Há uma semana estive no meu festival de música preferido. O mais português, o mais genuíno e o mais carismático. Falo do festival Bons Sons, na aldeia de Cem Soldos, concelho de Tomar.
Esta foi a 12ª edição (realizada entre 7 e 11 de agosto) de uma festa comunitária, numa aldeia em movimento, com 18 anos de vida, a celebrar a música e a cultura portuguesa, num festival que mistura público de várias gerações, gente da aldeia e da(s) cidade(s), e que não está tomado pelo espírito das ‘selfies’, das marcas, do pimba (que tem o seu lugar, mas não aqui), do ir só para ser visto, e que vem provar que nem só o que bate nos tops lá fora, vindo do estrangeiro, é que é bom e enche festivais.
Viver a aldeia
Estou para aqui a falar com tanta propriedade, mas só conheci este festival há dois anos, depois de um casal amigo me ter convencido a ir, e fiquei logo tomado pelo gosto de “viver a aldeia” no Bons Sons, que tem o lema solidário “todos ajudam todos.”
O ano passado não houve evento, porque a aldeia fechou para obras. Mas este ano o Bons Sons regressou como espaço de todos os encontros. Um manifesto político de que a cultura deve mesmo ser acessível para todas as pessoas, de todas as idades e geografias, do litoral ao interior.
E, tal como da última vez, saí inspirado, renovado, e com novas referências musicais do que de melhor se anda a fazer musicalmente no país.
Organizado desde 2006 pelo Sport Club Operário de Cem Soldos (SCOCS), o Bons Sons começou por ser bienal e, a partir de 2014, passou a realizar-se todos os anos, sempre como uma plataforma de divulgação de música portuguesa, onde é possível descobrir projectos emergentes e reencontrar músicos consagrados.
Tradição e futuro
A tradição e a memória a par com o presente e o futuro da música portuguesa numa aldeia em que todos os anos, durante uma semana em agosto, só é possível entrar com bilhete - na forma de pulseira, que pode ser carregada com dinheiro para consumo no recinto.
Importa dar conta que o fundador do Bons Sons é Luís Sousa Ferreira (atual adjunto da direcção artística do Teatro Nacional D. Maria II) que foi diretor artístico deste festival até 2019 e que nele deixou um cunho inspirador, único e digno de aplauso.
Num país onde o interior é ainda tão desertificado, em que as aldeias e as suas populações são esquecidas - e em que mais de metade dos portugueses não consegue indicar um projeto português que tenha beneficiado de fundos europeus - não é coisa pouca a criação deste festival que colocou a aldeia de Cem Soldos no mapa do mundo, a ajudar a desmontar preconceitos não só sobre a música e cultura nacional, mas também sobre as aldeias portuguesas, aqui numa forma mais humanizada e integrada.
Desta vez vibrei em especial com as atuações das bandas Cara de Espelho, Expresso Transatlântico e adorei conhecer Emmy Curl.
A acutilância dos Cara de Espelho
Assistir ao vivo aos Cara de Espelho foi uma verdadeira emoção. Eles são um feliz encontro entre alguns dos nomes que marcaram a música portuguesa nos últimos anos: Deolinda, Ornatos Violeta, Gaiteiros de Lisboa, A Naifa, entre outros.
Com uma identidade sonora e poética que vai buscar muito à música tradicional portuguesa, e à acutilância dos seus poetas, tem olhos postos num futuro que se quer crítico e interventivo, com as letras aguçadas e brilhantes de Pedro da Silva Martins, as construções de instrumentos de Carlos Guerreiro, as guitarras de Luís J Martins, as percussões de Sérgio Nascimento e a voz, a pujança e o carisma de Maria Antónia Mendes.
Sugiro que comecem por ouvir o “Corridinho Português”, o “Político Antropófago”, o “Paraíso Fiscal” e… “As Varejeiras”. Sobre certas figuras da política, e não só, que se alimentam da miséria e da trampa. Varejeiras cretinas e chatas como a potassa. Deixo-vos um excerto da letra:
Fomentam o asco, a náusea e o nojo
Só a miséria lhes traz opulência
Por isso é que esfregam as patas com gozo
Se alguém as enxota, decidem zunir
Dos homens que riem da má sorte delas
E no fim são elas que dizem a rir
'Todos sabereis à mesmíssima
Merda!'
em qual de vós é que ela vai poisar?”
Os vibrantes Expresso Transatlântico
O concerto do projeto Expresso Transatlântico no anfiteatro da aldeia (Palco Zeca Afonso) foi outro momento marcante e não deu para assistir sentado, porque o som pedia dança e anca e pé mais solto.
O repertório deles é de muito bom gosto, assinado pelos irmãos Gaspar Varela e Sebastião Varela e Rafael Matos.
Entre as influências da tradição portuguesa e as sonoridades globais contemporâneas este trio vibrante cria uma paisagem musical de uma Lisboa cosmopolita em que cabe lá dentro o fado tradicional, o rock, o blues, o funaná, o samba e todas as influências de uma Lisboa misturada de gentes e culturas.
Em 2023, a banda lançou o primeiro álbum “Ressaca Bailada”, que podem ouvir nas plataformas digitais, mas ao vivo é outra fruta. Leia-se música. Fiquem de olho neles, ouçam-nos ao vivo, e arriscam-se a ver Gaspar Varela, exímio músico de guitarra portuguesa, a surfar a audiência ao melhor estilo de ‘crowd surfing’. Aqui podem ouvir a conversa que tive com ele há duas semanas.
A boa surpresa de Emmy Curl
Não posso deixar de falar da boa surpresa que foi para mim conhecer e ouvir ao vivo a música de Emmy Curl. Que na voz soa aqui e ali a Lena D'Água, mas que na verdade tem uma identidade própria, que vai buscar inspirações à tradição.
Nascida e criada nas altas montanhas de Vila Real, Emmy ressuscita nas suas músicas as antigas melodias do folclore transmontano e celta “num ato de amor para com o património cultural português.”
E, neste festival, apresentou o recente disco “Pastoral” (2024) que envolve da melhor forma a tradição com batidas eletrónicas e sintetizadores modernos.
Não ouvi, com pena
Como cheguei a meio desta edição, perdi algumas atuações que gostava de ter visto e ouvido como o artista transdisciplinar e autodidata Vaiapraia, a Femme Falafel, vencedora da edição de 2023 do Festival Termómetro, ou o espetáculo “Quis Saber Quem Sou”, um concerto teatral que revisita as canções da revolução, encenado por Pedro Penim. Assisti a este último há meses no Teatro São Luiz, mas que ao que consta teve outro impacto e emoção no Bons Sons.
Houve outras escolhas na programação que gostei menos, mas a qualidade deste evento mantém-se ímpar e vibrante.
Em suma, a festa fez-se durante quatro dias, entre 43 concertos, 32 espetáculos e atividades paralelas realizadas por cerca de 200 artistas, além de outros concertos inesperados nas ruas da aldeia e de 30 concertos espontâneos no Palco Garagem.
Contas feitas, a aldeia recebeu de braços abertos e música no peito 33.500 visitantes, além de atividades de dança, cinema, histórias encenadas, Burros de Miranda, percursos artísticos e oficinas, numa edição marcada pelos 50 anos do 25 de Abril, transversal a todo o cartaz.
De notar que nas ruas de Cem Soldos ficaram inscritas homenagens a Sara Tavares (que deu um concerto, em 2018), Fausto (concerto em 2010) e Armando Carvalhêda, que teve uma carreira ligada à rádio e fez inúmeras emissões da Antena 1, diretamente do Bons Sons.
‘Glamping’, o real barrete
Deixo uma pequena crítica, alheia ao festival, mas que vale a nota. Apesar do parque de campismo ser gratuito para o festival (e ter boa fama), tem sido disponibilizado nos últimos anos, por uma empresa externa, o serviço de ‘Glamping’. Ou seja, tendas já montadas que prometem boas condições e grande conforto.
Mas foi um real barrete que enfiei na tola. Além de bastante caro - ao preço de uma ‘suíte Deluxe’ num hotel de 5 estrelas em Tomar - as condições deixaram a desejar.
As tendas estavam ao sol, o que resultava numa sauna logo pela manhã. Faltou água, porque o caudal da região e as infraestruturas não estavam preparados para tanta gente, e o responsável pela coisa - chamemos-lhe “o senhor Glamping” - não esteve ao nível do Festival que sabe receber bem.
E eu sou a prova disso, porque há dois anos fui extremamente bem recebido ”no sótão da Daniela”, figura popular e simpática da aldeia - que ainda não tive o prazer de conhecer, mas que através de amigos, me deixou lá ficar gratuitamente, com o tal espírito da aldeia “toda a gente ajuda toda a gente”.
Desta vez tive menos sorte, marquei a ida em cima da hora, o dito sótão estava cheio, assim como os hotéis de Tomar, que têm ótimas condições.
Mas esse foi um detalhe sem muita importância, nestes dias de boa música, bons reencontros e abraços e mergulhos maravilhosos no rio.
Tenho até outras histórias inspiradoras para partilhar, que partiram de alguns desses reencontros, e que têm ocupado a minha cabeça desde então. Mas isso fica para eu contar na próxima newsletter, porque esta já vai longa.
Última nota: Se visitarem Tomar não deixem de almoçar ou jantar na Casa das Ratas & Casa Matreno, um restaurante com muitas histórias, algumas bem antigas, marginais ou revolucionárias, e que continua a ser um bom destino para comer bem, e ser bem recebido, sem ser preciso ‘vender um rim’ na hora de pagar a conta.
Desta vez, deliciei-me com um prato de migas de bacalhau, e rematei com uma mousse de chocolate das bem boas.
Quem está à frente da casa é o simpático João Nunes, que além de excelente anfitrião é um enólogo experimentado, que me deu a experimentar um vinho rosé da sua colheita. E, no final, houve o bom som de um brinde - com o João e a malta da mesa do lado - a prometer um regresso.
CONVERSEI EM PODCAST COM… CATARINA FURTADO
Há mais de 30 anos que Catarina Furtado é uma das apresentadoras mais interessantes e populares da televisão portuguesa. E cedo provou ter mais predicados além da evidente beleza e excelência na comunicação.
Desde 2000 é embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), um convite de Kofi Annan para angariar verbas e ajuda humanitária destinada a mulheres e jovens de países mais pobres e vulneráveis.
E, em 2012, ergueu a associação Corações com Coroa, que se dedica a projetos de empoderamento de raparigas e mulheres em situações de vulnerabilidade, risco ou pobreza.
Catarina afirma que nunca teve um grande amor pela televisão, mas sim pelas pessoas. E que é esse o amor que nos salva. Ouçam-na aqui.
BELEZAS, se quiserem dar-me o vosso feedback, deixar comentários, convites, sugestões culturais, lançamentos, ideias e temas para tratar enviem-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com
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É tudo por agora. Temos encontro marcado aqui no próximo sábado. Bom fim de semana, boas escutas e boas leituras!
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