Drones ucranianos sobre o Kremlin, uma encenação russa? Seria "destacar a própria vulnerabilidade militar"
Kremlin
NATALIA KOLESNIKOVA
O presumível atentado contra Putin levantou vários cenários: Kiev já demonstrou ter capacidade para enviar drones de longo alcance para a Rússia, mas os analistas consideram improvável que a Ucrânia seja responsável pelo ataque feito ao Kremlin. O país negou-o, de facto. Por outro lado, vários analistas sublinham que uma ação como esta pouco interesse teria para a propaganda russa, por expor a vulnerabilidade de Moscovo e do seu líder. Assim sendo, quem o poderá ter desejado derrubar?
Em setembro de 1999, uma série de explosões atingiu blocos de apartamentos russos em cidades como Buynaksk (no Daguestão), Moscovo e Volgodonsk. Mais de 300 pessoas morreram, pelo menos mil ficaram feridas, e o país viu-se vergado pelo medo. Vladimir Putin, então primeiro-ministro da Rússia, demorou poucos meses a chegar à Presidência, de tal forma a sua popularidade beneficiou da gestão da crise. Mas as incongruências eram inegáveis; quando, a 13 de setembro, Gennadiy Seleznyov, porta-voz da Duma (Parlamento russo), anunciou que tinha recebido o relatório sobre o atentado em Volgodonsk, o ataque ainda não havia acontecido. O anúncio só veio a confirmar-se três dias mais tarde, a 16 de setembro, quando as explosões atingiram a cidade. A Chechénia foi acusada, e fora encontrado o casus belli para a Segunda Guerra Chechena.
Em maio de 2023, no início desta semana, o Kremlin acusou a Ucrânia de tentar assassinar o Presidente russo num ataque com dois drones em Moscovo, uma afirmação rapidamente negada por Kiev, que despertou o ceticismo dos governos ocidentais e dos analistas. Tal como aconteceu em 1999, um porta-voz do Kremlin confirmou: Moscovo reserva o direito de responder aos ataques, que definiu como “atos terroristas”.
“Mas por que precisaria Moscovo de se envolver em tal teatro político para justificar uma escalada de violência contra a Ucrânia?” É o que indaga Kelly Grieco, investigadora e especialista em Defesa e Segurança do Reimagining US Grand Strategy Program do think tank Stimson Center, depois de dias de ataques russos a cidades ucranianas, como Dnipro, Pavlohrad e Kiev. “Putin atacou cidades ucranianas, visando civis e infraestrutura crítica de energia ao longo de meses”, complementa. Um cenário mais plausível, e que ajudaria a compreender as alegações do Kremlin, seria o de que o ataque tivesse sido “uma tentativa de gerar indignação pública e aumentar o apoio à guerra”, sobretudo com a aproximação do Dia D (Dia da Vitória, na Rússia), que se celebra a 9 de maio. Mas tal façanha “parece arriscada”, admite Kelly Grieco; “Não consigo imaginar que o Kremlin queira destacar a própria vulnerabilidade militar.”
É nessa teoria, no entanto, que os analistas do Instituto para o Estudo da Guerra apostam as suas fichas. O think tank com sede em Washington considerou que há uma forte probabilidade de as autoridades de Moscovo terem organizado o ataque, de olho na reação da população russa, já que a possibilidade de dois drones avançarem até ao Kremlin sem serem detetados era inverosímil. Harry Halem, investigador principal do Instituto Yorktown (norte-americano), defende que não se devem retirar conclusões precipitadas. Apesar de se tratar de uma grande viagem, da Ucrânia a Moscovo (a 450 km da fronteira), Kiev deverá ter “ativos das secretas na Rússia, numa escala considerável”, salienta o analista. Por isso, a aeronave não tripulada poderia ter sido lançada fora de Moscovo por agentes na Rússia, isto sem sequer ser detetada. “As defesas antiaéreas tradicionais não são otimizadas para responder a essas ameaças aéreas de curto alcance e baixo custo, uma vez que são simplesmente muito pequenas e muito baratas - e carregam uma carga útil muito limitada - para serem fixadas como uma questão de alta prioridade.”
Kiev poderia ser responsável? Em teoria, sim
Os russos têm denunciado a descoberta de destroços de drones ucranianos perto de Moscovo desde o início de 2023, e a Ucrânia tem contado com drones produzidos localmente para ataques de longo alcance. No mês passado, um drone caiu na cidade russa de Kireyevsk, a cerca de 402 km da fronteira ucraniana, de acordo com a versão russa. Kelly Grieco endossa: “A partir de uma fotografia dos destroços, o drone parecia ser um UJ-22 de produção ucraniana, que tem um alcance de quase 805 km a voar de forma autónoma.” Harry Halem também acredita que drones ucranianos já atacaram alvos dentro da Rússia, atingindo várias bases aéreas e depósitos de petróleo. “A indústria de Defesa da Ucrânia está em grande parte destruída, mas ainda é capaz de fazer duas coisas: consertar coisas e produzir drones. [Antes da contraofensiva], o objetivo da Ucrânia é atingir o maior número possível de áreas de retaguarda para destruir o abastecimento russo, particularmente petróleo e lubrificantes.”
O coronel Mark Cancian, que passou mais de três décadas no Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA e que é hoje conselheiro do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, um think tank localizado em Washington, lembra que a Ucrânia tem conseguido conduzir ataques de longo alcance, por exemplo, na Crimeia. “Analistas especulam que Kiev conseguiu adaptar alguns dos seus drones nativos para terem um alcance maior. Se a Ucrânia conduziu os ataques, eles têm um significado simbólico importante e podem forçar os russos a esforçarem-se mais na defesa aérea local.”
