Expresso Livros

Não pensar é impossível. Mas pensar por vezes é inútil, diz Steiner

Hesitei sobre como começar esta newsletter, tal a avalanche de livros que me aterra na secretária nesta altura do ano, pródiga em feiras e eventos que os celebram. Mas havia outra razão: os tempos de textura áspera e desagradável que atravessamos e a necessidade de fazer-lhes justiça nomeando os ‘livros certos’ para, das duas uma, os esclarecer ou iluminar. A literatura pode - sempre pôde - fazer isso. Chamando a atenção para o início, na quinta-feira, do Espanto – Festival Internacional de Filosofia, a decorrer até dia 22 em Cascais, abro o livro de um escritor que foi professor da disciplina e que, após anos de silêncio, acabou de publicar um tour-de-force extraordinário que, diz ele, tentou de “mais de uma maneira não escrever”. Refiro-me ao volume “Desvio da Memória”, de Pedro Paixão, lançado pela Glaciar, que ele próprio descreve, em subtítulo, como sendo “anotações sobre a destruição do judaísmo europeu”.

Não teremos aqui a veleidade de ‘domar’ uma obra com 800 páginas de uma craveira cultural e histórica impressionante. Mas sim notar como a temática do livro extravasa constantemente as suas fronteiras, como aliás é próprio de qualquer reflexão sobre o extermínio humano por motivos raciais ou religiosos, seja este onde for. Pedro Paixão agarra num assunto para o expandir e universalizar, e por isso lemos, por exemplo, a explicação de Descartes sobre os limites da representação: se é fácil imaginar um polígono de cinco lados, é impossível ‘vê-lo’ (com o espírito) se tiver 25 ou 1000. “O mesmo me parece acontecer com o número de vítimas assassinadas, sem contam com as outras que sobreviveram e multiplicam esse número. Temos uma ideia assaz precisa do que seja três ou quarenta ou cem indivíduos, mas essa representação torna-se cada vez mais turva e imprecisa quando o número cresce, tornando-o irrepresentável”, lemos. O que nos leva a um outro livro já aqui abordado, “Nós, Filhos de Eichmann”, de Günther Anders, editado este ano pela Antígona, em que o primeiro marido de Hannah Arendt e filósofo como ela observa que a partir de um certo limiar de horror, qualitativo e quantitativo, e por mais paradoxal que isto pareça, o sentimento de responsabilidade humana tende a diminui drasticamente.

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