Autoridades de Gaza dizem que é um massacre sobre o povo palestiniano, Israel nega envolvimento: o que se passou no hospital al-Ahli?
Ali Jadallah
Quem é o culpado pelo que os palestinianos estão a descrever como o maior massacre do século XXI contra o seu povo? Não se sabe. As Forças de Defesa de Israel (IDF) dizem que nenhum avião israelita estava a operar na zona onde se localiza o hospital al-Ahli, na Cidade de Gaza, onde centenas de pessoas, pelo menos 500, segundo as autoridades palestinianas, perderam a vida. Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, Israel já tinha atacado o hospital antes, dia 14, depois de ter avisado os médicos para procederem à evacuação do espaço. Os médicos têm-se recusado a deixar os bebés e os pacientes mais frágeis
Pouco depois de a notícia ter desencadeado uma enorme condenação internacional nas redes sociais, Israel tinha já negado qualquer envolvimento na explosão e incêndio que, na terça-feira, ao início da noite, atingiram parte do complexo hospitalar al-Ahli al-Arabi. A culpa foi atibuída ao grupo Jihad Islâmica, aliado do Hamas, que já veio negar as acusações. Os palestinianos de Gaza - e de todo o mundo - têm recorrido às redes sociais para lembrar que Israel já noutras ocasiões culpou os próprios palestinianos pelas mortes dos seus civis, como foi o caso quando a jornalista americana-palestiniana Shireen Abu Akleh foi morta em Jenin, na Cisjordânia, por uma bala das IDF, confirmou depois uma comissão independente da ONU.
Os factos certos e as análises possíveis
A explosão no hospital ocorreu por volta das 19 horas locais de terça-feira (17h em Lisboa). Vários vídeos já analisados pela BBC mostram a aproximação de um tipo não identificado de projétil, seguido de uma explosão enorme que logo desencadeia uma bola de fogo que se expande rapidamente.
Imagens em direto da emissora Al-Jazeera, transmitidas às 18h59, hora local, mostram uma luz brilhante a surgir nos céus de Gaza. Alguns comentadores sugerem que se trata de um rocket que parece explodir ou desintegrar-se. Nas imagens, vê-se um clarão ao longe, seguido de uma explosão muito maior perto da câmara da Al-Jazeera, cujas imagens a BBC também geolocalizou.
Mohammed Talatene
O Expresso tentou falar com analistas militares, mas a relutância em falar de um caso tão sensível mostrou-se comum a todos. À BBC, porém, Andres Gannon, professor assistente na Universidade de Vanderbilt, no Tennessee, disse que a explosão em si parece pequena, e o incêndio subsequente poderá ter sido causado pela ignição de combustível que ainda estivesse armazenado e não por um impacto direto de um míssil. As imagens da BBC mostram que não existe uma cratera correspondente a uma explosão com um míssil, e os edifícios e carros adjacentes não estão danificados, como ficariam com o impacto de um projétil desse tipo.
Há alguns analistas independentes que estão também a conduzir as suas análises, com base em imagens da comunicação social e outras fontes públicas. É o caso de Nathan Ruser, analista e especialista em cibersegurança do Australian Strategic Policy Institute, que escreveu um longo texto na rede social X, dividido em várias partes e com diversas imagens. “O que podemos ver é que a maior parte do dano é causado por fogo, apenas três carros têm marcas de ter sofrido qualquer impacto estrutural. Em dois deles, apesar do dano, a estrutura mantém-se intacta”, começa por escrever, realçando que a sua análise “em nada nega as incontáveis vítimas civis nesta campanha de Israel”.
O analista prossegue, dizendo que os carros que se localizavam a apenas dez metros da zona de impacto não têm qualquer dano, e 10 metros é um raio muito pequeno para que os objetos dentro dele pudessem permanecer intactos se o impacto fosse o de um míssil como os que têm atingido outras zonas de Gaza, disparados por Israel e que provocam danos imensos não só no prédio atingido (que não raramente fica em ruínas). Conclui que o dano visível é consistente com “um pequeno impacto”.
O que dizem as autoridades e médicos palestinianos?
"O massacre levado a cabo pela ocupação israelita no hospital é um massacre do século XXI e é uma continuação dos seus crimes desde a Nakba do nosso povo em 1948", disse Salama Marouf, chefe do gabinete de comunicação social do Hamas, referindo-se à expulsão de palestinianos das terras onde viviam de forma a permitir a criação do Estado de Israel.
A grande tragédia de al-Ahli al-Arabi foi o incêndio, que atingiu um parque de estacionamento do complexo que, na altura, estava repleto de famílias que se refugiavam dos ataques aéreos nos bairros vizinhos, disse o bispo anglicano responsável pelo hospital, Hosam Naoum, citado pelo diário britânico “Guardian”.
O responsável disse, também, que, nos dias que antecederam a explosão devastadora no hospital de Gaza, as forças israelitas emitiram três avisos de evacuação e fizeram-nos chegar aos telefones dos diretores do hospital. Depois disso, atingiram o complexo duas vezes, com mísseis, disse Naoum, que se recusou a apontar um culpado durante a entrevista."Naquela altura, sabemos que estavam lá milhares de pessoas. Receberam um aviso, houve alguns bombardeamentos e ataques aéreos à volta do hospital e fugiram [para o recinto do hospital]".
Os funcionários, escreve ainda o “Guardian”, informaram os refugiados que se dirigiram ao pátio do hospital sobre os avisos que tinham recebido, mas possivelmente as pessoas consideraram, mesmo assim, que o hospital seria sempre um sítio mais seguro do que as suas casas, e onde poderiam recorrer à ajuda médica de forma mais rápida. Naoum disse que pelo menos 5000 pessoas saíram ao primeiro aviso, mas regressaram no seguimento de bombardeamentos sobre os seus bairros. "O massacre do hospital foi precedido, em 14 de outubro, por dois bombardeamentos" israelitas, disse o vice-ministro da Saúde da Faixa de Gaza, Youssef Abu al-Rish, citado pela CNN, secundando o que Naoum também tinha dito aos jornalistas.
Um dos médicos do hospital atingido - e que se tornou conhecido por fazer vídeos a partir das alas de neonatologia, com bebés em incubadoras, a explicar que é por eles e por outros doentes frágeis que os médicos não podem respeitar a ordem de Israel para evacuar o hospital - estava na sala de operações quando tudo aconteceu. "Estávamos a operar no hospital, houve uma forte explosão e o teto caiu sobre a sala de operações. Isto é um massacre", disse Ghassan Abu Sittah, citado pela Al Jazeera. "Nada justifica este ataque chocante contra um hospital e os seus numerosos doentes e profissionais de saúde, bem como contra as pessoas que aí procuraram abrigo. Os hospitais não são um alvo. Este derramamento de sangue tem de acabar. Já chega”.
Outro médico, Ziad Shehadah, disse à mesma emissora que o que aconteceu é particularmente terrível porque os que morreram são “civis que fugiram das suas casas e chegaram a um lugar que acreditavam ser seguro - um hospital, que, de acordo com o direito internacional, é um lugar seguro”.
O que dizem os israelitas?
Na quarta-feira à noite, as IDF organizaram uma conferência de imprensa onde o contra-almirante Daniel Hagari, porta-voz das Forças Armadas, explicou, em inglês, a versão israelita do que se passou. As imagens recolhidas pelos serviços de informação, disse Hagari, “não mostram nenhuma cratera, nem danos estruturais nos edifícios próximos e as paredes permanecem intactas”. Isto mostra, disse ainda, “que não foi uma munição aérea que atingiu o parque de estacionamento” do hospital. "A análise das nossas imagens aéreas confirmam que o hospital não foi atingido diretamente. O único local danificado é o parque de estacionamento, onde podemos ver sinais de queimaduras", acrescentou ainda.
Joe Biden com Benjamin Netanyahu em Telavive a 18 de outubro
Hagari disse ainda que por volta da hora da explosão, os radares israelitas captaram uma série de disparos, a partir de um cemitério próximo, em direção a Israel. Como última prova, os serviços de informações israelitas divulgaram o que dizem ser um telefonema entre dois membros da Jihad Islâmica, no qual se menciona o lançamento de um foguete a partir de um cemitério perto do hospital. Nenhum meio de comunicação independente conseguiu confirmar a veracidade da gravação.
Algumas pessoas de Gaza com quem o Expresso tem falado disseram que é “normal em todas as guerras” haver estilhaços de “fogo amigo” que caem sobre os prédios dos civis. Um jornalista que está neste momento a conduzir uma investigação sobre este incidente para uma grande emissora internacional disse que “nada se saberá sem uma investigação independente”, porém, “não tinham morrido tantas pessoas se Israel não estivesse a bombardear as casas das pessoas, que têm de se esconder onde acham que é mais seguro”.
As imagens que têm sido partilhadas não só pelas vítimas e pelos seus familiares, mas também por jornais como o “New York Times” mostram corpos ensanguentados, uns por cima dos outros, numa massa difícil de distinguir, chamas, confusão, mochilas, cobertores, comida, brinquedos de crianças, ambulâncias e pânico generalizado. Ali Jadallah, um fotojornalista palestiniano na Cidade de Gaza, tirou algumas das mais impressionantes fotos do momento que podem ser vistas no seuInstagram.