“Bebé, isso não tem discussão!” A frase inflamada vinha da mesa atrás de mim, no restaurante onde jantava. Ignorei. Estava entusiasmado a conversar com uma amiga, que vive atualmente numa outra cidade europeia, e acabara de regressar a Lisboa para uma temporada.
A Lixoboa
Esta amiga contou-me que está com vontade de regressar de vez, para voltar a estar perto da família, dos amigos, da sua cultura, mas mostrou-se desalentada com o lixo, o desmazelo nas ruas, os canteiros públicos descuidados, plantados com beatas de cigarros, garrafas de vidro e “uma espécie de bonsais mirrados e mijados”. Em suma, “um nojo”.
Falei-lhe que vêm aí novas autárquicas e uma hipótese de mudança, já que a disputa entre os dois principais candidatos, Carlos Moedas vs Alexandra Leitão com a coligação de esquerda, começa a ficar renhida.
De acordo com a última sondagem Expresso/SIC, realizada pelo ICS/ISCTE, a percepção da maioria vai nesta linha: Lisboa está pior no acesso à habitação, segurança, limpeza das ruas e trânsito.
A amiga queixava-se também dos espaços comerciais cada vez mais descaracterizados da Lisbolândia, assim como dos preços das casas cada vez mais estratosféricos desde que, nos últimos anos, os imigrantes de países com mais poder de compra - os ‘expats’ - se mudaram em força para a capital, atraídos pelo sol, o mar, os preços atrativos e os benefícios fiscais, acabando por inflacionar o mercado imobiliário.
Por isso, o seu plano é a ida para uma cidade mais pacata do país, a uma hora e tal de Lisboa, para escapar desta voragem e ter mais espaço e sossego nos seus dias.
Dois pontos de vista…
Passado um bocado, voltei a ouvir a mesmíssima frase condescendente a bater-me na nuca. “Não bebé, isso não tem discussão!”
Foi no momento em que esta minha amiga se dirigiu à casa de banho, que decidi prestar mais atenção às vozes atrás de mim.
— “Lisboa era feia, suja, velha e agora está ‘nice’. Não vou estar a discutir contigo. Podemos não gostar, mas o alojamento local pôs Lisboa muito mais bonita. Por isso, os estrangeiros com ‘guito’ querem vir para cá viver e passar férias. Olha, por exemplo, o Miradouro da Graça, aquilo era horrível”
— “A vista não mudou. Sempre foi linda.”
— “Bebé, não tem discussão. Agora tem mais esplanadas. Já não está ao abandono. Agora sim atrai toda a gente.”
— “Para mim era um lugar muito mais bonito antes de ser um spot de ‘selfies’.”
— “Bebé, aquilo era feio. Nem dava para apreciar a vista. Nem vou discutir isso contigo. A Graça agora é que tem graça. Lisboa está muito mais ‘nice’, ya. Está mais moderna, toda a gente sabe disso. Podemos não gostar do que esta mudança fez aos preços, mas bebé, é a vida. Os estrangeiros renovaram a cidade.”
Olhei finalmente para trás. Dois homens de meia idade discutiam a sua cidade nestes termos. Sorri e voltei à conversa com a minha amiga.
Gafanhotos e andorinhas
Inevitavelmente esta discussão que escutei fez-me lembrar a reflexão da britânica Alex Holder, a viver desde 2019 em Lisboa, e que assinou há semanas um texto no The Guardian.
Como tantos outros, Alex mudou-se de Londres para a capital do fado e das sardinhas em busca do sol, de um certo estilo de vida e da tão atrativa isenção fiscal.
Mas, à medida que as tensões começaram a aumentar de tom com os moradores locais, por sentirem na pele e no bolso as repentinas mudanças na cidade, Alex começou a questionar-se se pessoas como ela viraram uma praga maligna, a causar mais dano do que vantagem.
Como uma nuvem de gafanhotos que chega de outras paragens para devorar e secar toda a tenra plantação.
