deixam, por isso, de ser da responsabilidade de Portugal.
Com áreas temáticas tão relevantes como, por exemplo, a consolidação do Estado de Direito, o apoio à melhoria e proximidade dos serviços públicos, a segurança alimentar, a agricultura, a saúde ou a segurança marítima, estes projetos têm constituído valiosíssimo contributo para os Países seus destinatários.
Para termos ideia da importância dos financiamentos associados à sua execução, não contabilizáveis no cálculo da APD, referirei apenas que têm permitido duplicar o orçamento anual da cooperação para o desenvolvimento realizada pelo Camões, I.P.. Em termos globais, o esforço político-diplomático desenvolvido entre 2016 e 2019 saldou-se na captação de projetos valendo no total mais de 261 milhões de euros, dos quais 108 milhões sob alçada direta do Camões, I.P. e outros 13 a executar por ONGD’s portuguesas. Em qualquer destas modalidades, a intervenção de Portugal na identificação de oportunidades e na negociação subsequente não foi apenas uma constante, mas outrossim essencial para assegurar o sucesso do seu desfecho.
Mas não se trata, repito, de depreciar o papel fundamental da APD, apenas invocar a galáxia de instrumentos que intervêm na cooperação e que se constituem decisivos para a realização dos objetivos de desenvolvimento sustentável a ela associados. Essa, aliás, a orientação clara da Agenda 2030 e da Agenda para o Financiamento do Desenvolvimento, adotadas em 2015, num momento especialmente auspicioso para o multilateralismo. Por isso, mal seria se Portugal não tivesse a capacidade de se sintonizar com as novas exigências da cooperação.
Secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação