Newsletter Expresso Curto

A gamela, o insulto a toda a gente decente e as mulheres das nossas vidas

A gamela, o insulto a toda a gente decente e as mulheres das nossas vidas

Germano Oliveira

Editor online

Foi há dez anos, combinámos passar o dia juntos: pequeno-almoço no Majestic, esse clássico, uma visita ao Dragão, essa inevitabilidade, e muita atividade política, o verdadeiro pretexto para aquele dia em que nos íamos conhecer - eu estava em vantagem para o encontro, já sabia coisas dela e ela nada de mim, e na verdade isso era irrelevante porque aquilo era unicamente sobre ela. Conheci Elisa Ferreira em 2009, esqueci-me da data exata mas a pesquisa de notícias no Google diz-me que foi a 2 de outubro, nunca mais nos falámos entretanto e eu continuo em vantagem, sei ainda mais coisas sobre ela e você que me lê também: Elisa Ferreira vai ser comissária europeia, não se sabe exatamente de quê mas António Costa projeta uma pasta boa, e a propósito disso recordei-me disto, do encontro em que Elisa Ferreira me deu acesso livre a um dia na luta pela Câmara do Porto.

Era ano de autárquicas e ela permitiu-me o que o adversário dela recusou: o jornal onde eu trabalhava há 10 anos queria reportagens dentro da campanha dos principais candidatos, com a independente apoiada pelo PS foi tudo irrepreensível e por isso possível, com o rival Rui Rio foi tudo inacessível e consequentemente impossível. A circunstância do meu encontro com ela era a ideal, tinha a candidata a falar para mim no dia em que todos queriam falar com ela - na tarde de 1 de outubro Elisa Ferreira disse assim, estava em todas as notícias: “Autárquicas/Porto: ‘Estou disposta a perder a gamela de Bruxelas’”, o arquivo online do Expresso ainda guarda aqui um breve relato. Ela era eurodeputada em funções e candidata ao Porto e a tese dela era esta, a citação é da época: “É uma grande vantagem ter alguém que não vem para a Câmara porque quer protagonismo ou porque quer uma gamela, eu perco uma gamela [em Bruxelas] para vir para o Porto por amor à cidade”. Rio aproveitou para atacar, disse que “gostava de saber o que é que os deputados europeus dos diversos partidos entendem daquilo que me parece ser a opinião da senhora eurodeputada” sobre as funções em Bruxelas, Paulo Rangel alinhou, considerava que “gamela” era termo “ofensivo da dignidade da função” de eurodeputado, Elisa Ferreira desvalorizou mais tarde, defendia que a gamela era um assunto estafado, mas o caso teve implicações na campanha, ela perdeu e continuou em Bruxelas, e 10 anos depois Rui Rio aproveita para elogiar, “Elisa Ferreira é uma boa escolha [para comissária europeia]” porque “tem conhecimento suficiente para desempenhar bem o lugar”, Paulo Rangel continua a alinhar, "saúdo a escolha de Elisa Ferreira para comissária - experiente, competente e com rede europeia”, Elisa Ferreira já não precisa de desvalorizar porque a sua nomeação é decisão elogiada e a política portuguesa até nos providencia algo maduro na interação destes protagonistas: o mérito contínuo ainda vale mais que o demérito momentâneo.

