Expresso Livros

Mrs. Dalloway foi ela mesma comprar as flores. E felizmente voltou

Não é em vão que Jorge Luís Borges confessou, numa aula proferida na Universidade de Belgrano, em Buenos Aires, que embora a releitura tenha como pressuposto a leitura, sempre lhe interessou menos ler do que reler. Há o ato primeiro da descoberta e aquele que se segue, se lá se quiser voltar, de reaprender um texto sabendo para onde vai e para onde nos levou, aceitando que, desta vez, nos possa conduzir para outro lugar. De férias noutros lugares, decidi entrar em casas já percorridas. Voltei ao maravilhoso começo cheio de promessas que Virginia Woolf escreveu em 1925 - “Mrs. Dalloway disse que iria ela mesma comprar as flores” - graças a uma reedição de “Mrs Dalloway” publicada pela Penguin Clássicos.

Há tantos livros - tantos. E escolheríamos tão poucos para nos acompanhar numa longa viagem. Regressei a uma outra obra-prima de Woolf - “Orlando”, relançada pela Livros do Brasil – para repetir a admiração sentida perante a sua metamorfose: “e com isso Orlando despertou. Espreguiçou-se. Levantou-se. Ficou de pé, completamente despido na nossa frente, enquanto as trombetas rugiam Verdade! Verdade! Verdade! E não podemos deixar de confessar: era mulher.”

Um livro ‘antigo’ impôs-se-me na bagagem: os “Dias Exemplares” de Michael Cunningham, publicado em 2005 pela Gradiva, três novelas cujo chão fértil é a poesia de Walt Whitman ‘lida’ em três épocas diferentes – durante a revolução industrial, após o 11 de setembro e num futuro pós-nuclear, sempre com crianças dentro, crianças que se ferem voluntariamente, ou que morrem por amor, porque “morrer é diferente do que se pensa, e mais feliz”.

Outro pequeno volume ainda anterior, numa edição recente da Relógio D’Água, mostrou como George Orwell, em 1946 (dois anos antes de começar a redigir o seu imortal e sempre atual “1984”), elaborou o brilhante ensaio “Porque escrevo”, explicando, por exemplo, que os temas de um escritor “são determinados pelo tempo em que vive” e que ainda antes de o ser “ele já terá adquirido uma atitude emocional da qual nunca se conseguirá libertar completamente”.

E depois há aquela luminosidade que quase nos cega ao relermos um romance como “O Amor nos Tempos do Cólera”, agora reeditado pela D. Quixote na celebração dos 60 anos da editora. Esse livro escrito por Gabriel García Márquez em 1985 e o vigésimo do seu catálogo literário, que começa com o cheiro das amêndoas amargas e termina com o do anis.

Ou a deslumbrante inteligência de “A História de uma Serva”, de Margaret Atwood, que a Bertrand relança nos 40 anos da primeira edição, com um prefácio de Alberto Manguel no qual se lê: “Em 1985, (...) Atwood dificilmente suspeitaria que os sinais de abuso de poder que vislumbrou na sociedade americana conduziriam às duas eleições de Donald Trump e ao questionamento (mais uma vez) do papel das mulheres, cujo direitos se presumiam conquistados após os movimentos feministas do século XX. Décadas após a sua publicação original, ‘A História de uma Serva’ adquiriu, nos Estados Unidos como noutras partes do mundo, o estatuto de grito de revolta contra um criminoso condenado que encabeça o governo norte-americano e contra as suas políticas assentes no privilégio masculino e branco.”

Em 2006, o historiador israelita Ilan Pappe e diretor do European Centre for Palestine Studies da Universidade de Exeter, publicou “A Limpeza Étnica da Palestina”, por cá lançado em 2023 pela KKYM/P.O.R.K. Tornando-se num proscrito na sua terra – vive há anos em Inglaterra -, não deixou de investigar aquilo que define como sendo, desde 1947/48, um plano para expulsar os palestinianos autóctones da terra onde viviam aquando do estabelecimento do Estado de Israel. O que defende é que, no mundo do pós-guerra, em que os judeus que não foram dizimados pela Alemanha nazi permaneceram na Europa como refugiados ou emigraram para as Américas ou para a Palestina, os atos contrários ao Direito internacional cometidos pelo sionismo foram “quase totalmente” apagados da memória coletiva global.

Nos anos 1980, um grupo de historiadores israelitas, entre os quais Pappe, tentaram rever a narrativa sionista, defendendo uma “nova história” que incluísse a tragédia palestiniana. Mas, diz ele, foram demasiado “diplomáticos” ao fazê-lo, embora tivessem como fonte, entre outras, os arquivos militares de Israel. Vale a pena ler este livro para perceber muito do que hoje se passa naquela zona do planeta. E a razão por que intelectuais judeus perseguidos nos anos 1940 como Hannah Arendt, que ajudaram na fuga para a Palestina, se distanciaram depois do projeto israelita.

Ainda bem que os livros se reeditam: a palavra escrita não tem prazo de validade.

OUTROS LIVROS POR ARRUMAR

FICÇÃO

“Narração Nocturna”, de João Paulo Borges Coelho (Caminho)

Romance mais recente do autor moçambicano, onde lemos: “De costas, debruçado sobre o papel, José Fernandes parece ainda mais frágil. O candeeiro traça um contorno de luz na silhueta magra e projeta enormes sombras na parede, agigantando a sua presença. José Fernandes escreve febrilmente. Os seus gestos, mais o cintilar da luz, agitam as sombras fazendo com que tudo o que acontece na penumbra avermelhada da sala pareça muito vivo, muito intenso.”

“O Aluno de Joyce”, de Drago Jancar (Tinta-da-China)

Com prefácio de Gonçalo M. Tavares, o livro de um autor de referência da literatura eslovena contemporânea, nascido em 1948, com personagens em queda - “A queda para o humano é na vertical o que no destino é na horizontal. O destino é uma queda na horizontal. Na queda, o humano e o rato não podem fazer nada”, diz o prefaciador num texto que prepara a leitura.

“O Silêncio num campo cantado pelo vento”, de Fernando Machado Silva (Companhia das Ilhas)

De um poeta de Lisboa que vive em Postdam, na Alemanha, uma coleção de poemas que começa assim: “tu defines a distância / tiras o coração / de casa / levantas a noite escura / e retomas a conversa / conde a deixámos.”

NÃO-FICÇÃO

“Psicanálise dos Contos de Fadas”, de Bruno Bettelheim (Bertrand)

Falávamos de releitura e eis um título que, ainda hoje, suscita interesse, escrito por um dos grandes psicólogos infantis do século XX, austríaco nascido em Viena que não foi poupado aos campos de concentração de Dachau e Buchenwald, tendo mais tarde emigrado para os Estados Unidos, onde produziu extensa obra.

“O Fim da Vergonha”, de Vicente Valentim (Gradiva)

Este ensaio já é considerado de leitura obrigatória e o autor, doutorado no Instituto Universitário Europeu, em Florença, tem ganhado vários prémios nos últimos meses – quatro só em 2025,além do Prémio Jean Blondel, atribuído pelo European Consortium for Political Research para a melhor tese escrita na Europa no domínio da Ciência Política.

“Política no Mundo Antigo”, de Moses I. Finley (Edições 70)

Volume há muito esgotado, surge agora para relermos este historiador norte-americano radicado em Inglaterra, onde esteve ligado até ao fim da vida (1986) à Universidade de Cambridge.

E hoje ficamos por aqui. Se tiver alguma sugestão ou comentário, envie para lleiderfarb@expresso.impresa.pt

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: LLeiderfarb@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate