Longevidade

A história de uma atleta de 83 anos que começou aos 50: “Correr deu-me vida”

A história de uma atleta de 83 anos que começou aos 50: “Correr deu-me vida”

Nunca tinha praticado desporto até que, aos 50 anos, experimentou correr. A partir daí, acumulou medalhas, em competições em Portugal e lá fora. Agora com 83 anos, Joaquina Flores não pensa em parar: treina quase todos os dias, mas sem preocupação com vitórias. A atleta partilha com o Expresso as histórias de um caminho em que começou por ouvir comentários depreciativos para, posteriormente, ser acarinhada por onde quer que passe

Quando Joaquina Flores nasceu em Esmoriz, em 1940, o mundo era muito diferente – nomeadamente para as mulheres. Os pais, ao estilo do “antigamente”, eram severos. Mais tarde, foram surpreendidos pela filha quando, chegada aos 50 anos e sem nunca antes ter praticado desporto, decidiu começar a correr.

“O meu irmão é que me pôs a correr. Ia com ele à pista do 1.º de maio e sentava-me na bancada à espera que treinasse. Em vez de estar sentada sem fazer nada, ele disse para arranjar umas sapatilhas e andar ali às voltinhas enquanto fazia o treino”, conta Joaquina, lembrando como tudo começou, em conversa com o Expresso. Quatro meses depois, o irmão inscreveu-a numa prova de 15 quilómetros. “Nunca mais parei.”

Seguiram-se as meias maratonas. “Até que comecei a fazer a maratona, que são 40 e tal quilómetros. E a bater recordes”, realça. Tanto assim que já perdeu a conta às “centenas” de medalhas conquistadas, nacionais e internacionais. Os troféus enchem o anexo da vivenda onde reside, com paredes e vitrines cobertas de condecorações. Tudo organizado pelo marido – entretanto falecido, com quem esteve casada 62 anos –, que “escrevia tudo” e era o principal apoiante.

Nos campeonatos em que participou além-fronteiras, chegou a ser confundida com outra atleta portuguesa – que recentemente também voltou a bater recordes. “Eu não sou Rosa Mota, sou Joaquina Flores”, respondia prontamente. Foi lá fora que acabou por surgir a alcunha “Maria de Portugal”. “Tenho sorte, porque tenho amigos e sou acarinhada por todo o mundo. Tenho pessoas que me ligam de todo o lado”, orgulha-se.

Ainda há dias, uma portuguesa que vive na Austrália telefonou para saber como estava – algo que para si “vale muito”. “Fui ao corta-mato à Austrália e aquela senhora viu que estava com as cores de Portugal. Quando estava a fazer a prova, ela gritava tanto!”, recorda, sorridente.

Mais do que as vitórias, é sobretudo este apoio que valoriza e a motiva. “Quando vou a uma prova, seja onde for, dizem que é para ganhar. E eu digo: estou aqui, já estou a ganhar, só com o carinho que me dão.” Na categoria de veteranos, em que compete, podem participar atletas com mais de 35 anos. Ou seja, a octogenária corre com pessoas “muito mais novas”, que gosta de aconselhar. “São jovens, vão logo para a frente. Não se deve fazer isso. Depois falta a gasolina.”

Das críticas aos elogios

Mas nem sempre foi assim: inicialmente, “havia muitas bocas”. “Quando comecei, não havia muitas senhoras a correr”, relembra. Numa prova no Seixal, um rapaz num café por onde passou questionava: “O que é que a velha vem ali a fazer?”. “Eu disse: o que estou a fazer era o que vocês haviam de fazer, em vez de estarem aí com os copos na mão.”

Os vários exemplos deste tipo de situação não a travaram. “Cheguei a ir a Setúbal a uma meia maratona e uma senhora com uns sacos na mão dizia ‘vai mas é lavar a loiça’. E eu disse: ‘a minha já ficou lavada’”, relata Joaquina, fazendo questão de salientar que, “além de fazer os treinos, correr, ser esposa e fazer tudo, criava os netos”.

“Dá-me força para viver. Quando não vou, noto a diferença”

Os comentários surgiram também de familiares, que estranharam a novidade. “O que é que a Marquinhas [alcunha entre a família] está a fazer? Ela corre?”, interrogavam-se os pais ao princípio. Algo que acabou por mudar quando viram o quão bem-sucedida era.

E a própria mudou também. “Senti-me outra pessoa. Correr deu-me vida”, resume. Até hoje, mantém a atividade. “Treinar como treinava não treino, mas ainda vou. Agora faço dia sim, dia não”, detalha. Depois de cerca de uma hora a correr, segue-se uma caminhada, de preferência na natureza. “Dá-me força para viver. Quando não vou, noto a diferença.”

Um exemplo que procura transmitir aos outros, como acontece quando é convidada para partilhar a sua história em lares de idosos. “Mesmo que não se corra, andar podem andar todos os dias um bocadinho, nem que seja com uma bengalinha na mão”, sugere. “Agora já vejo grupinhos que, embora não corram, vão.”

Joaquina sente que, entretanto, “muitas pessoas mentalizaram-se que as mulheres não é só tratar da casa, também podem fazer um desporto para aliviar e fazer a vidinha à mesma”. “Dantes havia as bocas, diziam que parecia uma maluquinha, mas agora não. As pessoas já se habituaram e agora dão-me os parabéns.” Parar não está nos planos: ainda na véspera da noite de Natal, no Seixal, cumpriu mais uma prova de 10 mil metros.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: scbaptista@impresa.pt

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