Levantamos os olhos e o número 40 impõe-se: esta é a Estante (Des)arrumada da maturidade. Há 40 quinzenas que andamos por aqui. Impulsionados pelos livros que vão saindo, e são muitos, não nos cansamos. Corremos por gosto e por acreditar genuinamente que a literatura, seja de que forma for, faz a diferença neste mundo agressivo e simplificador do discurso, mitigador das contradições, amplificador das falsidades e criador de consensos tantas vezes perigosos, no qual a guerra é de novo aceite e as poucas forças para a paz, travadas por interesses vários, não conseguem vingar. Por isso, para começar, convido-os a olharem para um livrinho acabado de editar pela Tinta-da-China, chamado “Maimónides - Fé na Razão”, de Alberto Manguel, que é um condensado de ideias férteis sobre temas muito variados, não tivesse o autor argentino investigado a fundo e ao longo de anos a existência deste médico e filósofo judeu que viveu entre 1138 e 1204 em terras várias, correspondendo com a errância congénita e nem sempre voluntária do seu povo, saindo de Córdova (na antiga Sefarad), onde nasceu, para exilar-se em Marrocos, Palestina e o Egito, recebendo no corpo e na mente todas estas influências e vertendo-as em escritos como o “Guia dos Perplexos”.
Manguel conta-nos que foi por ele que começou a ler Maimónides, sentindo empatia imediata com o seu conteúdo, obra de um sábio e de um curioso que o levou a consultar as várias biografias existentes e muitas outras obras sobre a história do norte de África, sobre filosofia árabe, o Talmude e a lei judaica, e a medicina medieval. “Alguém que não tenha experimentado viver em transitoriedade, seja como viajante voluntário seja como exilado à força, alguém que enraizado num lugar do nascimento até à morte, sem comer nada que não tenha crescido no estrito círculo que rodeia o seu local de nascimento (como impunham os romanos), alguém que despreze tudo o que não seja endémico (como os nacionalistas e o Sr. Podsnap de Dickens) tem de possuir um espírito pleno de certezas e objetivos rígidos que dificilmente permitirão investigações digressivas decorrentes de uma saudável curiosidade”, lemos no Prefácio. É deste modo que o autor nos introduz numa biografia nascida da perplexidade e que percorre as várias fases e facetas de Maimónides - médico, erudito, crente, exilado -, cujo nome, diz-nos Manguel, surge nos dicionários ou volumes históricos “envolto num radioso enxame de epítetos” que ele pretende esclarecer.
Em tempos como estes, de racionalidade próxima do zero, vale a pena também folhear um outro livro acabado de sair. Falamos de “Como Perder Amigos Rapidamente – e aborrecer as pessoas com factos e ciência”, de David Marçal, lançado há semanas pela Gradiva. Se o título se autoexplica, só abrindo o ensaio é que percebemos exatamente ao que vem. E essa função concretiza aquilo que o autor, bioquímico e comunicador de ciência tem ativamente denunciado e confrontado nos últimos anos em publicações várias: a tendência alarmante de desacreditar o saber científico em nome de saberes intuitivos e por vezes inventados que não se equiparam à ciência, ou de crenças, ou de um naturalismo vão, ou até de causas justas ou da simples moralidade. Preferir a racionalidade e desafiar as ideias feitas e românticas tem custos, diz David Marçal na introdução, onde lemos que “a situação do livre-arbítrio é tão ridícula que os nossos impulsos biológicos nos levam a mentir e a enganar pelas mesmíssimas razões que outros animais o fazem, ou seja, pelos recursos que nos ajudam a sobreviver e por sexo, muito por sexo, na verdade”.
De seguida, somos atirados para o meio da selva de opiniões que conduzem ao cancelamento, por vezes negando abertamente o conhecimento científico: fala-se de sexo não-binário, do alarmismo “histérico” sobre as alterações climáticas como se este fosse um assunto novo, das terapias alternativas que “não passam de uma charlatanice”, do tabagismo ‘mitigado’ e high tech das novas formas de fumar. Tudo isto torna o livro “corajoso”, como refere o físico Carlos Fiolhais no Prefácio. “Podemos falar de progresso. Mesmo do facto de termos enchido a atmosfera de dióxido de carbono não foi em vão, pois isso permitiu retirar milhões de pessoas da pobreza extrema e da fome. Agora temos entre mãos o grave problema do aquecimento global, mas também dispomos de amplo conhecimento e de importantes recursos para lidar com ele - não somos dinossauros ignaros a olhar no céu um asteróide a cair no Iucatão que acabaria por os exterminar a todos.”
