Putin “atravessou o Rubicão” numa jogada “tão arriscada” como a própria invasão: o que revelam as reações da sociedade russa à mobilização?
STRINGER
O Presidente russo ligou o futuro pessoal e do regime ao resultado do conflito na Ucrânia. Moscovo prepara-se para uma guerra muito longa, mas a reação da sociedade russa é uma “incógnita” que nem o Kremlin sabe decifrar. A única certeza é a de que a Rússia vai perder uma geração e isso terá “consequências desastrosas” para o seu futuro
O discurso que Vladimir Putin fez na passada quarta-feira não tardou a ter efeitos. O anúncio da mobilização de 300 mil pessoas fez disparar o preço das passagens aéreas para fora da Rússia e causou longas filas nos postos fronteiriços. Perto da Geórgia há relatos de homens a alugar motas para conseguirem passar a fronteira com a maior rapidez possível e começam a chegar as primeiras notícias de pessoas que foram impedidas de sair do país. Nas cidades, foram registados protestos e confrontos com a polícia.
“A guerra saiu da televisão e vai chegar às grandes cidades russas”, afirma Miguel Monjardino. Com a mobilização parcial, o conflito “deixa de ser uma coisa virtual e passa a ser muito mais real para as pessoas que forem mobilizadas e para as suas famílias e círculos de amigos.”
Para o especialista em geopolítica e geoestratégica, “a decisão da mobilização é uma escolha politicamente tão arriscada a nível interno como a decisão da invasão. No início desta guerra, o que Putin fez, com a chamada operação militar especial, foi desmobilizar a sociedade russa e isolá-la da guerra. Isso foi feito deliberadamente do ponto de vista político. Agora, as necessidades levaram-no a dar o passo oposto que é o de mobilizar a sociedade russa. Esta transição é um grande risco”, conclui.
E explica: “nós não sabemos qual é a real dimensão do sentimento de rejeição da guerra na população. Ninguém sabe e Putin também não. Ele foi forçado pelas circunstâncias da guerra a dar este passo”, porque a única alternativa era a de fazer o que não quer: recuar e assinar a paz sem cumprir nenhum dos objetivos traçados.
Por isso, acrescenta o especialista, “estamos numa zona de uma incógnita total e da assunção, por parte do regime, de um risco político muito muito grande. O que Putin fez no dia 21 foi atravessar o Rubicão. Não há regresso depois disso. O que mostra bem quão grave e difícil a situação deve ser. Dá-nos uma ideia das reais perdas russas nesta guerra para esta decisão ser tomada.”
O colunista do Expresso defende que os sinais dados pelo Kremlin revelam que a mobilização parcial é apenas o início. “Do meu ponto de vista, o regime está a fazer um ultimato aos EUA, aos países europeus e à Ucrânia: ‘ou a guerra acaba agora ou esta será uma guerra muito longa’. É por isso que esta não poderá ser só uma mobilização parcial. De facto, o regime está a preparar-se para a possibilidade de esta guerra ter de ser longa, porque, do ponto de vista de Putin, o seu futuro pessoal e do regime dependem do resultado desta guerra.”
Esta mentalidade de “tudo ou nada” está já patente no discurso dos comentadores televisivos pró-Kremlin, que nos últimos dias afirmaram nos seus espaços de comentário que a Rússia irá preferir um Armagedom nuclear a capitular.
Putin aproximou-se aos que sempre o criticaram por ser “demasiado tímido”, mas o custo é “desastroso” para o futuro
Com a redefinição da narrativa e o argumento de que a Rússia está a travar uma “guerra patriótica”, Moscovo está a tentar conquistar a opinião pública. “A dúvida é como é que a sociedade russa reagirá a essa situação. E é isso que vamos ver nos próximos dias, semanas e meses”, considera Miguel Monjardino.
Mas, em oposição, o setor nacionalista pró-guerra “está finalmente satisfeito com esta decisão”. “Estas pessoas estão em profunda divergência com Putin desde 2014, porque sempre entenderam que Putin foi demasiado tímido desde essa altura com a questão ucraniana.”
Este grupo “sempre entendeu que a Rússia devia ter sido muito mais violenta e usado muito mais meios para, de facto, conquistar a Ucrânia ou, no mínimo, conquistar os territórios que vão de Kharkiv até Odessa. Esse setor foi sempre extremamente crítico das opções que Putin tomou, porque de facto sabia - e muitos deles são ex-militares e agentes secretos - que com a força que invadiu a Ucrânia não seria possível a partir de certa altura concretizar essa ambição.”
Contudo, esta aproximação tem um custo que já está a ser pago e que terá “consequências desastrosas para o futuro da Rússia”.
“Isto é uma tragédia para a geração mais nova da Rússia e será uma perda enorme de talento para o futuro da Rússia. As pessoas mais talentosas, educadas e criativas já saíram da Rússia desde o início da guerra. Essa geração sabe que não voltará, pelo menos enquanto Putin liderar o país.
Opinião pública estará atenta ao tratamento que os reservistas mobilizados receberem
A somar a tudo isto, Miguel Monjardino destaca um outro fator que pesará na opinião pública russa. No seu discurso, o Presidente da Rússia prometeu que nenhum dos reservistas mobilizados irá combater sem treino ou fora do território russo.
Mas mesmo esta promessa levanta várias dúvidas. Em primeiro lugar, ao apoiar os referendos à anexação, Putin está a dizer que em breve considerará algumas regiões da Ucrânia como parte integrante da Rússia. Poderão, então, os reservistas ser destacados para estas zonas?
Não seria inédito o Presidente russo prometer não enviar certos grupos das Forças Armadas para a frente de combate e acabar por fazê-lo. Aconteceu com os soldados que assinaram contratos anuais com o exército russo e que estão atualmente na Ucrânia.
Por outro lado, há a questão do treino que estes militares vão receber. Entre 2009 e 2019, tal como foi a tendência predominante na maioria dos países, a Rússia preteriu um grande exército e investiu num exército especializado, profissionalizado e muito bem equipado. Isto faz com que a Rússia não tenha atualmente a capacidade logística e institucional para uma mobilização em larga escala, deixando dúvidas sobre quem vai treinar os recrutas e em que circunstâncias.
“Com o número de baixas que devem ter sofrido e com as perdas de equipamento que de facto tiveram, é muito difícil reconstituir rapidamente esta força”, explica o cronista do Expresso.
A alternativa poderá ser enviar os reservistas para o terreno sem a devida formação e equipamento, o que começa a parecer provável, visto que nas últimas horas começaram a surgir vídeos nas redes sociais que mostram oficiais a informar os recrutas de que serão sujeitos a duas semanas e meia de treino.
Esta opção também não seria inédita nesta guerra. Como recordou o general Isidro Pereira em entrevista ao Expresso, o Terceiro Corpo do Exército, constituído sobretudo por voluntários, foi enviado para o terreno sem o treino apropriado. Uma parte foi estacionada em Kharkiv (Carcóvia) e tornou-se nas últimas semanas “presa fácil” para as tropas ucranianas.
Contudo, desta vez, até alguns comentadores russos mostraram preocupação sobre a preparação das tropas. Nos últimos dias foram vários os casos de convidados televisivos a questionar a capacidade industrial da Rússia para se rearmar e a criticar que os novos recrutas não podem receber “capacetes de ferro de 1941”.
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