Mísseis Patriot não são "viragem de jogo" para a Ucrânia mas foram acionados quando Kiev mais precisava
Sistemas de mísseis Patriot
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Os sistemas Patriot, que os EUA enviarão a Kiev, reabilitarão a capacidade ucraniana de reagir contra mísseis balísticos e aeronaves russas em grandes altitudes. Mas uma única bateria não virará o jogo. O significado simbólico – de que os Estados Unidos estão dispostos e são capazes de enviar um sistema de defesa antiaérea de primeira linha para a Ucrânia – poderá ser mais importante do que a capacidade militar desse único sistema. A Ucrânia pode também estar a dar um sinal de que construirá um Exército mais próximo dos ocidentais, esquecendo de vez o passado soviético, dizem os analistas militares ouvidos pelo Expresso
Até à chegada do inverno, e praticamente dez meses volvidos desde o início da guerra, Joe Biden não tinha considerado enviar a Zelensky o sistema de defesa antiaérea mais capaz dos EUA. Os Patriot são padrão mundial de eficiência no abate de mísseis de cruzeiro, mísseis balísticos de curto alcance e aeronaves num teto significativamente mais alto do que o dos restantes sistemas de defesa antiaérea, diz ao Expresso Mark Cancian, antigo conselheiro do Departamento de Defesa norte-americano. Capazes de detetar e apontar a seis alvos com grande precisão e altamente móveis, assegurando a própria capacidade de sobrevivência, os sistemas de mísseis com o nome que serve de acrónimo à expressão “Phased Array Tracking to Intercept On Target” serão enviados para a Ucrânia agora que a necessidade começa a falar mais alto aos ouvidos do Presidente dos Estados Unidos, explica o também analista do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais [Center for Strategic & International Studies].
“Os Estados Unidos concordaram em enviá-los agora por dois motivos”, começa por dizer Mark Cancian. “Porque os ataques russos às infraestruturas estão a causar grande sofrimento ao povo ucraniano e provavelmente continuarão a fazê-lo, e porque os Estados Unidos e a NATO carecem de outros sistemas para enviar, já que a maior parte da defesa antiaérea terrestre foi desativada no final da Guerra Fria.”
Harry Halem, analista militar que reside em Londres, concorda: a campanha beligerante da Rússia colocou a Ucrânia numa situação operacional difícil. “A Ucrânia tem poucos sistemas antiaéreos. Tem também um número muito limitado de aeronaves de asa fixa para obter superioridade aérea sobre a linha da frente durante uma ofensiva.” Isto porque o que a campanha de ataques estratégicos da Rússia às infraestruturas críticas da Ucrânia conseguiu foi dividir as defesas antiaéreas ucranianas entre a linha da frente e áreas civis e de centrais elétricas. “Primeiro haverá uma única bateria juntamente com dois NASAMS (sistema de defesa antiaérea baseado em terra de curto a médio alcance). Mas acrescentar Patriots ao arsenal, se forem usados de forma eficaz, pode enfraquecer a campanha de ataque estratégico da Rússia.”
Nos últimos dez meses, a Ucrânia conseguiu negar a superioridade aérea às forças russas, maiores e mais avançadas, usando uma série de sistemas de defesa antiaérea, e estratificando os efeitos de altitudes mais altas para mais baixas. O principal sistema que os ucranianos usaram para impedir que aeronaves russas voassem em altitudes mais altas é o míssil terra-ar S-300 da era soviética. Os países ocidentais tentaram obter mais lançadores e mísseis dos antigos países do Pacto Soviético. A Eslováquia enviou lançadores S-300 para a Ucrânia. Ainda assim, nota Kelly Grieco, investigadora na área de Defesa e Segurança do ‘think tank’ norte-americano Atlantic Council, a tarefa tem sido “cada vez mais desafiadora, principalmente com a taxa de disparos desses mísseis que a Ucrânia apresenta”. Se a Ucrânia esgotasse os mísseis de defesa antiaérea de longo alcance, deixaria de representar ameaça para as aeronaves russas em altitudes mais elevadas, isto é, “a Rússia ganharia superioridade aérea acima de 4500 metros”. A investigadora diz tratar-se de uma possibilidade “alarmante”, porque negar superioridade aérea à Rússia “foi fundamental para o sucesso geral da Ucrânia nesta guerra”. Por isso, enviar o Patriot é o passo que se segue para garantir que a Ucrânia continue a manter defesas antiaéreas robustas.
Apesar de se tratar de apenas uma bateria (de linha de seis lançadores) do sistema Patriot, o equipamento “permitirá que o [veículo blindado desenvolvido pela ex-URSS] ZSU atinja uma variedade muito maior de alvos sofisticados”, sustenta Harry Halem. “O Patriot não será tão relevante para armas menores e mais baratas, como os [drones] Shahed-136s iranianos. Mas a Rússia está a inflingir os maiores danos com recurso a mísseis de cruzeiro e balísticos de alto desempenho, ainda que em número limitado. O Patriot foi projetado para combater precisamente essas ameaças.”
“É uma confirmação de que a Ucrânia está lentamente a desfazer-se das suas raízes soviéticas e a tornar-se um Exército ocidental mais capaz."
O sistema antimísseis de primeira linha, projetado para operar a médio alcance, foi desenvolvido pela empresa norte-americana Raytheon. Países como Israel, Alemanha, Espanha, Japão ou a região autónoma da China, Taiwan, já recorreram ao Patriot. Para Raphael S. Cohen, investigador de Ciência Política do 'think-tank' RAND, que oferece análises e informação às Forças Armadas dos Estados Unidos, a História do equipamento militar reveste-se de grande importância. “A parte mais importante é o simbolismo. O Patriot é uma plataforma de armas icónica. Fez parte das plataformas de armas “Big Five” [os cinco grandes] que transformaram o Exército dos EUA na década de 1980, e que se estreou com muito sucesso durante a Primeira Guerra do Golfo. A escolha de enviar este sistema para a Ucrânia é mais um sinal do fortalecimento das relações entre os EUA e a Ucrânia.” Mais do que isso, desvela Raphael S. Cohen: “É uma confirmação de que a Ucrânia está lentamente a desfazer-se das suas raízes soviéticas e a tornar-se um Exército ocidental mais capaz.”
Os Estados Unidos usaram baterias Patriot em vários conflitos nas últimas décadas. Em janeiro, as tropas americanas na Base Aérea de Dhafra, nos Emirados Árabes Unidos, dispararam mísseis Patriot para intercetar mísseis direcionados à base. “O sistema foi introduzido há mais de 30 anos e tem sido continuamente atualizado desde então. O seu alcance, precisão e velocidade tornam-no um excelente sistema de defesa, e os seus sensores e poder de computação são inigualáveis.” A garantia é dada por James A. Lewis, vice-presidente do Programa de Tecnologia e Políticas Públicas do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington.
O Patriot é um sistema móvel terrestre capaz de abater mísseis e aeronaves, e menos eficaz contra sistemas não tripulados ou drones. Shaan Shaikh, diretor do Missile Defense Project, também do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais [Center for Strategic & International Studies], lembra que os Estados Unidos vão enviar apenas uma bateria de Patriot, pelo que pode ser garantida apenas a defesa de uma área limitada. Kelly Grieco ilustra esta ideia com uma comparação: “Uma bateria Patriot dará à Ucrânia a capacidade de proteger um ativo de valor particularmente alto, como, por exemplo, um edifício importante ou infraestrutura. Infelizmente, não vira o jogo. O Patriot não será capaz de criar um escudo impenetrável em torno da cidade de Kiev, muito menos de toda a Ucrânia. Para colocar isto em perspetiva, os Estados Unidos têm duas baterias Patriot a proteger atualmente o aeroporto polaco, que serve como principal centro logístico para abastecimentos ocidentais com destino à Ucrânia. Os sistemas de defesa aérea ocidentais, incluindo o Patriot, simplesmente não existem em número suficiente para oferecer o tipo de proteção que a Ucrânia procura, contra ataques aéreos e de mísseis russos.”
O Patriot é um dos sistemas de defesa antiaérea mais avançados do mundo, mas isso também o torna mais complexo de operar. De acordo com os analistas ouvidos pelo Expresso, serão necessários entre 80 a 90 soldados para a tarefa, e o treino padrão requerido para trabalhar com os lançadores demora vários meses. Já o curso de reparação é de 53 semanas. Kelly Grieco salienta que a Ucrânia se mostrou capaz no domínio rápido da tecnologia ocidental avançada, mas deverá não apressar esse treino por dois motivos: “Cada bateria Patriot - incluindo mísseis - custa cerca de mil milhões de dólares, portanto não é um sistema dispensável. A Ucrânia terá de protegê-la dos ataques russos. Os EUA também não têm muitos desses sistemas disponíveis para envio; a substituição seria um desafio.” Parte da chave para o sucesso da defesa antiaérea da Ucrânia nesta guerra tem sido a “sua capacidade de mover rápida e agilmente os sistemas terrestres”, fundamenta Kelly Grieco. “A Ucrânia usou táticas de disparar e fugir. Os defensores aéreos ucranianos disparam os seus mísseis contra um míssil ou aeronave russa que se aproxima, desligam rapidamente o radar, fazem as malas e saem rapidamente da área. No momento em que os russos são capazes de responder com um ataque, os ucranianos geralmente já foram embora.” Ora, essa mobilidade também será crítica para a sobrevivência do sistema Patriot, segundo a analista. “Com o Patriot a usar lançadores maiores, uma tripulação maior - de 90 pessoas - e vários camiões, os ucranianos terão de praticar muito essas táticas de disparar e fugir.”
O outro grande desafio logístico é a falta de mísseis de reposição. O sistema geralmente vem fornecido com oito mísseis, mas os ucranianos podem esgotar rapidamente essa quantidade inicial, alerta Kelly Grieco. “Apenas algumas centenas desses mísseis são produzidos todos os anos, e a capacidade de aumentar a produção simplesmente não existe neste momento.” Por isso, a Ucrânia enfrentará algumas escolhas difíceis: terá de ponderar como usará o sistema Patriot para as suas defesas antiaéreas. “Por exemplo, usar um míssil Patriot de mais de três milhões de dólares para abater um drone iraniano de 20 mil unidades não seria um uso eficiente ou eficaz desse sistema”, reflete Kelly Grieco.
Mark Cancian também tenta manter expectativas realistas quanto ao impacto dos Patriot na guerra. As dificuldades logísticas são um fator que não pode ser ignorado, argumenta. “O sistema não colocará uma bolha à volta de toda a Ucrânia, apenas aumentará a defesa aérea de uma única cidade. Como os mísseis Patriot custam milhões de dólares, devem ser usados criteriosamente. Envolver aeronaves e mísseis de cruzeiro faz sentido. Envolver mísseis de cruzeiro pode valer a pena se o alvo for altamente sensível. No entanto, não faz sentido usar um míssil de milhões para atacar um drone ucraniano de 50 mil dólares. Por isso, o Patriot pode não travar muitos ataques.”
O analista militar Harry Halem contrapõe, no entanto, que os EUA e a NATO podem sustentar os Patriot com muito mais eficácia do que os equipamentos soviéticos mais antigos. “A ‘pegada logística’ dos PAC-3 Patriot não é proibitiva. Não se sabe para onde os EUA vão enviar PAC-2s ou PAC-3s, mas ambos serão razoavelmente eficazes.”
Um novo sinal de esperança num inverno frio e escuro
Os ataques com mísseis e drones russos contra a infraestrutura de energia ucraniana são uma crise humanitária, que merece uma resposta que seja um “sinal para o povo ucraniano de que Washington continua a apoiá-los durante um inverno frio e escuro”, defende Kelly Grieco.
Mark Cancian atribui ao anúncio um significado simbólico de relevo. “É importante politicamente e útil militarmente, mas não vira o jogo. É importante politicamente, porque mostra a estreita relação entre os EUA e a Ucrânia e reafirma ao povo ucraniano que ambos os governos estão a fazer todos os possíveis para protegê-los de ataques aéreos.”
“Nem o Patriot, nem qualquer outro sistema de armas, exceto, talvez, as armas nucleares, será o verdadeiro divisor de águas na guerra”, assevera Raphael S. Cohen. Nada surgirá para os ucranianos - ou para os russos - como uma bala de prata, frisam os analistas. Segundo Kelly Grieco, é necessário ver além das capacidades do equipamento militar no terreno. “No Ocidente, somos tecnólogos. Gostamos de pensar que a nova tecnologia virará o jogo. A verdade, pelo menos na guerra, é que nenhuma nova tecnologia ou sistema de armas tem o poder de mudar o rumo de uma guerra. A introdução de armas atómicas é talvez a exceção. O fraco desempenho da Rússia na Ucrânia também não pode ser reparado por uma bala de prata tecnológica. Não é uma solução para comandantes fracos, treino insuficiente, logística problemática e baixos níveis de motivação.”
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