Ataques a edifícios de apartamentos russos, em 1999
“É possível, mas altamente improvável, que as Forças Armadas ucranianas tenham conduzido este ataque”, considera Walter Dorn, professor de Estudos de Defesa na Canadian Forces College, em Toronto. Grupos pró-ucranianos ou inimigos de Putin poderiam ser, então, os autores, até porque o Exército ucraniano colocaria mais empenho se a intenção fosse amedrontar o Kremlin, salienta Walter Dorn. “Se esse ataque fosse da autoria de militares ucranianos, eles teriam planeado algo mais eficaz. Este ataque ineficaz torna um futuro ataque mais difícil. Agora Putin está alerta, e será ainda mais difícil assassiná-lo. Mas isto mostra que Putin não é invencível. O seu local de trabalho pode ser atacado. Este poderoso simbolismo pode inspirar a imitação deste ataque.”
Em teoria, a Ucrânia tem capacidade para lançar tal ação. Mas o vídeo do ataque que foi divulgado mostrava dois pequenos drones, com cargas pouco significativas e que percorrem distâncias muito mais curtas. “Teriam sido lançados muito mais perto de Moscovo”, conclui a analista Kelly Grieco. Supondo que os ucranianos são responsáveis pelo incidente, o objetivo da missão nunca seria matar Putin, frisa Harry Halem. “Um pequeno drone de padrão civil armado com explosivos nunca seria capaz de causar danos significativos ao complexo do Kremlin, um complexo projetado para sobreviver à agitação civil, conflito de grandes potências e, se necessário, manter a liderança russa viva durante uma ‘troca’ nuclear.” A questão será, por isso, psicológica. Ao atingir o Kremlin, a Ucrânia pode demonstrar que tem “capacidade e vontade de atacar o coração do regime russo.” A operação seria, de certa forma, equiparável ao ataque Doolittle durante a II Guerra Mundial, ou o bombardeamento britânico de Berlim em 1940: nenhum teve qualquer efeito militar, mas o último, em particular, levou a Alemanha a mudar a sua campanha de direcionamento e aliviar a pressão sobre a Fração do Exército Vermelho. “É possível que a Ucrânia tenha a mesma intenção, já que os russos atacaram recentemente uma instalação de produção de motores ICBM”, reconhece o analista de Defesa.
Na quinta-feira, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, foi mais longe, acusando os Estados Unidos de envolvimento na alegada tentativa de assassinato. “Sabemos muito bem que as decisões sobre tais ações, sobre tais ataques terroristas, não são tomadas em Kiev, mas em Washington. E Kiev faz o que é dito.” O porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, foi célere em negar as acusações, vincando que os Estados Unidos não encorajam a Ucrânia a atacar fora das suas fronteiras. “Não encorajamos, nem permitimos que ataquem fora da Ucrânia. Não houve envolvimento dos Estados Unidos. Fosse o que fosse, não nos envolveu.”
Os analistas ouvidos pelo Expresso cimentam a argumentação de Washington: os EUA recusaram-se a fornecer à Ucrânia sistemas de longo alcance, justamente devido a preocupações sobre como a Rússia reagiria se a Ucrânia empregasse tais sistemas de armamento contra alvos localizados em território russo. “Dadas as preocupações sobre os riscos de escalada, é difícil acreditar que os Estados Unidos teriam apoiado um ataque tão descarado contra o Kremlin”, pondera Kelly Grieco.
Também segundo John Spencer, Kiev não precisaria de apoio ocidental para atacar dentro das fronteiras russas. “Já o fizeram com drones de produção ucraniana ou soviética, mas apenas contra alvos militares. Não ajuda a causa da Ucrânia, de defender o seu território soberano, atacar alvos não militares russos. A Ucrânia quer que o povo da Rússia em geral veja que a guerra na Ucrânia não é sobre a sobrevivência da Rússia. Ninguém ameaçou o território russo.”
Uma das hipóteses avaliadas pelos analistas é a de que uma organização na Rússia pudesse ter organizado e gravado o ataque, de forma a utilizar a operação como propaganda para reforçar o apoio público à Guerra na Ucrânia - que não está a correr bem a Moscovo. “A extensa cobertura mediática russa” apoia a teoria, analisa Walter Dorn. A Rússia pode “usar” o ataque para promover a escalada da guerra e justificar à população um aumento das necessidades militares, e, com isto, das mobilizações e recrutamento.
“O Kremlin seria definitivamente capaz de o fazer, usando os serviços federais de segurança ou qualquer outra organização”, explica John Spencer, conselheiro de Estudos de Guerra Urbana do think tank Madison Policy Forum, em Nova Iorque.
“O objetivo seria aumentar a histeria em torno da guerra e provocar mais especulação sobre a escalada russa”, aponta Harry Halem. É o mesmo que dizer que a Rússia poderia querer manter “uma sensação de crise internamente e produzir um ambiente de ameaça mais eficaz", de forma a dissuadir o envio de remessas de armas ocidentais, minando o apoio a Kiev. Mas, dada a natureza “amadora” do ataque, “é improvável que tenha sido um evento patrocinado pelo Kremlin”, sustenta John Spencer, concordando também que investir na operação como método de propaganda poderia ser contraproducente. O que o acontecimento desvela é a “fragilidade e vulnerabilidade das defesas antiaéreas de Moscovo”, conclui.
Não querendo adiantar-se mais, Daniel Fried, antigo diretor do Conselho de Segurança Nacional norte-americano, durante as presidências de Bill Clinton e George W. Bush, garante que uma conclusão pode ser tirada desta história: “Qualquer que seja a verdade sobre o incidente dos drones, é claro que a Rússia está a perder a Guerra contra a Ucrânia.”
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