“‘Há uma arrogância na forma como se movimentam pela cidade’: será que chegou a hora de nómadas digitais como eu deixarem Lisboa?”
Tal como aconteceu com Alex, a ficha caiu a muitos outros ‘expats’ que acabaram por partir como andorinhas para outras primaveras fiscais.O peso na consciência destes nómadas cria-me algumas questões.
Claro que estas comunidades com muito mais poder de compra, e privilégios, quando se mudam em massa para uma cidade de um país em que os locais ganham bastante menos, vão criar inevitavelmente desequilíbrios e anticorpos.
Não estou certo que a solução seja que eles partam de novo em massa para outros prados.
Está na hora destes ex pat, new pat, ou i'm sorry pat devolverem também algo à cidade, contribuírem para o lugar que os acolheu, como uma troca mais justa, saudável, equilibrada. Até para fazerem mais parte dela, ajudando realmente na melhoria dos seus problemas, criando soluções.
Como? Com voluntariado, bolsas, associações, trabalho comunitário, investimento no comércio tradicional e na cultura portuguesa.
Um certo deslumbramento
Em todo o caso o problema não foi criado por eles. Mas quem os atraiu em massa com um ‘Welcome to Lisbon’ a letras douradas.
Há muito que o poder tuga anda deslumbrado com os estrangeiros ricos, fascinado com a ideia que o que vem de fora é que é bom, mais chique, mais evoluído, que dá status, pedigree e dinheiro.
Uma ideia danada e daninha que tem levado o Governo português a dar vistos gold e isenções fiscais em barda, sem acautelar a cultura local e as condições de vida dos portugueses na cidade. Os números não mentem.
O que dizem os números
Se por um lado o preço das casas em Portugal teve o maior aumento da UE no início de 2025(16.3%), com a crescente procura de morada dos ‘expats’, por outro sabe-se que há atualmente 115 mil estrangeiros a pagar entre 10% e 20% de IRS em Portugal.
Em média, cada um destes residentes, que usufruem do estatuto de Residente Não Habitual (RNH) poupou 11 mil euros por ano em 2023. Um regime de benefícios que tem a duração de dez anos.
E se a discussão sobre o bom e o mau desta nova Lisboa divide opiniões, é cada vez mais evidente a insuportável gentrificação, a criar um nível de vida cada vez mais proibitivo para os portugueses, a empurrar cada vez mais lisboetas para outras paragens, e a começar a ser um desconforto para os próprios nómadas digitais.
A Lisboa dos rykos
Em suma, ao que parece, a capital portuguesa importou não só os tuk tuks da Índia, como o seu sistema de castas:
Senão veja-se: Há agora a Lisboa dos portugueses, de bolsos remediados a morarem longe, a dos imigrantes pobres tratados como lixo pelo atual Governo, e a dos estrangeiros rykos. Assim, com Y e com K, que rima com o mundo das crypto e o lifestyle das Kardashians.
Faz lembrar um fado antigo imortalizado por Amália, que cantava assim: “Lisboa, não sejas francesa, com toda a certeza não vais ser feliz…”
CONVERSEI EM PODCAST COM…RITA CABAÇO
É uma das atrizes portuguesas mais interessantes, versáteis e talentosas. Se num dado trabalho nos comove, noutro leva-nos quase a deslocar o maxilar de tanto rirmos com o nível de absurdo, ridículo e hilário que atinge nas cenas de humor.
Exemplo disso, é a participação de Rita Cabaço na série “Ruído”, de Bruno Nogueira, na RTP, que a revelou ao país como grande atriz de comédia. Mas não só. No cinema e no teatro já foi distinguida pela sua interpretação em papéis dramáticos.
É o caso do Prémio Sophia que recebeu este ano pela sua interpretação da personagem Milene no filme “O vento assobiando nas gruas”, realizado pela cineasta suíça Jeanne Waltz, a partir do romance homónimo de Lídia Jorge.
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É tudo por agora. Temos encontro marcado no próximo sábado. Até lá, desejo uma boa semana, com muito do que gosta!
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