Guerra no Médio Oriente

As marcas nos sobreviventes dos ataques do Hamas ficarão gravadas por décadas: “Estava viva, mas mataram-me a alma. Oxalá consiga curá-la”

Carros abandonados à beira da estrada, no local onde decorria um festival pela paz, e em que largas dezenas de pessoas foram mortas por membros do Hamas, no passado sábado
Carros abandonados à beira da estrada, no local onde decorria um festival pela paz, e em que largas dezenas de pessoas foram mortas por membros do Hamas, no passado sábado
ILAN ROSENBERG/REUTERS

Aquele que é visto em Israel como o maior massacre terrorista da história do território e o segundo maior da história mundial moderna, vai-se conhecendo através dos relatos e das histórias dos que sobreviveram para contá-las. Num país com as dimensões de Israel, com 9,7 milhões de habitantes, o assassínio de mais de 1200 pessoas (número que não parou de aumentar) e 3000 feridos significa que não há ninguém que não conheça alguém afetado

Poucas horas depois do início do ataque do Hamas a 7 de outubro no sul de Israel, o Expresso escreveu que o país estava a passar por algo similar à guerra de Yom Kippur (1973), um “dia do perdão 2.0”. Passados alguns dias, quando a areia da tempestade começou a pousar, ficaram mais claras as dimensões do ocorrido.

Foi o maior massacre terrorista da história de Israel e o segundo maior da história mundial moderna. Não é um novo 11 de Setembro, porque em 2001 nos Estados Unidos houve 3000 mortos num país de 290 milhões de habitantes. Em Israel, com 9,7 milhões de habitantes, o assassínio de mais de 1200 pessoas (número que não parou de aumentar) e 3000 feridos significa que não há ninguém que não conheça alguém afetado.

Não é, afinal, uma segunda versão da guerra de Yom Kippur. Há 50 anos morreram 2500 soldados israelitas a lutar contra os exércitos invasores da Síria e do Egito, mas isso deu-se na frente de combate. No passado sábado, dia em que morreram mais judeus desde o fim do Holocausto, há 78 anos, perderam a vida mais de mil civis e cerca de 200 militares.

Psiquiatras e psicólogos afirmam que o que aconteceu ficará gravado a fogo na mente dos israelitas e do povo judeu nas próximas décadas. Famílias inteiras, idosos de 85 anos e crianças de 3 foram mutilados e queimados vivos, enquanto outros eram levados para Gaza e convertidos em escudos humanos. O jornal “The Washington Post” escreve que pelo menos três raparigas e um rapaz que dançavam numa festa multitudinária foram mortos a caminho do cativeiro em Gaza.

O que teve mais impacto na sociedade israelita foram as imagens do kibbutz (comunidade agrícola) de Kfar Aza, onde um quinto da população residente foi exterminada. Quando uma centena de terroristas do Hamas começou a disparar nas ruas do recinto, as pessoas refugiaram-se em casa. Os jiadistas tentaram arrombar portas e assassinaram famílias inteiras a sangue frio.

Nalguns casos, sem conseguirem entrar, queimaram casas com os seus habitantes dentro. Há relatos — que o exército israelita diz não poder confirmar — de dezenas de cadáveres de crianças e bebés, alguns dos quais mutilados ou decapitados [entretanto Benjamin Netanyahu partilhou algumas destas imagens na sua conta na rede social X (antigo Twitter), fotos que também terá mostrado ao secretário de Estado norte-americano Antony Blinken, durante a visita deste a Telavive, esta quinta-feira]. Após a libertação da aldeia pelo exército de Israel, um oficial descreveu um cenário dantesco que o fez pensar no massacre nazi de de Babi Yar, cometido na Ucrânia nos anos 30.

Uma das histórias mais terríveis, embora das poucas com final “feliz”, é a de May Haiat, que trabalhava no bar do festival de música pela paz, no qual 3000 jovens bailaram noite fora e centenas foram chacinados.

“Vimos um amanhecer impressionante. Eu e um amigo afastámo-nos da festa para tomar café. De repente, uma amiga chamada Bar ligou-me a contar que estavam a ser alvo de disparos. Escondemo-nos no pequeno posto da polícia e vimos os três agentes que ali estavam a prepararem-se para enfrentar centenas de terroristas, com evidente expressão de medo”, conta a jovem. “Disseram-nos para corrermos e saíram dali para fora. Era uma missão suicida, foram abatidos. Chegou mais gente ao nosso esconderijo e perguntei-lhes se conheciam as histórias do Holocausto. Durante as matanças nazis, alguns judeus escondiam-se debaixo de cadáveres, fingindo estar mortos. Nós tapámo-nos com areia e deitámo-nos no chão, em silêncio, até que de repente ouvimos passos.”

“Rezei como nunca, mas oito terroristas encontraram-me”, prossegue. “Fechei os olhos, porque pensei que iam disparar. Levantaram-nos e tiraram-me o telemóvel e tudo quanto tinha no bolso. Através dos walkie-talkies avisaram que tinham ‘mais uma’. Um dos terroristas começou a falar comigo em árabe, e eu respondi que não percebia. Não gritei, mantive-me quieta e apática. Alguns deles começaram a apontar para mim, a rir-se, aparentemente porque achavam que estava seminua. O palestiniano que me falou em primeiro lugar pôs-me um casaco e um gorro em cima e pegou-me na mão. Numa mão tinha um míssil, na outra a minha mão. Começamos a andar e percebi que procuravam cigarros e bebidas no local da festa. Procurei com eles, sem levantar objeções.”

Segundo esta testemunha, “havia cadáveres por todos os lados”. O relato continua: “Havia outro israelita comigo, que desatou a chorar. Disse-lhe que parasse, ia pôr-nos nervosos. Ele ajoelhou-se e suplicou pela vida. Executaram-no logo, à minha frente. Fiquei só com os terroristas. Um deles, com um pau na mão, golpeou-me a cabeça perante as gargalhadas dos demais. Mas o que me pegara na mão parecia ter-me adotado”.

“Ao chegar ao pé dos carros, pensei em suicidar-me, atacando-os. O palestiniano que matara o israelita avisou-me que, caso tentasse fazer o mesmo, também me mataria. De repente, o que me dera o casaco e me protegera disse: ‘Corre, foge!’, e vi que me apontavam armas. Corri como nunca na vida, cheguei ao palco da festa e deitei-me ao lado de três cadáveres. Pintei a cara com o sangue de um deles e fiquei de olhos fechados três horas. De repente ouvi falar hebraico e gritei: ‘Socorro!’. Eram soldados israelitas. Levaram-me a um paramédico para ver se estava bem. Vi imagens que não queria recordar. Estava viva, mas mataram-me a alma. Oxalá consiga curá-la.”

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