UM INSULTO A TODA A GENTE DECENTE
Jair Messias Bolsonaro tem 64 anos e é casado com Michelle Bolsonaro, 37 anos: no mundo dos adultos, o casamento e a idade de ambos são assunto da intimidade deles, mas Jair Messias Bolsonaro fez de Michelle e dos anos que os separam um incidente impróprio de um chefe de Estado e um insulto às mulheres todas e aos homens decentes. Lê-se aqui: “No final de semana passada, Jair Bolsonaro apoiou uma publicação ofensiva no Facebook contra a mulher de Macron que consistia numa montagem com fotos dos dois em que seus seguidores afirmaram que o presidente francês tinha inveja do brasileiro porque ele tinha uma esposa mais jovem. Brigitte Macron tem 66 anos, 24 a mais que Emmanuel Macron, que tem 42 anos. Já Michelle Bolsonaro, esposa do presidente brasileiro, tem 37 anos e é 27 anos mais jovem que o marido, que tem 64 anos”. Recomendo que abra este artigo da SIC Notícias, veja o vídeo a meio do texto em que Macron defende a sua condição de marido, de presidente e a dignidade da mulher com a qual se casou, e depois leia isto, que cito parcialmente: “O assunto de Brigitte Macron é simbólico, poucos dias depois de Rosângela Moro ter publicado no seu Instagram uma foto do jantar que preparara para o marido, acompanhada da seguinte legenda: ‘Mesa posta. Esperando o Ministro da Justiça chegar ao lar (...) Sorry feministas (...)’. Tanta pobreza de espírito em tão poucas palavras. Tanta falta de noção do ridículo. E tanto medo de que tudo isso sejam novos sinais de um projecto mais amplo de ‘medievalização’ das mulheres no Brasil. Quando Bolsonaro acha que é humilhante partilhar a vida com uma mulher mais velha revela que no seu modo de ver o mundo há poucas diferenças entre uma mulher e um carro: quanto mais novos, reluzentes e funcionais, melhor. Um homem bem-sucedido, poderoso, compra carros com zero quilómetros e mulheres mais jovens. Ambos são coisas que existem para lhe dar prazer. Coisas que compra porque pode”. Bolsonaro ofendeu toda a gente decente e, devido a um amuo, ofende agora quem luta para apagar o que arde na Amazónia: o G7 disponibilizou €18 milhões para ajudar no combate aos incêndios e o presidente do Brasil só aceita o dinheiro se Macron “retirar os insultos”. A ironia: Bolsonaro sente-se insultado.

OUTRAS NOTÍCIAS
. Fundamental ler o alerta da Ordem dos Médicos neste artigo: “‘Uma indústria de morte?’ Exposição no Coliseu de Lisboa associa a psiquiatria ao Holocausto e ao racismo

. Esfumou-se o efeito G7: “Sinais de pânico nos mercados. Cotação do ouro em euros em máximo histórico e inversão das taxas de juro nos EUA

. Otimista irritante? “Centeno: Portugal está agora ‘melhor dotado’ para uma crise do que em 2008

. Prazo para uma solução termina hoje: “Itália. Partido Democrático admite Governo liderado por Conte

. Luta pela “liberdade de imprensa”: “Santana Lopes explica porque o Aliança invadiu a sede da ERC

. Ação conjunta da PJ e da Guardia Civil: “Detidos em Espanha suspeitos de assalto e tentativa de homicídio na Lourinhã

. Cuidado com os adiantamentos: “Valores para pagar reservas de hotéis estão sujeitos a IVA em caso de cancelamento

. “Procura-se assassino! Não o entreguem às autoridades”: “Ministério Público abre inquérito-crime a Tweet de Mário Machado

. Grande entrevista da Tribuna: “‘Vim para Portugal porque o clima de agressão no Brasil aumentou. É por isso que um personagem como Bolsonaro tem esse destaque’”

. Mais uma carta de antologia: “Nick Cave recorda o dia em que PJ Harvey lhe ligou a acabar tudo: ‘Fiquei tão espantado que quase deixava cair a seringa’”

FRASES
“Bolsonaro não inventou a pólvora. A sua inspiração foi Donald Trump. Todos os dias o Presidente dos Estados Unidos cria uma polémica nova. Umas sérias, outras não. Umas chocantes, outras patéticas. Quando a coisa o começa a atingir de alguma forma, muda para outra ou recua. Mas a regra é produzir o máximo de ruído, sobrepor polémicas umas nas outras, para que a sua cacofonia leve a uma cacofonia dos seus opositores, que diariamente se indignam com coisas diferentes, sem conseguir ter foco na oposição que lhe fazem.” Daniel Oliveira, no Expresso Diário

“O elogio do primeiro-ministro ao PCP tem outra leitura. Não é um estado de alma. É uma estratégia, aliás explícita: apresentar o PCP como um partido acessível e manejável, cordato e orientável. Fá-lo por duas razões também evidentes. A primeira é friamente instrumental, sugerindo um contraste com o Bloco, que seria rebelde. A segunda é criar uma ponte com o eleitorado do PCP, ou pelo menos limitar a sua área de expansão potencial. Essa estratégia foi prosseguida meticulosamente ao longo do último ano, nas negociações do Orçamento, nos debates quinzenais, até na questão da Lei de Bases da Saúde quando, com algum descaramento, o Governo assegurava (falsamente, ao que se sabe) que tinha o acordo do PCP para incluir na lei as parcerias público-privado. Não foi um arroubo na entrevista ao Expresso, tem pelo menos um ano que esta manobra é prosseguida meticulosamente.” Francisco Louçã, no Expresso Diário

“Vai estar tudo em causa no PCP, até o lugar do secretário-geral. O PS até pode declarar que tem aqui o seu parceiro preferencial, mas dificilmente terá um sorriso para a troca.” Ricardo Costa, no Expresso Diário

“Porque é que Portugal está hoje incomparavelmente melhor dotado do ponto de vista económico e financeiro, em particular das finanças públicas, mas também das empresas e das famílias, do que estava em 2008? A nossa posição orçamental, finalmente, atingiu o equilíbrio, ou seja, temos neste momento um défice público praticamente nulo e isso dá-nos a margem para deixar aquilo que são os efeitos automáticos que uma crise traz ao saldo orçamental sem ter de fazer medidas punitivas no momento de recessão.” Mário Centeno, ministro das Finanças

O QUE EU ANDO A LER

Às vezes lembro-me dela e dele, ensinaram-me muito e confundiram-me tanto, amamos e somos amados com estas contradições. Ela e ele discutiam bastante, eram viciados em magoarem-se, houve um dia em que ela partiu uma broa na cabeça dele, humilhou-o desse modo e quando o insultou depois: ela sabia palavrões e ele teve vergonha dele e dela e deles e daquilo, havia gente a ver além de mim, foi num tempo em que eu era criança a ser introduzida às alucinações adultas, e então ele saiu dali, fugiu e perdeu a discussão, e ela continuou onde estava, ficou e perdeu também, eu vi tudo e perdi coisas diferentes das deles, a começar por certa inocência. Aprendi com aquela e outras cóleras dela e aquele e outros vexames dele alguns factos sobre a resiliência das mulheres e a incompreensão dos homens, fui-sou desorientado por elas como fui-sou desconfiado deles, e tenho concluído que o melhor que há nelas é inalcançável pelo melhor que há neles.

Cresci com mulheres como aquela, faziam assim com os homens nas vidas delas: cozinhavam-lhes os jantares, esfregavam-lhes a louça, tratavam-lhes da roupa, enxugavam-lhes o chão, engomavam-lhes as camisas, mudavam-lhes os lençóis, cuidavam-lhes do lixo, limpavam-lhes os móveis, enchiam-lhes a despensa, lavavam-lhes as retretes, era desta e de outras maneiras em que elas pareciam fazer sempre mais e eles cada vez menos, não é caso único no passado de muitos nós e no presente de demasiados nós, basta um caso para ser de mais, eu também sou culpado, talvez sejamos todos.

Cresci com mulheres como aquela, exigiam assim dos homens nas vidas delas: gratidão, respeito, educação, reconhecimento, decência, consideração, lealdade, bondade, firmeza, não reclamavam igualdade e aprendi mais tarde que também não exigiam prazer, eram mulheres feitas de substantivos nobres mas com vidas submissas, mulheres que aceitavam condições que mulheres e homens antes delas tinham tornado convenções, e por isso elas estavam a ensinar-me involuntariamente a ser um homem como eles em vez de ser um homem como elas.

Cresci com mulheres como aquela, reagiam assim aos homens nas vidas delas: se eles se irritavam elas enfureciam-se, se eles amuavam elas desprezavam-nos, se eles gritavam elas rugiam, aquelas mulheres submissas nos costumes domésticos domesticavam os homens no costume de discutir, elas seriam péssimos defesas centrais mas ótimos pontas de lança, eram tão incapazes de defender os seus interesses como capazes de atacar os desinteresses deles - elas tinham a prerrogativa de dizer tudo porque faziam tudo e eu aprendi com elas o dever de não silenciar o que penso por mais desequilibrada que a relação de poder possa ser.

Recordo estas mulheres, os seus feitos e defeitos, porque a Elena Ferrante tem um livro de crónicas em que numa escreve assim, o título é “As Odiosas”:

“Sei que não há mulher que não faça um esforço enorme, exasperante, para chegar ao fim de cada dia. Na miséria ou no desafogo, ignorantes ou cultas, belas ou feias, famosas e desconhecidas, casadas ou solteiras, trabalhadoras ou desempregadas, mães ou sem filhos, rebeldes ou obedientes, todas somos marcadas em profundidade por um modo de estar no mundo que, até mesmo quando o reivindicamos como nosso, tem a raiz envenenada por milénios de dominação masculina. (...) Tudo, completamente tudo, foi codificado em função das necessidades masculinas, até o nosso vestuário íntimo, as práticas sexuais, a maternidade. Devemos ser mulheres segundo os papéis e modalidades que fazem felizes os homens, mas devemos ao mesmo tempo concorrer com eles, competir com eles nos lugares públicos, sendo como os homens e melhor do que eles, e tendo sobretudo o cuidado de os não os ofendermos. Uma pessoa jovem, de quem gosto muito, disse-me: com os homens é sempre um problema, tive de aprender a não me exceder. Com o que queria dizer que se treinara a não ser demasiado bela, demasiado inteligente, demasiado combativa, demasiado irónica, demasiado apaixonada, demasiado solícita, demasiado independente, demasiado generosa, demasiado agressiva, demasiado simpática. O ‘demasiado’ de uma mulher produz violentas reações masculinas e, além disso, a inimizade de outras mulheres que são quotidianamente obrigadas a disputar as migalhas dos homens. O ‘demasiado’ dos homens, em contrapartida, gera admiração e lugares de comando. A consequência é que a força feminina não só é sufocada como, para não perturbar a paz, se sufoca a si própria. Ainda hoje, depois de um século de feminismo, não conseguimos ser nós próprias até ao fim, não nos pertencemos. Os nossos defeitos, as nossas maldades, os nossos crimes, as nossas qualidades, o nosso prazer, a nossa própria linguagem, inscrevem-se docilmente nas hierarquias do masculino, são punidos ou louvados segundo códigos que nos pertencem muito pouco e que por isso nos consomem. É uma condição em que é fácil tornarmo-nos odiosas a nós próprias. (...) É por isso que me sinto próxima de todas as mulheres e ora por isto, ora por aquilo, reconheço-me tanto nas melhores como nas piores. É possível, dizem-me algumas vezes, que não conheças nenhuma que seja uma merda? Conheço, sem dúvida (...). Mas, todas as contas feitas, sinto-me seja como for do lado delas”.

A Cristina Margato já escreveu aqui no Expresso sobre “A Invenção Ocasional”, o livro da Ferrante, e disse tão bem e achei tão bom que o comprei no mesmo dia em que o artigo saiu, já li “As Odiosas” para amigos e já as reli para mim, há ali factos que vi e outros que hei ver, uma “raiz envenenada por milénios de dominação masculina” provoca danos permanentes e resistentes, e a cada releitura lembrei-me do homem que levou com a broa na cabeça, ele que foi o primeiro homem que depois vi a fazer as coisas que as mulheres faziam. Sei que não é suficiente para se estar devidamente do lado delas mas é um começo, apesar de tão distante do fim em que “As Odiosas” se tornam “As Triunfantes”.

Tenha um bom dia.

EXPRESSO
EXPRESSO ECONOMIA
EXPRESSO DIÁRIO
TRIBUNA
PODCASTS EXPRESSO
MULTIMÉDIA EXPRESSO
NEWSLETTERS EXPRESSO
BLITZ
VIDA EXTRA
BOA CAMA BOA MESA

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: goliveira@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate