Opinião

A classe média quer-se saudável

A classe média está sob pressão e em declínio, aponta o mais recente relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Em três décadas, a proporção de famílias consideradas neste grupo social baixou de 64% para 61%. Portugal segue esta tendência e o futuro não se augura promissor. O fosso entre ricos e pobres acentuou-se e a classe média portuguesa é das que mais é constituída por famílias em risco de recuar para a classe baixa. Cerca de 69% das famílias portuguesas da classe média “vive com a corda no pescoço”, ou seja, em constante dificuldade para fazer face a despesas não planeadas. Na OCDE, em média, 47% das famílias enfrenta tais dificuldades. Mais, quase duas em cada oito (23.8%) das famílias portuguesas estão sobre-endividadas por comparação a uma em cada oito (13.1%) na média da OCDE.

O declínio da classe média foi observado pela primeira vez nos EUA, no Reino Unido, na Austrália, no Canadá e na Nova Zelândia. Nesses países, o debate sobre a crescente desigualdade ente ricos e pobres começou a partir dos anos 70. A maioria dos países europeus registou um aumento geral da disparidade de rendimento mais tarde, o que se explica pela a existência, nestes países, de um mercado de trabalho mais regulado, de uma negociação coletiva de salários e políticas públicas em prol do bem-estar social. Quando a desigualdade começou a crescer na Europa, a maioria dos estudos académicos e o debate público concentrou-se sobretudo no aumento da pobreza e nas consequências de uma liberalização do mercado de trabalho na desigualdade de rendimento, mas não se deu particular importância aos efeitos na classe média. Se há umas décadas, o crescente trabalho precário e a pobreza não eram vistos como ameaças para a classe média, hoje, a perceção é outra.

Os empregos da classe média têm vindo a desaparecer devido aos avanços tecnológicos tendenciosos ligados à globalização e uma crescente setorização da economia. Por um lado, o desenvolvimento tecnológico exige maiores níveis de qualificação dos trabalhadores, mas globalização ameaça empregos com menos qualificações. Por outro, o crescimento do setor terciário acabou com muitos empregos no setor industrial, de certa forma qualificados, com remuneração média e que tinham benefícios de previdência social. Estes empregos têm sido substituídos por empregos muito precários ou por empregos bastante qualificados. Não só a polarização do emprego contribuiu para o declínio da classe média, também a alteração dos processos organizacionais nas empresas teve um papel relevante. Os novos métodos de trabalho e as novas tecnologias de monitorização do trabalho se, por um lado, fomentaram aumentos de produtividade, por outro, levaram a uma redução do poder negocial e organizacional da classe trabalhadora, piorando a situação laboral nos empregos intermédios.

A piores condições no trabalho e a mais baixas remunerações soma-se as despesas acrescidas com bens e serviços básicos, destacando-se a habitação. Os preços das casas têm vindo a aumentar, crescendo três vezes mais rápido do que o rendimento médio das famílias nas últimas duas décadas.

Uma classe média grande e financeiramente saudável é fundamental para o crescimento económico e para a estabilidade política.

A desigualdade crescente entre ricos e pobres e uma classe média que tem vindo progressivamente a diminuir e a viver com mais constrangimentos financeiros causa graves problemas para a economia. Primeiro, a classe média é a grande dinamizadora do crescimento económico por via

do consumo. Enquanto que a classe mais rica, se receber mais rendimento, em geral poupa ou investe, a classe média, reage a aumentos de rendimento, consumindo mais. Se o consumo da classe média diminuir, a produção baixa, o desemprego aumenta, as receitas fiscais diminuem causando uma série de constrangimentos económicos e sociais. Entra-se, assim, num ciclo de crescente desigualdade de rendimento, que é difícil de quebrar se não existirem medidas públicas que o contrariem. Segundo, uma classe média vulnerável está muito exposta a choques externos na economia. Como tem uma grande percentagem de despesas fixas, qualquer choque no seu rendimento disponível cria um sufoco financeiro que é muitas vezes compensado com o recurso ao crédito imediato, a elevadas taxas juros. No momento em que não é mais possível pagar a dívida, o acesso ao crédito esgota-se e o risco de perder a habitação é iminente. Terceiro, à medida que o rendimento da classe mais rica aumenta, à custa da diminuição do rendimento da classe média, acresce a tendência para as instituições financeiras competirem entre elas para atraírem clientes extremamente ricos. Para tal, assumem investimentos de grande risco, pondo em causa a estabilidade do sistema financeiro, que, quando falha, pesa sobretudo no orçamento da classe média.

Mais, uma classe média em sufoco financeiro está também associada a problemas sociais como o aumento a criminalidade, e problemas de saúde, como a mortalidade infantil, a obesidade, problemas do foro psiquiátrico e, em geral, a uma mais baixa expectativa de vida.

Por último, há que não esquecer que a vulnerabilidade da classe média conduz ao enfraquecimento do sistema democrático. Com o aumento da desigualdade de rendimento e a concentração de riqueza nas mãos de uma minoria, torna-se mais fácil para esta minoria influenciar a classe política para agir a seu favor. Assim sendo, é mais difícil responder aos problemas da desigualdade através de políticas fiscais que são desfavoráveis à classe mais rica. Consequentemente, verifica-se a desmotivação da classe média para defender medidas públicas necessárias e o seu alheamento do sistema político.

Dado que uma classe média financeiramente saudável é um requisito fundamental para o crescimento económico e para a sustentabilidade do sistema democrático, e se o mercado falha neste sentido, não há muito a fazer senão aceitar que a política fiscal deve corrigir o problema. No entanto, há que ressaltar que a redistribuição feita pelos governos tem tido, tradicionalmente, um impacto positivo no primeiro quantil de rendimento, ou seja nas classes mais pobres. É preciso uma política fiscal e um conjunto de políticas públicas que estejam particularmente dirigidas à classe média e que diminuam efetivamente a desigualdade de rendimento, para o bem de todos nós.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate