Guerra no Médio Oriente

Jornais, televisão, redes sociais: que informação consomem os comentadores televisivos para analisar a guerra de Israel contra o Hamas?

"No caso desta guerra, a maior parte das pessoas não chegou a este tema agora, já têm opiniões anteriores"
"No caso desta guerra, a maior parte das pessoas não chegou a este tema agora, já têm opiniões anteriores"
JALAA MAREY

Uns mais críticos em relação à cobertura ocidental, outros mais adeptos da sua confiabilidade; uns mais comedidos nas horas de televisão consumidas, outros muito atentos ao pequeno ecrã; e ainda com um convívio desconfiado com as redes sociais. Como se informam os comentadores que em Portugal ajudam a dar forma à opinião pública sobre a guerra entre Israel e o Hamas? O que se recusam a consultar? E que dicas dão a quem quer ficar mais esclarecido quanto ao tema?

Todos os dias acompanham o fluxo veloz das notícias, apresentam e contrapõem perspetivas, acrescentam um novo argumento aos já pensados, adicionam contexto e desconstroem conceitos. Todos os dias e todas as noites marcam presença nos televisores, mas também à mesa, nas conversas de família sobre o tema do momento: a guerra entre Israel e o Hamas. É através dos comentadores televisivos que, muitas vezes, se chega a uma ideia expressa pela primeira vez e se relembra o “terreno comum” da memória que já não estava ali à mão. Mas em que se ‘inspiram’ os analistas portugueses que enquadram os acontecimentos e os sistematizam? O que gostam de ler, para se informarem? O que é que, por outro lado, preterem e desaconselham?

O que começam por dizer os quatro analistas ouvidos pelo Expresso é que o trabalho nunca pára, porque a atualidade também não. Também lembram que a opinião não é indissociável das convicções, mas que filtra a emoção e tenta deixá-la de parte. Germano Almeida, jornalista com uma carreira de três décadas largamente dedicada à cena internacional, e com cinco livros publicados sobre presidências americanas e um sexto dedicado à guerra na Ucrânia, tem uma rotina já definida, conta. Dela fazem parte as leituras de alguns órgãos de comunicação ocidentais. "Estou a seguir quase à risca aquilo que seguia em relação à guerra da Ucrânia. Ou seja, eu não digo nada, ou não escrevo nada, sem ter confirmado em três: "The Guardian", "CNN" Internacional, "El País" ou "BBC". Isto é a base. Já chegou a haver situações em que tinha quase a certeza, por ter visto em outros sítios, mas, por não ter visto ainda nesses específicos, não arrisquei."

As escolhas de Germano Almeida

"Claro que isso também tem um bocado a ver com o meu posicionamento, não é? Acaba por se perceber que tenho um posicionamento bastante anglófono", admite o comentador. “Confio mais nas versões norte-americana e britânica, porque geralmente são as que são mais bem informadas. No tema da guerra na Ucrânia, têm acertado quase sempre.” Quanto à “questão israelo-árabe”, as coisas tornam-se bem mais complicadas, considera Germano Almeida, comentador da SIC. O ataque ao hospital al-Ahli, na Cidade de Gaza, desencadeou comentários de indignação em todo o mundo. Israel “parecia” o causador mais provável, mas, ao fim daquela noite, a dúvida já imperava. As Forças de Defesa de Israel alegavam que nenhum avião israelita estava a operar na zona onde se localiza o estabelecimento de saúde. A versão israelita, depois endossada pelos EUA, era de que teria sido a Jihad Islâmica a responsável por aquele ato, ainda que de forma involuntária, isto é, numa tentativa falhada de atingir Israel. O acontecimento pôs mais uma vez à prova os analistas portugueses, garantem todos. “Quanto àquela situação do hospital, os norte-americanos foram os primeiros a ter provas mais concretas”, afirma Germano Almeida. “Claro que não é sempre certo, mas é mais seguro.”

Por outro lado, se "o 'Guardian' tem um acompanhamento bastante em cima das coisas", a "Al Jazeera" é uma fonte que prefere não consultar desde os primeiros dias logo após 7 de outubro. Saltando dos meios “mais mainstream” para outro tipo de coberturas, o comentador da SIC reconhece: “O Twitter é uma fonte de informação para mim. Obviamente que não é uma fonte de informação credível por si só. Nestas duas guerras - agora talvez mais nesta -, já soube em primeira mão algumas coisas que não sabia, mas sendo que depois tenho de confirmar ou fazer o contraponto noutro lado.” Recorre ao agora denominado “X”, não tanto para conhecer a ocorrência pura e dura, mas para tomar contacto com outra perspectiva. “É tão consonante o que eu penso com aquilo que eu vejo no 'Guardian' e na 'CNN' Internacional, no Expresso, que, por vezes, sinto necessidade de ver coisas diferentes. E o Twitter oferece-me isso, através de pessoas que estão no meu feed, que não pensam como eu, mas em quem confio, nacionais e internacionais.”

Quando tem mais tempo, Germano Almeida aprofunda-se ainda no “ Haaretz” e segue outros dos principais jornais israelitas em inglês. “Às vezes, só tenho uns minutos antes de um comentário, outras vezes tenho mais tempo, mas é um ‘work in progress’”, explica.

As falhas da comunicação social ocidental

A diferença entre a cobertura noticiosa da “Al Jazeera”, do Catar, e outros sites de notícias não reflete, na opinião de Germano Almeida, que os média ocidentais estejam a errar. "Na minha opinião, se há alguma coisa que está a falhar do lado ocidental é uma maior exigência relativamente a Israel do que em relação ao Hamas. É factual que Israel matou mais do dobro - neste momento já quase o triplo - de palestinianos do que o Hamas matou israelitas. Mas aquilo que sabemos sobre o que se passa na Faixa de Gaza é controlado pelo Hamas." Como os consumidores de notícias observam mais destruição, morte, sangue e sofrimento do lado palestiniano do que entre os israelitas, gera-se um "viés no sentimento de indignação das opiniões públicas, sendo que isso tem uma consequência na pressão da decisão política", alerta o comentador e jornalista.

Germano Oliveira explica: “Passado este tempo, uma pessoa mais distraída, mas que esteja preocupada com o que se passa lá e, portanto, até siga as notícias, já não tem bem ideia de que isto partiu de uma atrocidade, num conjunto de massacres do Hamas, que só tem equivalência em território europeu durante o Holocausto, durante a II Guerra Mundial, porque foi um ataque deliberado a civis. Israel mata muito mais civis por razões que têm a ver com o excesso dos bombardeamentos, com a questão dos escudos humanos e com a densidade populacional.” Nesse sentido, a televisão tem uma linguagem mais apelativa. “Uma imagem que me chocou e revoltou foi a de membros do Hamas a amparar uma senhora refém. O Hamas está a fazer isto e mostra uma suposta moderação e uma suposta humanidade, que são as últimas coisas que tem, enquanto, do outro lado, vemos Israel a preparar-se para a guerra. É esta a grande contradição e a grande armadilha comunicacional que o Hamas conseguiu montar, e Israel caiu nela. O objetivo de Israel não é um ataque deliberado a civis e matar civis. E o do Hamas foi justamente esse. Isso conta, na minha opinião, para a avaliação da própria objetividade.”

O também comentador da SIC Notícias Daniel Oliveira discorda, considerando que estas duas guerras [na Ucrânia e Israel-Hamas] foram um “duro e falhado teste à comunicação social”. Para o analista de programas como “Antes Pelo Contrário” e “Eixo do Mal”, o jornalismo está “condenado a repetir os erros” cometidos com o guerra na Ucrânia, ainda que sejam, mesmo assim, casos bem diferentes, reconhece. “A Ucrânia não é um assunto polarizador, é um assunto sobre o qual algumas pessoas não tinham opinião, porque não conheciam, e a esmagadora maioria das pessoas ficou do lado certo. No caso desta guerra, a maior parte das pessoas não chegou a este tema agora, já têm opiniões anteriores. Qualquer pessoa que tenha mais de 35 anos já teve várias vezes oportunidade para formar opinião sobre este conflito.”

Daniel Oliveira lamenta que o jornalismo se tenha tornado “outra coisa”: perante a “carnificina em Gaza”, a maior parte da comunicação social comporta-se como se comporta em relação à Ucrânia, como se comporta em relação ao inquestionável. “Uma das razões para isso é que há jornalistas de um lado e não há do outro”, sustenta o cronista do Expresso. “Evidentemente Gaza é um sítio perigosíssimo para os jornalistas estarem, mas a história do jornalismo sempre foi assim. Os médicos também não se vão embora. Os médicos e os jornalistas são os que ficam nos sítios.”

Daniel Oliveira: entre o jornalismo árabe e israelita, fazer a ponderação

Para as suas análises, Daniel Oliveira não recorre substancialmente aos jornais televisivos, admitindo que vê apenas algumas imagens para não se deixar cair numa "frieza absoluta". "O acompanhamento televisivo das guerras é muito pouco interessante para quem tem de fazer análise. É muito em cima do momento, muito repetitivo, muita imagem, muita emoção. Para um comentador, não é mau distanciar-se um bocadinho da emoção excessiva." Recusa, assim, "acrescentar sentimento aos sentimentos que as pessoas já têm quando vêem as imagens".

Por outro lado, ao contrário de Germano Almeida, diz recorrer ao canal árabe que conta com muitos repórteres no terreno: "Acompanho a 'Al Jazeera', porque não é da Europa nem dos Estados Unidos, e é a que tem mais correspondentes em todo o mundo. Claro que a 'Al Jazeera' é árabe, mas é tão inviesada quanto são outras. É preciso descontar um grão de sal." Para o exercício de ponderação, não deixa de ler o “Haaretz”. "Com estas duas referências de qualidade de um lado e do outro, não há engodo, consigo encontrar algum equilíbrio na cobertura. Acompanho também algumas coisas da 'CNN' e 'New York Times'." Considera ainda os acompanhamentos "ao minuto" úteis, aos quais acrescenta leituras a fundo. "Leio ensaios que não são de um site específico. São coisas que vou encontrando ou que me vão chegando, coisas de fundo, com um pouco mais de análise."

Apesar de consultar diversas fontes, Daniel Oliveira garante que chega a haver casos em que não acredita em ninguém. O ataque ao hospital em Gaza é um exemplo emblemático, expõe. “No próprio dia, disse que não fazia ideia. No caso das guerras, não digo em cima do acontecimento, espero. É isso que deve distinguir um comentador das outras pessoas que escrevem coisas no Twitter.”

O major-general Arnaut Moreira partilha com Daniel Oliveira alguma descrença em relação à utilidade do excesso das imagens transmitidas. "Muitas das imagens são tratadas, foram fabricadas. Não quero dizer que as desgraças não aconteçam, mas uma desgraça bem filmada é particularmente consumível. Deve ter-se cuidado com as imagens que não são recolhidas por jornalistas ocidentais no terreno."

O comentador da “CNN Portugal” não considera que o jornalismo ocidental esteja a cometer um erro em relação a esta guerra, mas, sim, "em relação a todos os conflitos", em que se "dá por certo aquilo que exige maior ponderação". Para a sua construção de ideias, socorre-se sobretudo do relato de "muitas fontes" privilegiadas. "Não sigo nenhum produto em especial; não sigo com especial atenção um único órgão de comunicação, procuro atender a todos", declara. "'Al Jazeera' não leio, porque é do Catar, e o Catar é parte interessada. Não é daqueles média a quem atribuo grande credibilidade." Em suma, o major-general e analista resume: “Exerço a minha criatividade crítica, e tenho um ponto de vista muito crítico sobre tudo o que leio.”

Raquel Vaz Pinto e o trabalho de escritório

"Uso a ‘Al Jazeera’ para uma fotografia do mundo, mas, para este conflito, não funciona", lamenta Raquel Vaz Pinto, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa e analista da SIC. Há anos que se informa diligentemente seja qual for o assunto da esfera internacional, mas confronta-se com um problema, não exclusivo da guerra de Israel contra o Hamas, mas sem dúvida mais desafiante na atualidade: o problema está na raiz. Com a voracidade que vieram trazer as redes sociais, a informação de guerra tem de ser submetida a grande escrutínio, diz. "Tendo em conta que esta região e este conflito são polarizadores, é um tipo de conflito em relação ao qual as fontes muitas vezes não são uma ajuda. O problema concentra-se logo na fonte, ou seja, nos factos."

Elogiando o rigor e profundidade dos artigos do “Financial Times”, Raquel Vaz Pinto aponta que também as agências são bons recursos. "Tenho uma rotina diária, e consulto uma boa amostra de jornais e agências noticiosas de quase todo o mundo. Muitas vezes uma notícia, com os seus factos, é entendida de forma diferente, ou há aspetos da notícia que são encarados com maior ou menor importância consoante a região e consoante o país. Para mim, esse exercício é muito útil." Ler, ler, ler, e “tentar perceber os factos e depois avançar”: assim se faz a primeira triagem. Para um enquadramento histórico que possa faltar aos telespectadores, a comentadora da SIC Notícias debruça-se no trabalho de anos. “Tenho a vantagem de já contar vários anos de análise e de aulas, e vou aos meus dossiês, documentos, às minhas fontes mais académicas e conselhos de relações externas. Também sigo na rede social 'X' um conjunto de jornalistas que são credíveis e vou tentando perceber algumas das pistas que eles dão”

E à sexta-feira à noite marca presença para o seu comentário. Dez minutos - ou menos - que refletem uma pesquisa de muitas horas semanais. "Exige que haja, durante a semana, um exercício de triagem e de dupla e tripla verificação, e eu levo-o muito a sério", esclarece. Porque um comentador tem de saber e ajudar a saber "distinguir o que é de curto prazo, o imediato, e as questões mais estruturais".

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