Opinião

Catalunha: dos condados à democracia

Será que a pretensão dos independentistas tem uma base histórica consistente? E a comparação entre o caso catalão e português, faz algum sentido? Para responder a estas perguntas, é preciso recuar séculos

Nos últimos dias, o espaço público catalão e as ruas de Barcelona voltaram a ser palco do choque entre os independentistas e as autoridades espanholas, configurando um cenário que parece saído do séc. XIX, com as manifestações e confrontos nas ruas da cidade condal a fazerem lembrar a “primavera dos povos” de 1848, ou a comuna de Paris de 1870.

Mas será que a pretensão dos independentistas tem uma base histórica consistente? E a comparação entre o caso catalão e português, faz algum sentido? Para responder a estas perguntas, é preciso recuar séculos, e perceber as linhas gerais da complexa História da Catalunha.

No século VIII, a Península Ibérica era governada na sua quase totalidade pelo Al-Andalus que, a oriente, na zona dos Pirenéus, fazia fronteira com o reino dos francos. Carlos Magno, rei dos francos e imperador germânico, decidiu ocupar parte da zona de fronteira a ocidente dos Pirenéus, tornando-a uma “marca”, ou zona de contenção, formada para evitar possíveis invasões do seu território vindas do Al-Andalus. Esta “marca hispânica” foi o ponto de partida para o desenvolvimento de uma serie de condados, como o de Barcelona, Girona e Urgell, que gozavam de autonomia, mas que eram formalmente vassalos do rei dos francos.

Na segunda metade do séc. X, a monarquia carolíngia, governada pelos descendentes de Carlos Magno, entrou em decadência, o que foi aproveitado pelos diversos condados feudais catalães para aprofundar a sua autonomia. Durante quase 150 anos, os condados catalães tornaram-se independentes de facto, mas nunca constituíram um estado soberano.

Então, o condado de Barcelona ganhou ascendente sobre os demais, graças também a sucessivas alianças matrimoniais, mas, apesar dos atributos de soberania, como a cunhagem de moeda, não conseguiu assumir se como a base de um reino independente. É que, durante a idade média peninsular, um território só conseguia afirmar-se como reino ou império se fosse capaz de conquistar território e expandir-se. Foi o que aconteceu com Portugal, que passou de condado a reino, com as conquistas de D. Afonso Henriques a sul do Mondego. Durante este tempo - sécs X a XII - os condados catalães tiveram capacidade para defender o seu estatuto de marca, ou zona de contenção, mas nunca de conquistar territórios significativos aos muçulmanos.

Por fim, em 1137, mais ou menos pela mesma altura em que Portugal se começava a afirmar como reino, o condado de Barcelona uniu-se ao reino de Aragão. Tal não foi motivado por uma conquista, mas sim por uma aliança matrimonial, entre o conde de Barcelona Ramon Berenguer IV, e a rainha de Aragão, Petronila. Esta união consentida foi regulada pelas capitulaciones de Barbastro, que reconheceram os fueros e a autonomia do condado de Barcelona, bem como a individualidade do que já era um polo cultural e comercial, com indiscutível impacto tanto na península, como no mediterrâneo.

A partir destas capitulaciones, o condado de Barcelona e, por consequência, grande parte do território catalão, foram integrados na coroa de Aragão. Sucessivamente, esta confirmou e aprofundou a autonomia do território, de que é exemplo a criação, no séc. XIV, do principado não soberano e da generalitat da Catalunha.

No ocidente europeu, o início da Idade Moderna – séc. XV – caracterizou-se pela definitiva afirmação dos estados centralizados e pelo fim do feudalismo. Foi o que aconteceu em França, com o último ducado feudal – o da Bretanha – a ser integrado na coroa durante o reinado de Carlos VIII (1483-1498). No espaço peninsular, existiam na altura três reinos com dimensões e força equivalentes: Portugal, Castela e Aragão. Estes dois últimos, uniram-se informalmente no final do séc. XV, pelo casamento da rainha Isabel de Castela e do rei Fernando de Aragão – os reis católicos. Em 1516, o neto de ambos herdou por fim as duas coroas, tornando-se Carlos I, o primeiro rei de Espanha, mais conhecido por Carlos V do Sacro Império.

Então, não fazia sentido comparar a História e a realidade portuguesa com a catalã. No séc. XV, Portugal era um reino soberano que se afirmara pela conquista territorial e pela expansão marítima, enquanto que a Catalunha era um principado não soberano, integrado na coroa de Aragão. A comparação possível, e a que se fazia, era entre Portugal e os outros dois maiores reinos da península: Castela e Aragão.

Durante a dinastia dos Habsburgo de Espanha (1516-1700), a Catalunha continuou a gozar de uma ampla autonomia. O respeito pela diversidade na unidade era uma característica da Coroa de Aragão e, também, da dinastia de Habsburgo. Esta era originária do espaço do Sacro Império, na prática, uma confederação de reinos, ducados, bispados e cidades livres unidos por laços pouco apertados à figura de um imperador. Mais que um movimento “nacionalista”, a rebelião catalã de 1640 foi, sobretudo, fomentada pelo agravamento da carga fiscal; pela política centralizadora do conde duque de Olivares - ao arrepio da prática anterior de respeito pelas autonomias; e por instigação do Cardeal Richelieu, primeiro ministro de França, em guerra com a Espanha desde 1635.

Por paradoxo, seria um rei de origem francesa a condicionar a autonomia que a Catalunha gozava desde a Idade Média. Felipe V, o primeiro rei de Espanha da dinastia de Bourbon (1700-1746), iniciou desde Madrid uma politica centralizadora e uniformizadora, a exemplo do que seu avô, Luís XIV, fizera no território francês. Desde então, a Catalunha tornou-se apenas mais uma região de Espanha, situação que o advento do liberalismo e a primeira constituição espanhola (1812), não vieram modificar.

O “ressurgimento” catalão deu-se apenas na segunda metade do século XIX, e não tanto por questões nacionalistas, como então acontecia noutras zonas da Europa, mas por motivos essencialmente pragmáticos. A exemplo do Pais Basco e da Cantábria, a Catalunha apanhou o comboio da II revolução industrial, ponto de partida para um desenvolvimento económico e para uma dinâmica cultural superiores à maioria das outras regiões espanholas. Na segunda metade do século XIX, a burguesia catalã e a sua elite cultural recuperaram a língua dos seus antepassados, usando-a como fator distintivo.

Esta dinâmica económica e cultural materializou-se politicamente entre 1913-1923, com a Mancomunidad de Cataluña – que foi, depois do inicio do século XVIII, o primeiro reconhecimento pelo estado espanhol das especificidades catalãs – e, sobretudo, em 1932, quando a autonomia do território foi reconhecida pela II República.

Este foi um dos motivos porque a Catalunha foi um bastião dos republicanos na guerra civil opôs estes aos nacionalistas do general Francisco Franco (1936-1939). E este foi também um dos motivos porque Franco, vencedor deste conflito sangrento entre espanhóis, proibiu qualquer manifestação de diversidade na sua Espanha monocromática.

Por fim, seria a democracia a recuperar o estatuto histórico da Catalunha. A constituição de 1978 reconheceu ao território uma ampla autonomia que, desde então, tem vindo a ser sucessivamente aprofundada. Ainda em 2006, a Catalunha foi reconhecida pelo estado espanhol como nacionalidade histórica.

A atual pretensão dos independentistas catalães não tem, pois, um precedente histórico. A Catalunha é um território que teve um impacto decisivo na cultura peninsular e mediterrânica e que, historicamente, tem gozado de uma ampla autonomia, mas nunca foi um estado soberano, pelo menos no sentido que se lhe dá desde o advento dos estados modernos, no século XV. E é essa ampla autonomia que o estado espanhol reconhece, e que tem vindo a aprofundar no enquadramento do seu regime democrático e da unidade do seu território.

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