Médio Oriente

Julgamento de Netanyahu já recomeçou. De que está acusado o primeiro-ministro de Israel? E o que tem a reforma judicial que ver com o caso?

bandeiras num protesto em Telavive, pouco depois da apresentação, em fevereiro de 2023, das novas medidas para a Justiça
bandeiras num protesto em Telavive, pouco depois da apresentação, em fevereiro de 2023, das novas medidas para a Justiça
JACK GUEZ

A indiciação de Benjamin Netanyahu por suspeitas de crimes de corrupção tem mais de quatro anos, mas o julgamento ainda nem vai a meio. Analistas de questões judiciais dizem que é pouco provável qualquer resolução até 2028 - e estas são as pespetivas otimistas. Ao mesmo tempo que o processo corre em tribunal, o primeiro-ministro israelita e a coligação de direita, que o sustenta no cargo, têm enfrentado uma oposição feroz nas ruas devido à reforma judicial que apresentaram no início do ano. Os críticos dizem que as propostas foram feitas para ajudar Netanyahu a escapar-se às acusações

Julgamento de Netanyahu já recomeçou. De que está acusado o primeiro-ministro de Israel? E o que tem a reforma judicial que ver com o caso?

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Durante os primeiros 10 meses de 2023, os israelitas tiveram apenas um tema de conversa, ou um tema desdobrado em dois problemas. Em primeiro lugar, o processo judicial que envolve o primeiro-ministro do país, Benjamin Netanyahu, acusado de fraude, quebra de confiança e aceitação de subornos em três casos distintos - o caso 1000, o caso 2000 e o caso 4000. Depois, as tentativas do seu atual Governo, fortemente influenciado por membros da extrema-direita e da supremacia judaica, em impor mudanças à forma como a Justiça funciona.

As suspeitas contra Netanyahu foram conhecidas em 2019, o processo chegou a tribunal em maio de 2020. Porém, disputas entre as equipas de defesa e acusação e a paralisia imposta pela pandemia de covid-19 têm atrasado o julgamento. A 7 de outubro, depois do ataque do Hamas e subsequente guerra em Gaza, as audiências foram mais uma vez adiadas.

O ministro da Justiça, Yariv Levin, impôs aos tribunais uma pausa na sua atividade quando a guerra começou, mas a vigência do decreto, um decreto de emergência, expirou na semana passada, e a maioria dos tribunais retomou o seu funcionamento normal. Esta segunda-feira, Netanyahu foi dispensado de comparecer nas audiências, mas poderá ser chamado a testemunhar dentro de alguns meses.

No início da sessão desta segunda-feira, a advogada de acusação Yehudit Tirosh disse que a acusação deverá acabar de expor os seus argumentos num dos casos já em janeiro. Para os outros dois casos, que envolvem a suspeita de obtenção de presentes em troca de favores a empresários e cobertura mediática positiva no jornal “Yedioth Ahronoth” em troca da redução da circulação do jornal concorrente, Tirosh aponta como prazo o fim de março, escreve o “Times of Israel”.

O que diz exatamente o despacho de indiciação contra Netanyahu?

O atual primeiro-ministro de Israel está acusado de fraude, quebra de confiança e aceitação de subornos em três casos distintos que envolvem acordos entre o primeiro-ministro e magnatas da comunicação social e outros empresários influentes. O primeiro, o “caso 1000”, diz respeito à relação do primeiro-ministro com dois homens de negócios: Arnon Milchan, um produtor israelita de filmes de Hollywood, e James Packer, multimilionário australiano.

ABIR SULTAN / EPA

O ex-procurador-geral de Israel, Avichai Mandelblit, que foi a pessoa que apresentou as razões para a indiciação de Netanyahu, escreveu que tanto o político quanto a sua esposa, Sara, receberam prendas de ambos os empresários, “principalmente caixas de charutos e de champanhe”. A isto acresce a periodicidade das entregas. Segundo Mandelblit, por terem sido enviados de forma contínua, os dois amigos de Netanyahu “tornaram-se uma espécie de ‘canal de abastecimento’” do casal, lê-se na explicação. O valor das mercadorias transferidas fixa-se nos 700.000 shekels, cerca de 198.000 euros.

A história da amizade entre Milchan e Netanyahu vem do fim dos anos 1990. Foi o empresário de Hollywood que apresentou o primeiro-ministro a Packer, que passou então também a enviar-lhe bens de consumo de elevado valor.

Dadas as ligações entre Netanyahu e Milchan, escreveu o procurador, “Netanyahu deveria ter-se abstido de tratar de assuntos relacionados com Milchan”. Mas não terá sido esse o caso. “No período compreendido entre outubro de 2011 e dezembro de 2016, Netanyahu agiu em benefício de Milchan, no âmbito das suas funções oficiais”.

Os exemplos citados são vários. Em 2013-2014, diz a acusação, Netanyahu interveio junto de funcionários do Governo dos Estados Unidos a fim de garantir a Milchan um visto de entrada no país; em 2013, contactou o então ministro das Finanças, Yair Lapid [atual líder do partido centrists Yesh Atid], com o objetivo de alargar o período de isenção de declaração de impostos concedido aos residentes que regressam ao país, do qual Milchan poderia ter beneficiado; em 2015, contactou pessoalmente o diretor geral das Telecomunicações, Shlomo Filber, para que este fornecesse a Milchan informação sobre a possível fusão entre as empresas Reshet e Keshe, que na altura estava ser discutida, de forma a que o investimento planeado pelo seu amigo nessa área de atividade fosse financeiramente proveitoso. “Com estas ações, Netanyahu cometeu actos de quebra de confiança, de uma forma que prejudica significativamente a confiança e a integridade públicas”, remata o procurador.

O segundo caso (caso 2000) está igualmente relacionado com suspeitas de fraude e quebra de confiança. Desta feita está em causa uma relação com Arnon Mozes, proprietário e editor do grupo de media “Yedioth Ahronoth”. Apesar da conhecida e notória rivalidade entre ambos, o procurador-geral detalha uma série de reuniões entre ambos ao longo de pelo menos seis anos (2008-2014). Netanyahu queria que Mozes alterasse a orientação editorial do grupo, de forma a que o acompanhamento jornalístico das ações políticas de Netanyahu lhe fosse favorável. Em troca, Mozes exigiu que o Governo desenhasse uma lei para limitar a circulação do jornal rival “Israel Hayom”.

Em 2014, antes das eleições para o Knesset (parlamento israelita), Mozes ofereceu finalmente um acordo a Netanyahu: o seu jornal melhoraria significativamente a cobertura jornalística do candidato a primeiro-ministro - e também se comprometeria a escrever artigos negativos sobre a oposição - se a legislação para manietar o principal concorrente de Mozes fosse aprovada.

O “Israel Hayom” é um diário gratuito com vasta circulação em Israel. Na altura em que estas conversas aconteceram, a cobertura era claramente pró-Netanyahu, pois essas eram então as posições políticas do dono do jornal, o bilionário americano e financiador do Partido Republicano, Sheldon Adelson (que morreu em 2021). O mercado de publicidade estava a apertar para o lado do “Yedioth Ahronoth”, com várias contas a pular para o concorrente gratuito e mais lido. Netanyahu não rejeitou a oferta de suborno e não interrompeu as conversações com Mozes em resultado disso, embora, na verdade, não tencionasse avançar com o projeto de lei.

O então procurador-geral explica que, com estas conversas, Mozes foi sendo levado a acreditar que o primeiro-ministro utilizaria o seu poder político para promover uma lei que limitasse a circulação de jornais gratuitos. E a fim de não destruir essa impressão tão delicadamente burilada, Netanyahu reuniu-se com membros do Knesset para falar sobre a lei, dando instruções para que a existência destas reuniões fosse transmitida a Mozes. Tal como no primeiro caso, o procurador considera que “Netanyahu cometeu uma quebra de confiança de uma forma que prejudica significativamente a confiança e a integridade públicas” porque “abusou da sua posição e do seu poder político para receber um benefício, dando assim e entender à população que as ofertas de suborno são uma ferramenta disponível para promover os interesses de altos funcionários públicos e de empresários, e que não há nada de criticável em tais subornos”.

