"Sempre a mesma história": o que se diz nas ruas (e nas redes) do Irão, entre mísseis de Israel e os rumores sobre o colapso do regime
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O regime foi abalado pelos protestos, entretanto suprimidos pela força. O Presidente morreu num acidente e a ameaça de Israel pende sobre o país. No meio de tudo, os iranianos exprimem-se nas redes, conversam nas ruas. E dividem-se profundamente. Estes são alguns retratos de uma opinião pública pouco ou nada livre – mas muito viva
Maryam Shahi
O céu empoeirado de Teerão nos dias de hoje é diferente das semanas anteriores. Os cidadãos de Teerão e de outras grandes cidades iranianas seguem a rede social X e as notícias enquanto olham para o céu da sua cidade. Há duas semanas que não têm de se preocupar com a poluição do ar na sua cidade e com as mortes que esta causa. Agora, muitos falam com preocupação e esperança, na rede social X, sobre os próximos mísseis que podem rasgar o céu e atingir novos alvos no Irão.
Uma semana depois do segundo ataque de mísseis da República Islâmica do Irão a Israel, o primeiro-ministro e o ministro da defesa israelitas avisaram: “Ao contrário do ataque da República Islâmica, o nosso ataque será preciso, surpreendente e mortal. Não vão perceber o que aconteceu nem como aconteceu”. A primeira resposta surgiu na última sexta-feira, por agora com alvos militares e dirigidos.
O Irão espoletou uma reação diplomática, mas avisou para uma contra-resposta. O governo de Biden, assim como muitos outros na Europa, está preocupado que uma resposta e uma nova retaliação de Israel provoque uma guerra regional e que o Médio Oriente fique ainda mais destruído no fogo desta guerra.
“Não estamos preocupados com a guerra, porque estamos em guerra”
Por estes dias, a hashtag “A guerra é muito assustadora” tornou-se popular entre os utilizadores iranianos da rede social X. Depois da repressão generalizada dos protestos populares pelo regime iraniano nas ruas deste país, esta rede social tornou-se um campo de batalha para os manifestantes iranianos.
Recorrendo à hashtag, os utilizadores falam sobre a repressão dos protestos, a tortura e a morte de cidadãos iranianos pelo seu próprio governo e dizem não ter medo de um possível ataque israelita, porque estão, há anos, em guerra com o regime do Irão.
Reza Safari, iraniano, publicou um vídeo sobre a repressão dos protestos públicos por parte de agentes de segurança do governo iraniano. Ele e outros utilizadores iranianos tornaram virais vídeos e imagens dos "crimes do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica" em novembro de 2019 e dos protestos após a morte de Mahsa Amini.
Mahsa Amini tinha 21 anos quando foi morta por agentes do regime iraniano, por ter parte do cabelo fora do hijab. O seu assassínio causou protestos a nível nacional no Irão e em vários países europeus e americanos. As autoridades da República Islâmica do Irão reprimiram severamente estes protestos.
Ehsan Karami, cidadão iraniano, também escreveu sobre uma vítima do último protesto no Irão: sim, a guerra é muito assustadora, principalmente quando uma criança de 9 anos é baleada nos braços da sua mãe, que tem de levar o seu corpo para casa e mantê-lo consigo graças ao gelo dado pelos vizinhos, com medo de que o regime iraniano lhe roube o cadáver do filho.
Além dele, muitos utilizadores usaram a hashtag “a guerra não é assustadora” contra o governo iraniano e deram a sua opinião sobre o previsível ataque israelita aos objetivos do regime do Irão.
Ramin Meyparast, iraniano, foi ainda mais longe no que escreveu: “Durante 46 anos, o governo dos mullahs ocupou o nosso país, saqueou o nosso país, oprimindo, assassinando, aprisionando e torturando os cidadãos, violando a nossa identidade. Destruíram os nossos interesses nacionais, financeiros, espirituais, culturais e sociais e sacrificaram o Irão ao Iraque, Síria, Iémen, Líbano e Palestina! O ataque de Israel ao regime iraniano não é assustador. O governo dos mullahs que ocupou a nossa terra é que é!"
Depois da repressão generalizada de três protestos populares no Irão, em fevereiro de 2011, em março de 2019 e em vários meses de 2022, muitos cidadãos insatisfeitos perceberam que o período de esperança por uma reforma do regime iraniano acabou e que este regime deve ser derrubado.
É sempre a mesma história
Mas outros cidadãos iranianos não têm a mesma opinião que os manifestantes. Reza Iran Dost é um deles. Reza Iran Dost é o seu nome verdadeiro. Vive na cidade de Karaj, perto de Teerão e está preocupado com uma possível guerra. Diz que “todo o tipo de guerra é mau e destrutivo", mas acredita que a resposta de Israel será restrita ao “ataque pequeno e rápido”, sem que a população sinta "uma mudança nas nossas vidas”.
Acrescenta: “Se acharmos que Israel ataca o Irão e depois disso o povo iraniano apoiará Israel, essa ideia está errada. Os iranianos não procuram ajuda de um país estrangeiro para mudar. Enquanto o líder da República Islâmica do Irão não mudar, qualquer presidente eleito, seja fundamentalista ou reformista, não será capaz de dar ao povo as suas liberdades. A República Islâmica não vai sair do Irão tão cedo. Por enquanto, é sempre a mesma história”.
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Nos últimos 45 anos, a República Islâmica do Irão tem tentado mobilizar a sociedade iraniana contra Israel com os slogans “morte a Israel” e “destruição de Israel”. Por outro lado, há anos que o governo israelita tem tentado influenciar a sociedade iraniana através de plataformas online, incluindo a rede social X.
No dia 30 de setembro, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, publicou na sua conta Farsi no X, um vídeo com legendas em persa dirigido ao povo iraniano onde escreveu: “O Irão será libertado mais cedo do que pensam. Os dois países ficarão em paz. O povo iraniano deve saber que Israel está do seu lado. Quando viermos em vosso auxílio, saiam rapidamente para as ruas e limpem este regime sujo de todo o Irão”.
As suas palavras tiveram uma grande repercussão entre a opinião pública iraniana e meios de comunicação social de língua persa.
A 1 de outubro, um dia depois do seu discurso, o Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica (CGRI) do Irão lançou um enorme ataque de mísseis contra Israel. O Canal 14 israelita estimou que foram disparados 300 mísseis balísticos. O comandante do CGRI anunciou que este ataque era uma retaliação pelas mortes de Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah, e Ismail Haniyeh, líder do Hamas. Após este ataque, o presidente do Parlamento israelita publicou um post de Khamenei onde este prometia, em hebraico, que os golpes dos seus aliados contra Israel seriam mais graves. Em persa, respondeu a Khamenei: “O fim está a chegar”.
“Israel não prejudica os interesses do Irão”
Nejat Bahrami, jornalista e especialista em questões políticas iranianas, diz que muitos cidadãos iranianos não se preocupam com ataques israelitas a alvos na República Islâmica do Irão. Primeiro, justifica, porque há muita insatisfação com o desempenho da República Islâmica do Irão e qualquer golpe a este governo, especialmente nas infraestruturas militares e de inteligência, levará ao seu enfraquecimento e à queda mais fácil do regime. Em segundo lugar, porque o povo do Irão sabe que Israel não é um vizinho direto, não tem fronteira comum e não procura separar ou ocupar nenhuma parte do território iraniano. Não há prejuízo para os interesses do Irão e não são culturalmente nem ideologicamente hostis para com os iranianos. Se analisarmos as redes sociais, percebemos que muitos utilizadores apoiam o ataque de Israel aos alvos desejados no Irão.
Segundo Bahrami, a experiência histórica mostrou que os governos ideológicos e totalitários colapsam depois de um ataque estrangeiro, porque durante estas guerras perdem grande parte do seu poder e a moral dos militares, opressores e simpatizantes diminui. Estes regimes ficam enfraquecidos e fica mais fácil para os manifestantes desmantelar o sistema de repressão.
Na sua página Farsi na rede social X, Netanyahu pediu aos utilizadores iranianos que votassem sobre a possível guerra entre Israel e a República Islâmica do Irão, a que chama de “Guerra da Ressurreição”, numa sondagem a 7 de Outubro, o aniversário do ataque do Hamas ao sul de Israel. Dos 9 196 eleitores, 74,5% votaram a favor desta guerra e 25,5% votaram contra.
A CNN noticiou, a 12 de outubro, que o governo iraniano está nervoso e tem feito esforços diplomáticos urgentes com países do Médio Oriente para avaliar se conseguem reduzir a escala da resposta de Israel ao seu ataque do início do mês – e, caso esse plano falhe, se ajudam a proteger Teerão.
Um outdoor na Praça Enqelab, em Teerão, mostra imagens do ataque a Israel de 1 de outubro. “Se querem guerra, somos mestres da guerra”, lê-se em farsi e hebraico
A CNN citou também uma fonte iraniana e acrescentou que Teerão anunciou a Washington que, se Israel atacar, a República Islâmica retaliará.
“O regime iraniano irá cair. O Médio Oriente irá estabilizar”
No entanto, alguns dias antes das reuniões diplomáticas do regime iraniano com os países do Médio Oriente, o Príncipe Reza Pahlavi, líder da oposição da República Islâmica do Irão, dirigiu-se aos líderes dos países, especialmente do Médio Oriente, numa mensagem em árabe, hebraico, inglês e Farsi: “O Médio Oriente está muito familiarizado com o caos e a instabilidade. Por isso, entendo que possam temer que uma mudança de regime no Irão traga o caos. Mas não tenham medo. Não permitiremos que surja um vácuo de poder após o colapso deste regime”.
O Príncipe Reza Pahlavi é descendente do Rei Reza Pahlavi e do Rei Mohammad Reza Pahlavi que governaram o Irão antes da Revolução Islâmica de 1979 e são conhecidos como os reis que levaram o país à era moderna. Vários manifestantes também exigiram que o Príncipe Reza Pahlavi regressasse ao Irão e formasse um novo governo.
Os países do Médio Oriente não reagiram à sua mensagem mas, durante a recente visita do Ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano à Arábia Saudita, as autoridades sauditas recusaram-se a colocar a bandeira da República Islâmica do Irão ao lado do ministro, contrariando o protocolo diplomático. Esta questão não passou despercebida aos olhos da opinião pública iraniana, que a considerou um sinal de enfraquecimento e humilhação do governo.
A esse respeito, Nejat Bahrami diz que o príncipe Reza Pahlavi sabe que os países do Médio Oriente concluíram que a República Islâmica deve colapsar após o ataque do Irão a Israel, por isso falou aos países do Médio Oriente para esclarecer as suas possíveis dúvidas e preocupações sobre o problema do vácuo de poder após a queda do regime iraniano e para resolver mais tensões na região.
A 26 de setembro, em Washington, o Príncipe anunciou a preparação de um programa para os primeiros 100 dias após o colapso do regime iraniano e delineou 10 princípios para as perspetivas económicas do Irão.
Está a preparar um plano para o futuro do país após a queda da República Islâmica através do "Projeto Phoenix", que inclui um grupo de especialistas iranianos em várias áreas.
Apoiantes do partido xiita Hezbollah, numa concentração noturna, em Beirute
Além disso, mantém relações amistosas com Israel e, em 2023, viajou para o país a convite do governo israelita e discutiu e trocou opiniões com altos funcionários israelitas. Disse também em várias entrevistas com meios de comunicação social americanos, europeus e árabes que o regime iraniano é a principal razão para a instabilidade no Médio Oriente. O seu objetivo é claro: se o povo iraniano eleger um governo democrático, o Médio Oriente também irá encontrar estabilidade.
“Se houver uma guerra, irão usar-nos como combustível para a guerra”
No entanto, o Irão faz fronteira com dois países que passaram por uma intervenção militar dos EUA para mudar o regime, o Iraque e o Afeganistão. O Príncipe Reza Pahlavi disse, num encontro com conservadores americanos neste verão, que a República Islâmica do Irão nasceu da união profana do marxismo e com o islamismo radical. Acrescentou que a experiência americana no Afeganistão e no Iraque não deve ser repetida no Irão.
Após a saída dos Estados Unidos do Afeganistão e o estabelecimento do governo Talibã – o “Emirado Islâmico do Afeganistão” – mais de dez milhões de cidadãos afegãos fugiram para o Irão e para o Paquistão com medo de represálias. De acordo com as autoridades iranianas, há agora milhões de imigrantes afegãos no Irão, muitos dos quais estão preocupados com as consequências de uma possível guerra entre Israel e o regime iraniano.
Amin Arman é um jornalista afegão e ativista cultural do grupo étnico Hazara do Afeganistão, que agora vive em segredo no Irão. Após a chegada dos Talibãs, abandonou a sua casa com a mulher, atriz de teatro, e os filhos, temendo pela sua vida, porque tinha escrito contra os Talibã e colaborou com a NATO como influenciador. Um dia, os vizinhos disseram-lhe que os talibãs arrombaram a fechadura da sua casa, entraram e levaram todos os dispositivos eletrónicos. O decreto de Amnistia do líder talibã foi um truque para atrair os opositores do regime ao Afeganistão e deter e fazer desaparecer muitos dos seus opositores. Nessa altura, decidiu deixar o Afeganistão. Conseguiram um visto para vir para o Irão e, enquanto o seu visto esteve válido, Amin Arman trabalhou bastante – mas quando o visto expirou, ficou em casa com medo de ser deportado para o Afeganistão e ser atacado por iranianos anti-imigrantes.
O ativista diz que se Israel for mais longe na sua ameaça, a vida dos imigrantes, incluindo a sua, mudará. Qualquer ataque que ocorra, seja de Israel ou do Irão, tem um impacto negativo na vida normal do povo iraniano e dos imigrantes. Quando o Irão lançou mísseis balísticos em direção a Israel, num ou dois dias, os preços de mercado e dos alimentos subiram e os imigrantes ficaram extremamente preocupados.
Acrescenta que um dos efeitos da guerra entre o Irão e Israel é que grupos de pessoas que estão contra a presença de imigrantes no país irão atacar mais os imigrantes do que no passado. No entanto, é possível que usem os imigrantes como soldados e combustível para a guerra.
Amin, juntamente com a sua mulher e os dois filhos, enfrenta problemas de desemprego, pobreza, fome e residência ilegal no Irão. Diz que não têm escolha e que têm de continuar no Irão enquanto puderem, mesmo que seja nesta situação. A deportação para o Afeganistão significa a morte.
Nota: Este texto é parte do Migrant Media Project, criado pela Associação Pão a Pão e o Expresso e apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian.