A Beleza das Pequenas Coisas

Uma casa na aldeia do tamanho da paz

Há muito que a canção “Casa no Campo”, da brilhante Elis Regina, mora na minha cabeça.

Onde eu possa ficar do tamanho da paz. E tenha somente a certeza dos limites do corpo e nada mais. (...) Onde eu possa plantar meus amigos, meus discos e livros, e nada mais.”

E acrescento: Onde eu possa viver mais ‘offline’, e cada vez mais ligado às coisas simples, num tempo mais lento, ao ritmo das minhas vontades e nada mais. Mas a ideia ainda não tem raízes para crescer.

Toda a minha vida profissional e social pulsa na cidade. E eu sou (ainda) um homem da cidade. Um homem na cidade… a sonhar com o campo.

E foi neste movimento, a meio do festival Bons Sons, em Cem Soldos - sobre o qual escrevi na newsletter anterior - que me cruzei com a Ana Pereira.

Conhecia-a há anos enquanto diretora de comunicação do Teatro São Luiz, em Lisboa. Bastante simpática, culta e competente, fomos mantendo uma excelente relação profissional.

Ana vive a canção de Elis

Ana contou-me em tempos que estava inacreditavelmente feliz por se ter mudado para o campo.

E no Bons Sons explicou-me como vive atualmente na aldeia de Cardosas, em Arruda dos Vinhos, que fica a meia hora de carro de Lisboa. Por lá reconstruiu uma casa em ruínas, numa propriedade de 7000 m2. Ana está a viver a canção de Elis.

"Como Um Dia de Domingo" com a atriz Beatriz Brás, atividade da "Mãe Jerico", nas Cardosas. Foto de Tiago Pereira

O projeto “Mãe Jerico”

O seu sorriso abriu mais ainda quando me falou do projeto cultural que está a plantar no pátio da sua nova propriedade, uma ideia de aproximação ao mundo rural, a que chamou de “Mãe Jerico”.

O nome foi-lhe dado por amigos, a lembrar os santos populares e bailaricos na cidade onde Ana nasceu e cresceu.

E, nesse trocadilho, juntou-se a ideia de maternidade com o ‘jerico’, ou burro. Um animal de que Ana gosta muito desde miúda “por ser teimoso” - como a própria assume ser - além de “amável e compincha”.

E assim a “Mãe Jerico” passou a ser um pátio aberto a todas as pessoas da aldeia e do país, com diversas oficinas: de olaria, de pão de massa mãe no forno a lenha, de petiscos silvestres, de adufe, de dança, etc.

Isto além dos saraus culturais nas tardes domingueiras a que chamou “Como um dia de domingo” (nome inspirado na belíssima canção de Gal Costa).

Encontros que têm contado com a presença de ilustres atores e atrizes, onde a palavra, a música, a poesia e as histórias se revelam em momentos únicos. Tudo a incluir pão e vinho sobre a mesa, numa casa portuguesa, com certeza.

As atrizes Carla Galvão e Beatriz Brás já lá atuaram. E na ‘reentré’ os atores Romeu Costa (15 de Setembro) e Bárbara Branco (22 de setembro) lá estarão a animar o pátio com a sua arte.

A mudança depois da dor

Gostei tanto desta história que quis saber mais. Como é que se deu essa grande mudança?

Bem sabemos que, tantas vezes, só após uma valente pancada da vida decidimos finalmente olhar para dentro de nós. Foi o que aconteceu com Ana. O gatilho que originou a mudança tem contornos bastante trágicos.

Ana perdeu um grande amigo nos incêndios de Pedrógão Grande, em 2017. Uma tragédia terrível que vitimou também toda a família desse amigo. Um horror que marcou o país e que fez no total 66 mortos e mais de 250 feridos.

Foi essa dor sem tamanho - um incêndio que deflagrou dentro de si e de muita gente - que levou Ana a refletir profundamente sobre o sentido da vida, a despedir-se do emprego e a forjar a mudança.

“Não queria mais ser escrava do trabalho, queria fazer as minhas escolhas e decidir exatamente como os meus dias iriam ser.”

