Se fosse deputado e tivesse de resumir os meus argumentos para decidir como votaria a questão da eutanásia, amanhã, a um só, fá-lo-ia através do paralelismo que me parece possível fazer com a questão do salário mínimo (e de outros direitos irrenunciáveis de trabalhadores ou consumidores).
Em dúvida, defendo normalmente a posição que confere mais liberdade e aceita a autonomia individual como um bem e um valor a preservar. No entanto, há matérias em que aceito – peço até – que o Estado limite as possibilidades de as pessoas escolherem, as “proteja”, seja “paternalista”, e restrinja as possibilidades de escolha de todos, para proteger muitos ou alguns.
Um dos temas em que isto é provavelmente mais pacífico é a questão de definir um salário mínimo abaixo do qual ninguém pode trabalhar. Reparem, o que o Estado diz e define é que mesmo que alguém queira muito, mesmo que esteja “em sofrimento” e desempregado, não pode aceitar trabalhar por menos do que um determinado valor. De igual forma, não posso entrar em negócios usurários, por mais que queira pagar um juro muito elevado a quem me empreste muito dinheiro já e sem se preocupar muito sobre se e quando vou pagar, nem posso renunciar antecipadamente a heranças que posso vir a receber ou fazer contratos em que aceito que, se as coisas correrem mal, não vou recorrer aos tribunais.
Em todos estes casos negamos a “liberdade de escolher”, seja escolher pagar “demais” por empréstimos ou escolher negar-me a mim próprio a proteção dos tribunais no futuro.
No caso do salário mínimo, proíbo as pessoas de trabalhar por pouco não por achar que, individual e concretamente, cada pessoa não tem inteligência ou capacidade de definir e aceitar trabalhar pelo valor que quiser, mas por reconhecer que, em termos gerais, de comunidade, vai haver situações de exploração. Situações em que pessoas aceitam, por necessidade ou qualquer tipo de pressão (sem desenvolver mais o tema), trabalhar abaixo de um valor que determinamos como “mínimo” pensando desde logo num referencial de “dignidade da pessoa humana” que associamos àquele valor (e que muitas vezes ainda assim repugna, quando pensamos numa família a viver com tão pouco).
Acredito que, no caso da eutanásia, estamos, também, numa destas situações. Mantendo o esforço inicial de me limitar a um argumento apenas contra a eutanásia, aceitemos que há pessoas concretas em sofrimento insuportável com uma vontade verdadeira, esclarecida e repetida de morrer e que pedem aos médicos que as acompanham ajuda para esse ato, pedindo que as matem porque não o conseguem fazer sozinhas.
Não consigo olhar para essas pessoas e não ver, próximas delas, outras pessoas a pedir para morrer que são condicionadas a fazer esse pedido: desde logo porque não querem sobrecarregar os familiares, seja pressionados direta ou indireta, consciente ou inconscientemente, por eles, seja até mesmo só por “altruísmo”. Pessoas preocupadas com os filhos, netos ou comunidades que estão a vê-los sofrer, a gastar o seu tempo, a sacrificar carreiras, a gastar dinheiro ou energias a ver, cuidar e acompanhar o seu doente. Ou idosos sozinhos que não têm ninguém próximo (num país onde mais de 100 mil jovens emigram por ano, isso acontece até contra aquela que seria a vontade das famílias), pessoas desesperadas pela maneira como souberam da doença, deprimidas ou entregues ao triste “fado” português. É a pensar em todas essas pessoas desanimadas e condicionadas que votaria contra qualquer sistema que permita instituir nos nossos hospitais, lares e casas mecanismos que sirvam para matar os nossos doentes (de forma “assistida” ou “institucionalizada”).
Regressando à lógica do argumento inicial, ao fazer isto, posso estar a sacrificar ou limitar vontades verdadeiras, informadas e livres de alguns que pedem para morrer para proteger aqueles que são de alguma forma condicionados a isso (pelas famílias ou cuidadores, “cansados” de acompanhar o doente)? Sim. E faço-o também de forma esclarecida. Com a mesma base de quem condena ao desemprego vários para garantir um salário mínimo – não só porque há “patrões” que efetivamente não “conseguem” pagar acima de determinado valor, mas também porque, mesmo “conseguindo”, se com menos se pudesse contratar mais pessoas, mais pessoas seriam trabalhadoras, ainda que muitas e pobres… e já me estou a perder e não quero aqui adiantar muito a defesa de um salário mínimo (que defendo), nem sequer propriamente da proibição da eutanásia (que defendo, como tentei demonstrar, com a mesma lógica de argumentos). Votar “contra a eutanásia” não é, nesta perspetiva, votar contra a liberdade ou autonomia daqueles que pedem para morrer completamente livres (conceito que me custa a conceber, mas que também não quero desenvolver aqui). Este voto contra é, na realidade, um voto de proteção de todos os condicionados que vejo a serem atingidos por esta decisão. É um tipo de proteção que não quero que o Estado perca em nome de um “direito a morrer” (bastante discutível, se pensarmos no investimento que o mesmo Estado faz – e deve fazer – na prevenção dos suicídios e nos meios que disponibiliza para tentar que quem se vai atirar de um prédio ou ponte não se atire mesmo).
E sim, com este argumento, tento fugir a outros que me parecem mais discutíveis, como a controvérsia sobre a legitimidade de deputados votarem sobre medidas que não constavam dos seus programas eleitorais. Mal ou bem, acredito no parlamentarismo, na autonomia dos que elegemos para nos representar não como porta-vozes de documentos, mas como primus inter pares que votam e têm de votar no que lhes parece melhor para os seus eleitores. Ou o argumento da falta de debate amplo e esclarecido, que me parece sempre um ideal utópico e uma forma de adiar as discussões que temos de fazer nas arenas em que vivemos. Sinto que, apesar de tudo, muito se tem escrito e falado sobre a eutanásia (em ambos os lados com pessoas bem-intencionadas e inteligentes e… outras menos), entre casamentos reais, futebóis, corrupções menores ou maiores, entre outras distrações mais ou menos relevantes dos nossos dias. É certo que não se deu grande relevo à decisão do Parlamento finlandês a chumbar medidas semelhantes ou do Senado americano, em temas próximos, a votar pelo direito dos doentes a escolherem ser submetidos a medicamentos experimentais quando se esgotarem outras alternativas. Mas, no ponto em que estamos, tudo isso são ferramentas para os nossos 230 deputados à Assembleia da República decidirem bem.
É a eles que me dirijo neste parágrafo final. Parece-me que há mais argumentos para defender o voto contra a eutanásia no próximo dia 29 de maio, mas ainda não consegui ultrapassar este que me parece determinante – valorizo a liberdade de todos pedirem a morte ao ponto de aceitar que se matem uns quantos condicionados ou limitados? Ou aceito que estou a proteger alguns mais fracos (ainda que a custo de outros mais fracos), como quando prevejo – ou subo – salários mínimos, protejo consumidores ou impeço tantas e tantas renúncias antecipadas a direitos? A liberdade é absoluta? Então porque é que não posso aceitar trabalhar por 579 euros/mês? Levando o argumento ao extremo: eu votaria sempre contra a pena de morte, não só por considerar que é uma resposta inadequada, mas por, conhecendo os falíveis sistemas humanos, admitir que iria haver casos em que se matavam inocentes. De igual forma, votaria contra a eutanásia, por não conseguir imaginar um sistema (muito menos os agora propostos) que me garanta que não vamos matar alguém condicionado ou limitado. E se, com base nesses condicionamentos presumidos, protejo tantas vezes os mais fracos, aqui teria, tenho, de fazer o mesmo.
* Assistente Convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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