Israelitas no centro de Telavive em protesto contra as reformas judiciais
SOPA Images

O último caso (“caso 4000”) baseia-se naquilo a que o procurador-geral chamou “negócio recíproco” entre Netanyahu e Shaul Elovitch, o acionista principal da maior empresa de telecomunicações de Israel, a Bezeq, que detém o site de notícias Walla. O alegado acordo pressuponha que Elovitch pressionasse o diretor do Walla, a modificar a política editorial, na altura focada em críticas ao Governo de Netanyahu. Em troca, o chefe de Governo, que já tinha sido também ministro com a pasta das comunicações entre 2014 e 2017, “interveio, por diversas vezes, em questões regulatórias específicas de forma a promover os interesses empresariais de Elovitch”. O próprio está acusado de suborno, tentativa de obstrução da justiça e tentativa de suborno de testemunhas. Netanyahu diz que nunca recebeu nada de Elovitch, que a cobertura do Walla sempre foi negativa para o seu Governo e que as mudanças na regulamentação na área visada foram avaliadas e aprovadas por vários especialistas.

Em novembro do ano passado, o diário “Haaretz” publicou um artigo no qual expõe alguns exemplos da cobertura pró-Netanyahu que Arnon Mozes tem imposto ao “Yedioth Ahronoth”. Agora que o seu nome está envolvido nesta questão legal, o empresário e editor tem ainda mais razões para garantir que o seu ex-rival não abandona a cadeira do poder. A defesa da reforma judicial que tem causado os mais intensos protestos em Israel desde a fundação do Estado é uma das grandes lutas do jornal, dela pode depender a liberdade do seu done.

E qual é a ligação entre as mudanças no sistema judicial e o caso que envolve Netanyahu?

No início de 2023, Netanyahu apresentou ao parlamento uma proposta de mudança do sistema judicial, que visa, dizem os defensores da reforma, retirar algum poder aos juízes, que não são eleitos, e devolvê-lo aos deputados, pessoas escolhidas pela população. Os oponentes dizem antes que este é o caminho para o autoritarismo, uma vez que a reforma iria colocar demasiado poder nas mãos de Benjamin Netanyahu ou de outro qualquer primeiro-ministro que, sem controlo dos tribunais, se veria investido de uma espécie de poder total, sem supervisão.

O ímpeto de Netanyahu para imprimir mudanças estruturais no sistema judicial de Israel é uma faceta relativamente nova da sua liderança. Há 11 anos, num discurso proferido na inauguração do ano judicial de 2012, Netanyahu estava muito longe de defender o que defende agora. O vídeo desse discurso voltou agora a circular na internet - e as loas ao “sistema de justiça totalmente independente” rapidamente se tornaram virais. “Peço-vos que me apontem uma única ditadura, um regime autocrático que, ao mesmo tempo, tenha um sistema judicial independente. Não há”, disse na altura.

Em julho, o Governo promulgou a primeira alteração prevista - a chamada “lei da razoabilidade”. Esta alteração às Leis Básicas - o equivalente israelita aos artigos constitucionais - retiraria parcialmente ao Supremo Tribunal a sua autoridade para rever os actos governamentais. Mas a aprovação desta lei não ficou decidida apenas porque passou no parlamento. Em setembro deste ano, pela primeira vez na sua história, o Supremo Tribunal, com todos os seus 15 juízes, reuniu-se para decidir se devia revogar uma Lei Básica.

Além desta medida agora em avaliação no Supremo, as reformas visam diminuir o poder desta mesma instância para rever ou rejeitar leis, permitindo que uma maioria simples de um no Knesset anule essas decisões e aumentar também o poder do Governo em funções na escolha dos magistrados, incluindo no próprio Supremo, por via de uma alteração da composição do Comité de Seleção Judicial, que iria passar a ter mais mais representantes políticos. Por último, a revisão acabaria com a exigência de que os ministros obedeçam aos conselheiros jurídicos - orientados pelo procurador-peral -, o que atualmente é obrigatório por lei

Mas em países como os Estados Unidos, não é o Presidente que escolhe os juízes do Supremo? E não é o parlamento canadiano que “policia” os tribunais?

