Cazaquistão mostra-se “frio” com Moscovo, mas serão as consequências da neutralidade demasiado pesadas a longo prazo?
Kassym-Jomart Tokayev, presidente do Cazaquistão, e Vladimir Putin, chefe de Estado russo
Mikhail Svetlov
O Cazaquistão e a Bielorrúsia são os países que se mantiveram mais próximos de Moscovo depois da queda da URSS. Acontece que enquanto o Presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, está claramente do lado da Rússia na guerra da Ucrânia, o cazaque Kassym-Jomart Tokayev tem-se posicionado mais longe do Kremlin. Com 80% de todo o gás e petróleo do Cazaquistão a depender de um porto no mar Negro para chegar aos clientes, qual é o limite da rebeldia?
O Cazaquistão é uma das maiores ex-repúblicas soviéticas. Muito dependente da Rússia, mas também com laços económicos ativos com Kiev, tem vindo a fazer um esforço por se posicionar como neutro na guerra que dura há seis meses. Isso traduz-se, na prática, num afastamento em relação a Moscovo, a sua órbita natural na geopolítica mundial.
Pode até entender-se que o Presidente russo, Vladimir Putin, esperasse apoio claro do Cazaquistão à sua guerra contra a Ucrânia dada a densa relação que os dois países continuaram a manter mesmo depois da queda da URSS. Não parece ser esse o plano em Nur-Sultan, capital cazaque.
As consequências desta posição desafiadora, que assumiu vários ângulos, já se fazem sentir. A semana passada, um oleoduto no sul da Rússia, que transporta 80% das exportações de petróleo do Cazaquistão, voltou a limitar os envios, ameaçando a mais importante fonte de rendimento do país (40% da receita estatal) e alimentando especulação de que Moscovo esteja a punir o Cazaquistão por este não ter alinhado na agressão contra a Ucrânia, por exemplo, aceitando legalizar importações e exportações paralelas, à revelia das sanções internacionais, coisa que os dirigentes do país se recusaram a fazer.
O Caspian Pipeline Consortium (CPC), que opera o oleoduto que vai do oeste do Cazaquistão a Novorossiysk, na costa russa do mar Negro, alega que foram detetados danos nos equipamentos submarinos, o que forçou a interditação de dois dos três locais de carregamento de navios-tanque normalmente disponíveis para as exportações cazaques.
“Durante trabalhos de manutenção de rotina, as equipas de mergulho […] encontraram fissuras nos nós que fixam as mangas do submarino aos tanques de flutuação”, informou o consórcio russo a 22 de agosto. É a quarta vez este ano que as exportações são interrompidas. Em março o CPC tinha alegado problemas técnicos no cais de embarque provocados por uma tempestade, em junho haveria um problema com um navio da II Guerra Mundial descoberto perto do porto, em julho detetaram-se “violações da lei ambiental” e, agora, as tais fissuras.
O Cazaquistão não se posicionou totalmente do lado Ocidente, não aprovou sanções, nem se envolve no mesmo nível de retórica exasperada contra as ações da Rússia que todos os dias vemos sair de Washington ou de Londres. Ainda assim, o seu Presidente, Kassym-Jomart Tokayev, tem revelado certo paralelismo de pensamento com alguns líderes ocidentais.
Kassym-Jomart Tokayev, presidente do Cazaquistão, e Vladimir Putin, chefe de Estado russo
As autoridades cazaques não deixaram de enviar ajuda humanitária à Ucrânia e têm mantido contato com o Presidente Volodymyr Zelensky. Símbolos de propaganda militar russa foram proibidos em locais públicos no Cazaquistão.
Em junho, Tokayev foi claro quanto à intenção do país em não reconhecer quaisquer “autoproclamadas repúblicas” ou outras que possam sair dos “referendos” russos nas zonas ocupadas da Ucrânia. Num discurso ao lado de Putin, em São Petersburgo, Tokayev definiu o que tem sido o princípio adotado pelo seu país. “Calcula-se que se o direito de todas as nações à autodeterminação se concretizasse em todo o globo, surgiram entre 500 ou 600 novos Estados, em vez dos 193 que hoje fazem parte da ONU. Claro que isso seria um caos. Por essa razão, não reconhecemos Taiwan, Kosovo, Ossétia do Sul e Abecásia. E, com toda a probabilidade, esse princípio será aplicado a entidades como Luhansk e Donetsk”.
Um mês depois, num telefonema para Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, Tokayev disse que gostaria de ajudar a Europa a evitar uma grave crise energética, disponibilizando-se para suprir parte das necessidades que possam surgir este inverno. Como vai fazê-lo com os momentâneos mas constantes garrotes ao fluxo de gás e petróleo impostos pela Rússia é um mistério por desvendar.
