A frágil trégua no Líbano vai manter-se em 2025? Com Hezbollah enfraquecido, os “israelitas verão cada vez menos razões para um cessar-fogo”
Logo após o cessar-fogo, crianças passeiam pelo local onde foi morto o líder do Hezbollah, Sayyed Hassan Nasrallah, em Dahieh, no Líbano
Amr Abdallah Dalsh/Reuters
Com centenas de ataques já registados, somam-se as violações do acordo celebrado há um mês. O Hezbollah argumenta que o direito à defesa está previsto nos termos do compromisso. Podem as ações de Israel legitimar as respostas militares do Hezbollah e o consequente confronto direto?
Nas aldeias fronteiriças, a atividade israelita tem impedido os libaneses de regressarem às suas casas. Tem também enraivecido o Hezbollah. No fim de semana, o Exército libanês emitiu um comunicado acusando as forças israelitas de violarem repetidas vezes o acordo de cessar-fogo e de invadirem várias áreas do território do Líbano. O cessar-fogo, mediado pelos Estados Unidos, entrou em vigor a 27 de novembro, mas as violações por parte das forças israelitas continuam, registando-se incursões em aldeias do Sul, destruição de casas e atos de retaliação contra civis libaneses.
Meios de comunicação israelitas, como o jornal "Haaretz", têm alertado que os seus militares poderão atrasar a retirada para lá dos 60 dias em que dura o cessar-fogo temporário. As forças israelitas justificam esta suposta necessidade com a alegada incapacidade do Exército libanês em garantir o controlo total da área no Sul do Líbano - onde grupos não vinculados ao Exército do país não são autorizados a estar e, sobretudo, onde Israel quer ver definitivamente extinta a presença do grupo islamista Hezbollah.
Amanhã, 2 de janeiro, assinalam-se os primeiros 30 dias desde que o cessar-fogo entre Israel e o Hezbollah entrou em vigor, e o acordo já dá provas da sua fragilidade. As Forças de Defesa de Israel (FDI) afirmam que, no último mês, 44 membros do Hezbollah que violaram o acordo foram mortos em ataques israelitas. Israel conta pelo menos 120 violações cometidas pela organização xiita libanesa. O Hezbollah fez saber, em resposta, que, ainda que se mantenha "empenhado" na trégua concertada, não hesitará em agir de acordo com o "direito à autodefesa" do Líbano, conforme estipulado no acordo. Se as forças de segurança oficiais do Líbano não conseguirem conter os “ataques” israelitas, o grupo, garante, intervirá diretamente.
"O cessar-fogo no Líbano parece ser mais nominal do que substantivo", reconhece, em declarações ao Expresso, Doug Livermore, diretor de Operações Especiais e Guerra Irregular do Subsecretário Adjunto da Marinha dos Estados Unidos. "Sabemos de centenas de disparos transfronteiriços entre o Hezbollah e as FDI, incluindo ataques com rockets, incursões de drones e bombardeamentos de artilharia, apesar da declaração de cessar-fogo. Este padrão sugere que ambos os lados estão a envolver-se numa escalada calculada para evitar uma guerra total, mantendo ao mesmo tempo a pressão de um sobre o outro."
A quem serve melhor a paz
A continuação dos ataques realça as limitações dos acordos de cessar-fogo. Na perspetiva de Doug Livermore, ambos os lados tiram partido da perpetuação das hostilidades: "O Hezbollah pode ver o conflito como uma oportunidade para testar a determinação de Israel e manter a sua imagem como defensor do Líbano, enquanto Israel provavelmente vê a necessidade de dissuadir o Hezbollah de continuar a escalada. Esta situação cria um equilíbrio precário onde o cessar-fogo serve mais como um gesto retórico do que como uma realidade aplicável. Penso que a queda do regime de Assad na Síria, combinada com os ataques generalizados e bem sucedidos de Israel para reduzir os arsenais de armas sírios e iranianos e as rotas de abastecimento das quais o Hezbollah é tão dependente, alterou fundamentalmente o cálculo estratégico a favor de Israel. Os israelitas verão cada vez menos razões para um cessar-fogo, à medida que a posição do Hezbollah se enfraquece."
Hassan Fadlallah, deputado pelo Hezbollah no Parlamento libanês, acusou Israel de explorar o cessar-fogo para implementar planos de destruição e agressão nas aldeias fronteiriças. Atribuiu ainda a responsabilidade ao Estado libanês, ao comité de monitorização internacional estabelecido após o cessar-fogo, à UNIFIL (Força Interina das Nações Unidas no Líbano), ao Exército Libanês e aos vários países envolvidos no acordo. “Nós, o povo do Sul do Líbano, a resistência, os apoiantes do Hezbollah em Dahieh e Bekaa, nunca precisámos de provas de que a resistência é uma necessidade nacional”, declarou Fadlallah.
Uma lacuna no cessar-fogo permite a Israel atacar enquanto as forças de fiscalização não conseguirem parar as suas ações nas zonas fronteiriças. As FDI anunciaram, na sexta-feira, que a 226.ª Brigada, sob o comando da 146.ª Divisão, continua ativa na área do Sul do Líbano. As forças estão atualmente a operar na aldeia de Naqoura, onde foram descobertas dezenas de infraestruturas terroristas do Hezbollah, utilizadas para ataques contra Israel. Ali, as tropas israelitas descobriram equipamento militar e armas armazenadas em edifícios civis, incluindo um local disfarçado de farmácia que continha explosivos, mísseis RPG e AK-47. Todo o equipamento foi confiscado e destruído.
Deslocados de ambos os lados da fronteira
O jornal "Haaretz" também noticia que as FDI começaram a construir a infraestrutura para os postos avançados ao longo da fronteira Norte, alguns dos quais estarão localizados em enclaves controlados por Israel para lá da barreira fronteiriça. Em certos locais, considerados vulneráveis, serão estabelecidos postos avançados em enclaves situados para lá da fronteira entre Israel e o Líbano.
"Os objetivos de Israel no Líbano são mais limitados do que em Gaza", assegura ao Expresso Ido Levy, investigador do Instituto Washington para a Política do Oriente Próximo, perito em contraterrorismo e operações militares relacionadas com grupos jiadistas. "No Líbano, as FDI procuram sobretudo expulsar o Hezbollah da zona entre a fronteira Israel-Líbano e o rio Litani para neutralizar a ameaça que representa para as comunidades civis do Norte de Israel. Dezenas de milhares de israelitas do Norte continuam deslocados desde que o Hezbollah tomou o partido do Hamas, quando a guerra começou. O arsenal de rockets do Hezbollah é muito maior do que o do Hamas e mantém rockets e mísseis em diferentes partes do Líbano."
O presidente do Parlamento Libanês, Nabih Berri, transmitiu a sua preocupação a Washington, alertando que as ações de Israel poderiam legitimar as respostas militares do Hezbollah. Apesar de os libaneses estarem cansados da guerra, com os seus ataques as forças israelitas arriscam-se a demonstrar a legitimidade da resistência, quer por parte do Hezbollah, quer de outros grupos. A questão que se coloca é: serão os custos de retaliar mais ou menos elevados do que os de não o fazer? É que, na verdade, o que está a acontecer "não se parece muito com um cessar-fogo", salienta Jamie Shea, antigo vice-secretário-geral adjunto para os Desafios Emergentes de Segurança da NATO, em declarações ao Expresso.
"A parte fraca do acordo era que Israel se reservava o direito de começar a disparar novamente sempre que acreditasse que os seus interesses de segurança estavam ameaçados, e isto é um obstáculo pequeno para Israel. Permite também que Israel decida unilateralmente, sem supervisão internacional." Jamie Shea ressalva, no entanto, que o cessar-fogo demorou muito tempo a ser negociado, e foi a "única notícia relativamente boa durante meses, no meio da miséria no Médio Oriente", pelo que há uma "óbvia relutância" em declarar morto o cessar-fogo libanês.
Se o “Partido de Deus” quebra, por que não um país?
Israel acredita que o Hezbollah perdeu cerca de 30% dos seus combatentes na guerra, além de 75% do poder de fogo que tinha antes do 7 de Outubro de 2023. Mas o grupo, que sofreu abalos operacionais e morais, ao ver assassinados alguns dos seus principais escalões militares e políticos, ainda conserva, segundo as FDI, centenas de rockets de curto alcance e de mísseis de longo alcance. Ainda que o Hezbollah esteja a evitar a retaliação que levaria ao confronto direto, a sua retórica sugere que qualquer excesso - ou ação entendida desta forma pelo grupo - israelita poderá ser a ignição para o regresso da guerra.
Ao ataque de 7 de outubro de 2023, liderado pelo Hamas, que desencadeou a guerra em Gaza, seguiram-se os ataques do Hezbollah contra Israel. Civis de ambos os lados da fronteira ficaram deslocados desde o início dos confrontos entre o Estado do Líbano e o Estado de Israel. Mais de 3700 pessoas foram mortas e quase 16 mil outras ficaram feridas desde outubro de 2023, segundo o Ministério da Saúde Pública libanês, que não faz distinção entre combatentes e civis na sua contagem. Cerca de 1,3 milhões de pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas no Líbano. O conflito reduziu o Produto Interno Bruto do Líbano em 6,6% este ano, informou o Banco Mundial, falando de um país que tem vivido crise atrás de crise.