Netanyahu e a sua coligação compararam o poder de anular as decisões do Supremo Tribunal de Israel por maioria de votos ao que acontece no Canadá, onde isso sucede. Da mesma forma, o facto de o parlamento poder passar a ter a função de decidir as nomeações judiciais, como acontece na Hungria e parcialmente na Polónia (que agora tem um novo governo), foi já defendido pelo ministro da Justiça de Netanyahu, Yariv Levin, numa entrevista no mês passado. “Vejam o que acontece nos Estados Unidos. Nos EUA, os juízes do Supremo Tribunal são nomeados pelo Presidente e confirmados pelo Senado”, disse à emissora Kan.

Os oponentes sublinham que o sistema de governo israelita não tem freios e contrapesos tão robustos como os Estados Unidos e o Canadá. Ao contrário destes dois países, Israel não tem uma câmara alta, um senado, um órgão pelo qual as leis que emanam do parlamento tenham de passar para um último escrutínio e aprovação final.

Também não existe uma separação clara entre o poder executivo e o poder legislativo, nem um sistema federalista que delegue determinados poderes nos Estados ou nas províncias. “O poder político está concentrado numa única legislatura. Os ministérios do Governo são dirigidos pela liderança da coligação, que pode ser constituída por cinco ou seis políticos que controlam os seus próprios partidos, disse ao “New York Times” o professor de Direito na Reichman University, na cidade israelita de Herzliya, Yaniv Roznai, um oponente da revisão prevista.


O homem que está por trás da acusação, o ex-procurador-geral, Avichai Mandelblit disse ao programa Uvda, do canal 12 da televisão israelita, que a reforma judicial em curso tem como objetivo impedir o julgamento contra Benjamin Netanyahu. “A avaliação que faço é que Netanyahu quer que esta situação chegue a um ponto em que o julgamento não chegue a um fim normal”, disse Mandelblit.

Netanyahu têm-se batido contra estas suspeitas. Em março, pouco depois desta entrevista do ex-procurador e no início de uma avassaladora onda de protestos, o Governo optou por suspender a reforma (agora de novo em curso), com o primeiro-ministro a garantir que as propostas não colocariam a democracia em risco, antes a reforçariam.

E agora, quais são os próximos passos? Há outros casos relacionados com a reforma judicial a serem ouvidos pelo Supremo?

Neste momento, as audiências sobre a “lei da razoabilidade”, que tiveram início em setembro, ainda decorrem. Tal como um outro caso, no qual o Supremo Tribunal está a ouvir uma objeção a um projeto de lei que tornaria mais difícil a remoção de um primeiro-ministro, ao limitar as razões pelas quais ele pode ser considerado “incapaz de governar”. A lei, como está, confere ao procurador-geral o poder de avaliar se o chefe do Governo está ou não em condições de continuar a liderar o país; esta nova versão que o Governo aprovou e está agora a ser alvo de objeção nos tribunais, apenas permitiria o afastamento de um primeiro-ministro em duas situações: problemas de saúde física ou problemas de saúde mental (e não, por exemplo, por estar envolvido em processos legais por suspeitas de corrupção) e apenas se o próprio (ou o seu governo) assim decidir.

Os críticos afirmam que a lei protege Netanyahu de ser considerado inapto para o cargo, e a procuradora-geral, Gali Baharav-Miara, informou Netanyahu, em março deste ano, que as suas ações configuram uma violação da lei de conflito de interesses, por continuar a insistir na revisão do sistema judicial, mesmo enquanto está a ser julgado por suspeitas de corrupção.

A primeira audiência centrou-se na questão de saber quando é que a lei deve entrar em vigor. O advogado de Netanyahu argumentou que a aplicação da lei não deveria ser adiada, apesar de o primeiro-ministro estar a ser julgado por corrupção. Os peticionários, pelo contrário, argumentam que a lei deve ser adiada até às próximas eleições parlamentares. O advogado do parlamento israelita, Yitzhak Bart, admitiu, citado pela agência “Reuters”, que a alteração foi motivada, pelo menos em parte, pelo dilema pessoal de Netanyahu. Mas sublinhou que o tribunal deveria concentrar-se no efeito geral da lei e não na motivação que lhe está subjacente.

No caso de corrupção, fontes próximas do andamento de processos políticos disseram ao “Times of Israel” que é pouco provável um veredito antes de 2028.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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