Nessa semana, o Cazaquistão foi ameaçado de poder sofrer um destino parecido com o que Moscovo desenhou para a Ucrânia. A reprimenda foi publicada no YouTube por Tigran Keosayan, marido da poderosíssima empresária Margarita Simonyan, diretora da televisão estatal Russia Today e do conglomerado de meios de comunicação social Rossiya Segodnya.
Keosayan tornou-se, depois do início da guerra, um dos mais ferozes apoiantes de Putin nos meios de comunicação social. “Cazaques, que tipo de ingratidão é esta? Olhem com atenção para o que se está a passar na Ucrânia. Se pensam que podem safar-se com essas atitudes, que nada vos irá acontecer, estão bem enganados. O mundo mudou, tudo mudou”, disse no vídeo. Sobre o direito do Cazaquistão à sua soberania muito se tem publicado nos meios de comunicação russos.
Um deputado da câmara baixa do Parlamento russo, do partido de Putin (Rússia Unida) disse, recentemente, que os dirigentes do Cazaquistão “sabem muito bem que, num amplo número de regiões e localidades com população predominantemente russa, a ligação ao que se chama hoje Cazaquistão é ténue”. Cerca de 18% da população residente no Cazaquistão é etnicamente russa, nas zonas do norte os russos são 50%.
O ex-Presidente russo Dmitry Medvedev, atual membro do Conselho de Segurança da Rússia e outra voz de apoio incessante a Putin, também defendeu que o norte do Cazaquistão podia ser absorvido pela Rússia, mas pouco depois apagou a publicação na rede social VKontakte (uma espécie de Facebook), que, no entanto, permanece na internet, como tudo.
Um homem é preso perto do parlamento do Cazaquistão a 7 de janeiro, durante os protestos da população contra a aumento do custo de vida que provocaram o caos em vários pontos do país
VYACHESLAV OSELEDKO/Getty Images
A pressão sobre a exportação de petróleo está longe de ser o único ponto onde Moscovo pode aplicar pressão, como explica o analista Temur Umarov, num artigo para o Carnegie Endowment for International Peace. “O Cazaquistão depende totalmente das importações da Rússia para adquirir uma variedade de alimentos, sobretudo óleo de cozinha, açúcar e leite. A Rússia também é fonte importante de petroquímicos, ferro e fertilizantes para o Cazaquistão, bem como de peças para automóveis. Ao todo, a Rússia responde por um quinto do comércio externo total do Cazaquistão, enquanto mais da metade dos fluxos de carga do Cazaquistão passam pela Rússia. As rotas alternativas – para a Europa através do Cáucaso Meridional, para o sul através do Usbequistão e Turquemenistão, ou de comboio para a China – são muito mais caras”.
Tokayev, conhecido de Putin, sabe que o país não pode dar-se ao luxo de escolher ou preto ou branco, por estar numa intersecção complexa entre o Ocidente, a Rússia e a China. Porém, ao olhar para a narrativa que o Kremlin encontrou para conseguir invadir a Ucrânia, é fácil entender que a mesma pode ser acionada para intervir no Cazaquistão.
Retorno à casa-mãe
“Embora a China e o Ocidente tenham influência considerável sobre o país, o Cazaquistão sempre foi especialmente vulnerável à influência russa. Há muitas razões para isso, incluindo complexidades históricas, económicas e energéticas, e a parcela significativa de russos étnicos nas cidades fronteiriças do norte do Cazaquistão. De tempos em tempos, as autoridades russas referem essas cidades e territórios como historicamente russos e contemplam abertamente o seu retorno à casa-mãe. Considerando esse sentimento subjacente, para o Cazaquistão a questão ucraniana não se prende diretamente com a integridade territorial e a segurança do país”, escreveu a especialista em assuntos cazaques Aliya Askar no site de análise geopolítica “The Diplomat”.
No mesmo texto, a analista explica que a intervenção das “tropas de manutenção da paz” que Putin enviou para o país para suster os tumultos de janeiro de 2022 ajudaram a manter Tokayev no poder. É outras das razões por que não virá do Cazaquistão nenhuma afirmação verdadeiramente condenatória e hostil contra a guerra de Putin.
De qualquer forma, Tokayev deixou claro em São Petersburgo, no dia em que afirmou que o Cazaquistão não tinha intenção de reconhecer a anexação da Crimeia nem as autoproclamadas repúblicas no Donbas, enfurecendo Putin, que a Rússia não salvou o Cazaquistão do caos e que o seu país não vai “ser subserviente e fazer vénias” a Moscovo por causa da ajuda militar de janeiro. Para piorar as coisas, Tokayev recusou a distinção da Ordem de Alexander Nevsky, uma das altas honras que o Estado russo atribui.
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