David Marçal exorta-nos a experimentar dizer, num jantar de amigos, que o mundo está cada vez melhor. “Talvez num primeiro momento alguns comensais se riam e concordem sarcasticamente consigo (...). Outros provavelmente olhá-lo-ão com incredulidade. (...) Quando finalmente o levarem a sério é possível que se zanguem consigo”, graças à “boçalidade conspirativa” que pulula em toda a parte, veiculada por uma comunicação social seletiva e sensacionalista, que noticia cada avião que tem o azar de se despenhar, mas não que, num ano como 2017, houve 0,27 acidentes de avião por cada milhão de voos realizados. Isto é apenas um mero exemplo do tipo de gigante que o autor quer digladiar - nós próprios.
E para terminar peguemos numa antologia feita para curiosos, que reúne alguns dos textos literários escritos nos últimos cem sobre um meio de locomoção: a bicicleta. Em “De Bicicleta”, editado pela Relógio D'água, contribuem prosas de Émile Zola, Ortega y Gasset e Tristan Tzara ao lado de nomes como Maurice Lebranc, Alfred Jarry, Marcel Aymé e Joana Bertholo – que foi atleta de alto rendimento antes de se tornar uma das escritoras portuguesas mais promissoras da sua geração. É ela quem abre o livro, descrevendo uma etapa do Grand Tour: “Qualquer um que treine horas acumuladas e compita em longas provas sabe que o tempo é um fenómeno que se impõe sobre os nossos corpos de forma diferente quando estamos distraídos ou quando somos sobre ele intencionais. E não há nada mais intencional do que pedalar. Naquelas horas, o caminho era um produto do meu esforço e cada pensamento ou movimento do espírito se vinha inscrever numa cadência de ritmos: o coração, a respiração, a rotação dos joelhos, a firmeza dos cotovelos junto ao tronco e das mãos sobre os manípulos do guiador. Pedalar era a única forma que eu conhecia de atingir um tempo absoluto, e de lhe escapar. Por isso amava o ciclismo acima de todas as coisas.”
Como é mesmo que começamos esta estante? Ah, sim. Pelo número 40. Continuamos a correr por gosto, acreditamos na literatura como forma de resistência. Venham daí.
OUTROS LIVROS POR ARRUMAR
FICÇÃO
“Os Imbecis e Outros Textos Clássicos da Literatura Russa”, vários autores (E-Primatur)
Volume organizado por Larissa Shotropa, que contém 13 textos de nomes maiores da literatura russa no feminino, como Marina Tsvetaeva, Nadejda Teffi, Maria Shkapskaia, Anna Zontag, Anna Bunina, entre outras. Um livro contra o esquecimento.
“Enterrem-me na Vertical!”, de Clara Macedo Cabral (Caminho)
Biografia romanceada, repleta de informação documental e de testemunhos, que a autora fez do seu avô, o Dr. Cabaninha, transmontano, ativista na oposição à ditadura de Salazar, numa perspetiva do modo como essa oposição era vivida no seio de uma família de então.
“A Terra Desolada”, de T.S.Elliot (Assírio & Alvim)
Coleção de poemas traduzida por Jorge Vaz de Carvalho e dedicada a Ezra Pound, que começa assim: “Que raízes se agarram, que ramos crescem / Deste entulho pedregoso? Filho do homem, / Não consegues dizer, nem adivinhar, pois conheces só / Uma pilha de imagens quebradas, onde bate o sol /”.
NÃO-FICÇÃO
“O Coração Pensante – Ensaios sobre Israel e a Palestina”, de David Grossman (D. Quixote)
Livro duro do maior escritor israelita vivo, no qual ele analisa a ameaça existencial que pende sobre Israel — sobre ocupados e ocupantes — numa altura em que a guerra atingiu proporções inimagináveis e criminosas, do massacre de 7 de outubro de 2023 até hoje.
“A Beleza das Pequenas Coisas”, de Bernardo Mendonça (Oficina do Livro)
Conjunto de 50 longas conversas tidas no âmbito do podcast homónimo, a personalidades muito diversas da vida portuguesa, como Alexandre Quintanilha, Celeste Rodrigues, Eduardo Lourenço, Isabel Moreira, Maria João Pires, Ney Matogrosso e Vicente Jorge Silva, entre outras.
“Quem Tem Medo do Género?”, de Judith Butler (Orfeu Negro)
Livro escrito por uma teórica do feminismo, que resume: “Cabe-nos ajudar a fazer nascer um mundo em que nos possamos movimentar, respirar e amar sem receio de violência, com a esperança realista e radical num mundo que já não seja movido pelo sadismo moral disfarçado de moralidade.”
Hoje ficamos por aqui. Os seus comentários e sugestões são bem-vindos. Pode enviá-los para lleiderfarb@expresso.impresa.pt
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: LLeiderfarb@expresso.impresa.pt