Durante semanas, meses, anos, Ana meteu-se no carro e visitou as aldeias e localidades mais perto de Lisboa em busca da casa de sonho onde pudesse recordar as memórias felizes de infância na aldeia dos avós, em Rio de Moinhos, Penafiel.

Lembranças dos verões intermináveis, das mesas compridas onde a família se juntava durante horas, sem pressa, as tias a cozinhar, o forno a lenha a crepitar, os pés e as pernas a esmagarem uvas nas vindimas, a intensa liberdade vivida com os primos a roubar fruta da vizinha ou a nadar no rio Douro.

A premissa para a nova morada que procurava era não se afastar muito da capital, por causa dos pais que estão mais velhos e a precisar mais de si.

A primeira foto de Ana Pereira junto à casa dos seus sonhos, que encontrou em ruínas. Foto de Anna Czernin
©Anna Czernin

O encontro com a casa de sonho

No final de 2019 deu-se o achado. Através da internet, Ana Pereira encontrou o anúncio de uma casa quase em ruínas em Cardosas - uma das paredes tinha desabado - com uma vista soberba para a serra de Montejunto e para o vale de Arruda dos Vinhos, num terreno imenso, a bom preço.

Ana recorda-se que no dia em que a foi visitar, estava “um arco íris inacreditável”, bem desenhado, a acompanhar toda a casa. Achou que era um sinal.

E avançou logo com a escritura, usando as poupanças que fizera com a venda de um apartamento.

Por sorte, o negócio foi feito antes do país fechar-se em casa no primeiro confinamento da pandemia. Uma altura em que quem podia se virou para o campo e o preço das casas disparou e nunca mais voltou ao que era.

Imagem do processo das obras da nova casa, na aldeia das Cardosas, Arruda dos Vinhos. Foto de Ana Pereira

Obras com ‘trolhas holísticos”

Depois, seguiu-se um ano e meio de obras, felizmente sem grandes contratempos.

E apesar de ser mais dispendioso, a produtora decidiu que em vez de demolir tudo, iria reconstruir e respeitar a arquitetura da casa.

Um trabalho de relojoaria e resiliência que envolveu o que Ana chamou de “trolhas holísticos que viraram amigos” e que contou com a colaboração de um atelier de arquitetos, sediado em Montemor-o-Novo, que se dedica à bio-construção.

A reconstrução da casa, na aldeia das Cardosas, a Arruda dos Vinhos. Foto de Ana Pereira

Dez mil euros angariados

E mais, Ana criou um crowdfunding a pedir ajuda à comunidade para angariar €10.000 para a reconstrução de um forno de lenha e de um pombal da casa.

Em troca, oferecia as experiências mais variadas no seu terreno, após a construção. (Pedindo donativos de €10 a €250). Para sua surpresa atingiu o objetivo integral, e percebeu que contava com uma grande rede de amigos e pessoas cúmplices que apoiavam este seu projeto pessoal, mas também comunitário.

“A força da comunidade tem-me feito vibrar. Para mim foi inequívoco que apesar de viver ali sozinha, tenho mesmo uma rede inacreditável de pessoas que estão comigo. E que se sentem inspiradas com a minha mudança.”

Instante de uma das edições de "Como Um dia De Domingo". No público pode ver-se ao fundo a cantora Manuela Azevedo e o músico Helder Gonçalves dos Clã, a atriz Custódia Gallego e o ator Romeu Costa.
@patcividanes @antropositivo

Uma casa com as portas abertas

Desde dezembro de 2022, Ana mudou-se para a casa nova com as suas gatas, a Alface e a Alfarroba. E passou a ter a porta aberta para quem vier por bem e com gosto pela experiência do encontro.

Imagem feita na fase das obras, a revelar a vista desta casa na aldeia das Cardosas, em Arruda dos Vinhos

A casa de Ana ficou um espanto, e a tal parede que tinha desabado, deu lugar a uma enorme janela com uma vista postal para o vale encantado de Arruda dos Vinhos.

Ana dá conta que este seu projeto comunitário, a “Mãe Jerico”, ainda não é sustentável, porque demora a habituar as gentes locais a pagar por atividades lúdicas ou culturais, assim como a dar a conhecer o projeto e convencer as pessoas de Lisboa a guiarem meia hora para usufruírem dos ares do campo.

Quem lá vai é recompensado com momentos únicos, bons petiscos, boa pinga, oficinas jeitosas e saraus de música e poesia. Mas tudo leva o seu tempo e Ana orgulha-se de já ter conquistado a confiança das pessoas da região.

De momento, Ana ganha a vida como produtora de eventos musicais de uma empresa americana e o milagre das videochamadas fazem-na estar em todo o lado do mundo. Sem precisar de sair da sua aldeia, e os seus dias passaram a ser maiores e ao ritmo do campo.

Instante de uma das edições de "Como Um Dia de Domingo", pela Mãe Jerico. Foto de Raquel Nascimento

E esta é uma das lições mais valiosas que Ana aprendeu com esta mudança para o mundo rural. Aprendeu a desacelerar. E, acima de tudo, a sentir o tempo do campo.

As árvores e as plantas demoram a crescer e os resultados não são imediatos. Levam o tempo que têm de levar. “Cheguei demasiado apressadinha.”

Ao contrário da fantasia capitalista, que nos quer convencer que é sempre possível apressar tudo, as árvores, os animais e as pessoas, para se obter mais lucro. E daí as preocupantes crises ambientais e os ‘burnouts’, ou esgotamentos,a epidemia laboral do século XXI. Mas não confundir com a ideia que quem vive no campo, anda de papo para o ar.

“Antes era mais burguesa, tinha quem me limpasse a casa e tudo. Aqui tenho que limpar tudo sozinha e tratar da minha mini agrofloresta, sobre a qual ainda percebo muito pouco. O que exige esforço, dedicação e muito trabalho. O lirismo de que a vida no campo é só descansar é um grande disparate. Não pode haver preguiça por cá. Estou a tornar-me uma pessoa mais forte, com mais músculos, menos burguesa, mais capaz de fazer coisas sozinha.”, esclarece Ana que afirma que a sua casa superou o sonho, com espaço suficiente para fazer coisas que agitem a região e o país.

No terreno da nova casa de Ana Pereira a Mãe Jerico anima culturalmente a aldeia de Cardosas

Em breve, Ana anseia ter dois burros de Miranda que estarão na base dum projeto que juntará os mais velhos e as crianças, pensa organizar festas de aniversário com jogos tradicionais, receber quem lá queira dormir, e dinamizar outros tantos eventos culturais para esta zona rural onde, como em todo o interior do país, ainda chega muito pouca coisa.

Do verbo construir

Sempre que Ana Pereira está com as energias mais em baixo, com a bateria do coração descarregada, regressa ao álbum de fotografias do processo de reconstrução desta casa 'abensonhada'. Chamou ao álbum “do verbo construir”, para recordar o que já passou até aqui chegar e voltar a ganhar embalo para continuar a imaginar o futuro daquele lugar do tamanho da paz.

Estou certo que há muitas mais histórias no país como a de Ana. Mas quis partilhar convosco esta. Talvez vos inspire. Em setembro vou querer visitá-la. E vocês?

CONVERSEI EM PODCAST COM…

Bastidores da conversa com o realizador Marco Martins no podcast "A Beleza das Pequenas Coisas"
Matilde Fieschi

É um dos criadores mais relevantes da nossa ficção e há muito que leva aos palcos de teatro e ao grande ecrã as histórias das pessoas que não têm voz. Autor de filmes como “Alice”, “São Jorge” ou, o mais recente, ­“Great Yarmouth — Provisional Figures”, as suas obras partem de muita pesquisa e recolha documental antes de serem filmadas ou encenadas.

E, nesse processo, passou a ter o hábito de trabalhar também com ‘não atores’, que contam as suas vidas ou as da sua comunidade. Como aconteceu nas suas últimas peças, “Pêndulo”, num elenco feito com trabalhadoras imigrantes precárias, e “Blooming”, representado por crian­ças institucionalizadas.

Num confronto entre arte e vida, vida e arte. Ouçam-no aqui!


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E aqui deixo a minha página de Instagram:@bernardo_mendonca para seguirem o que ando a fazer.

É tudo por agora. Temos encontro marcado aqui no próximo sábado. Bom fim de semana, boas escutas e boas leituras!

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