As marcas nos sobreviventes dos ataques do Hamas ficarão gravadas por décadas: “Estava viva, mas mataram-me a alma. Oxalá consiga curá-la”
Carros abandonados à beira da estrada, no local onde decorria um festival pela paz, e em que largas dezenas de pessoas foram mortas por membros do Hamas, no passado sábado
ILAN ROSENBERG/REUTERS
Aquele que é visto em Israel como o maior massacre terrorista da história do território e o segundo maior da história mundial moderna, vai-se conhecendo através dos relatos e das histórias dos que sobreviveram para contá-las. Num país com as dimensões de Israel, com 9,7 milhões de habitantes, o assassínio de mais de 1200 pessoas (número que não parou de aumentar) e 3000 feridos significa que não há ninguém que não conheça alguém afetado
Foi o maior massacre terrorista da história de Israel e o segundo maior da história mundial moderna. Não é um novo 11 de Setembro, porque em 2001 nos Estados Unidos houve 3000 mortos num país de 290 milhões de habitantes. Em Israel, com 9,7 milhões de habitantes, o assassínio de mais de 1200 pessoas (número que não parou de aumentar) e 3000 feridos significa que não há ninguém que não conheça alguém afetado.
Não é, afinal, uma segunda versão da guerra de Yom Kippur. Há 50 anos morreram 2500 soldados israelitas a lutar contra os exércitos invasores da Síria e do Egito, mas isso deu-se na frente de combate. No passado sábado, dia em que morreram mais judeus desde o fim do Holocausto, há 78 anos, perderam a vida mais de mil civis e cerca de 200 militares.
Psiquiatras e psicólogos afirmam que o que aconteceu ficará gravado a fogo na mente dos israelitas e do povo judeu nas próximas décadas. Famílias inteiras, idosos de 85 anos e crianças de 3 foram mutilados e queimados vivos, enquanto outros eram levados para Gaza e convertidos em escudos humanos. O jornal “The Washington Post” escreve que pelo menos três raparigas e um rapaz que dançavam numa festa multitudinária foram mortos a caminho do cativeiro em Gaza.
Nalguns casos, sem conseguirem entrar, queimaram casas com os seus habitantes dentro. Há relatos — que o exército israelita diz não poder confirmar — de dezenas de cadáveres de crianças e bebés, alguns dos quais mutilados ou decapitados [entretanto Benjamin Netanyahu partilhou algumas destas imagens na sua conta na rede social X (antigo Twitter), fotos que também terá mostrado ao secretário de Estado norte-americano Antony Blinken, durante a visita deste a Telavive, esta quinta-feira]. Após a libertação da aldeia pelo exército de Israel, um oficial descreveu um cenário dantesco que o fez pensar no massacre nazi de de Babi Yar, cometido na Ucrânia nos anos 30.
Uma das histórias mais terríveis, embora das poucas com final “feliz”, é a de May Haiat, que trabalhava no bar do festival de música pela paz, no qual 3000 jovens bailaram noite fora e centenas foram chacinados.
“Vimos um amanhecer impressionante. Eu e um amigo afastámo-nos da festa para tomar café. De repente, uma amiga chamada Bar ligou-me a contar que estavam a ser alvo de disparos. Escondemo-nos no pequeno posto da polícia e vimos os três agentes que ali estavam a prepararem-se para enfrentar centenas de terroristas, com evidente expressão de medo”, conta a jovem. “Disseram-nos para corrermos e saíram dali para fora. Era uma missão suicida, foram abatidos. Chegou mais gente ao nosso esconderijo e perguntei-lhes se conheciam as histórias do Holocausto. Durante as matanças nazis, alguns judeus escondiam-se debaixo de cadáveres, fingindo estar mortos. Nós tapámo-nos com areia e deitámo-nos no chão, em silêncio, até que de repente ouvimos passos.”
Os combatentes do Hamas deixaram um cenário devastador no local
“Rezei como nunca, mas oito terroristas encontraram-me”, prossegue. “Fechei os olhos, porque pensei que iam disparar. Levantaram-nos e tiraram-me o telemóvel e tudo quanto tinha no bolso. Através dos walkie-talkies avisaram que tinham ‘mais uma’. Um dos terroristas começou a falar comigo em árabe, e eu respondi que não percebia. Não gritei, mantive-me quieta e apática. Alguns deles começaram a apontar para mim, a rir-se, aparentemente porque achavam que estava seminua. O palestiniano que me falou em primeiro lugar pôs-me um casaco e um gorro em cima e pegou-me na mão. Numa mão tinha um míssil, na outra a minha mão. Começamos a andar e percebi que procuravam cigarros e bebidas no local da festa. Procurei com eles, sem levantar objeções.”
Segundo esta testemunha, “havia cadáveres por todos os lados”. O relato continua: “Havia outro israelita comigo, que desatou a chorar. Disse-lhe que parasse, ia pôr-nos nervosos. Ele ajoelhou-se e suplicou pela vida. Executaram-no logo, à minha frente. Fiquei só com os terroristas. Um deles, com um pau na mão, golpeou-me a cabeça perante as gargalhadas dos demais. Mas o que me pegara na mão parecia ter-me adotado”.
“Ao chegar ao pé dos carros, pensei em suicidar-me, atacando-os. O palestiniano que matara o israelita avisou-me que, caso tentasse fazer o mesmo, também me mataria. De repente, o que me dera o casaco e me protegera disse: ‘Corre, foge!’, e vi que me apontavam armas. Corri como nunca na vida, cheguei ao palco da festa e deitei-me ao lado de três cadáveres. Pintei a cara com o sangue de um deles e fiquei de olhos fechados três horas. De repente ouvi falar hebraico e gritei: ‘Socorro!’. Eram soldados israelitas. Levaram-me a um paramédico para ver se estava bem. Vi imagens que não queria recordar. Estava viva, mas mataram-me a alma. Oxalá consiga curá-la.”