Isolamento não é obra do Ocidente, já tinha sido "projetado por Moscovo". Dugin, "guru" de Putin, elogia "soberania integral" da Rússia
Aleksandr_Dugin
Fars Media Corporation (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Aleksandr_Dugin_13981126000.jpg)
Aleksandr Dugin é um nome a ter em conta quando se analisa o desejo russo de recuperar hegemonia. A investigadora Sónia Sénica acredita que Vladimir Putin se inspira neste pensador, "guru" ou filósofo, que profetiza a chegada do período de "soberania integral" russa, com o afastamento voluntário em relação ao Ocidente. Dugin aponta bases teóricas e até normas para este novo momento de "Putinismo" e autoridade no país
Ou a soberania ou o Ocidente: é "irreversível". A Rússia está entre um passado que já terminou e um futuro que começou, mas ainda não foi materializado. É desta forma que Aleksandr Dugin dá as boas-vindas a uma nova era de apogeu russo no mundo, após um corte voluntário - e esta ideia tem para o Kremlin grande importância - com o Ocidente. No seu mais recente artigo, o filósofo, "guru" e pensador russo próximo do poder sustenta que 24 de fevereiro de 2022 - o início da guerra na Ucrânia, ao qual chama, como o regime, "OME" [operação militar especial] - aconteceu porque, na aproximação da Rússia aos países ocidentais, por anos a fio, a sua "soberania" não foi respeitada.
Sónia Sénica, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais e conhecedora da obra de Dugin e da cultura russa, lembra, em declarações ao Expresso, que a visão da Rússia nos países ocidentais e aliados dos Estados Unidos da América é bastante distinta da autoavaliação feita por Moscovo. Na ótica interna, a Rússia é "uma democracia soberana, um conceito de [Vladislav] Surkov que remete para uma democracia robusta, de liderança forte, personalizada, com uma sociedade civil que, não só legitima a liderança política, como a apoia e sustenta".
"Nós rompemos irrevogavelmente e radicalmente com o Ocidente, mas isto ainda não foi compreendido", avisa o pensador político que tem apontado, ao longo dos anos, que a Rússia está a afirmar o seu "estatuto de grande potência no mundo". O grande defensor do imperialismo russo divide a História em três momentos: os anos 1990, em que a Rússia tentou "desesperadamente" integrar-se no quadro geopolítico ocidental, a liderança de Putin, com uma contínua demarcação no sentido de recuperar soberania, e o momento de viragem que consiste no "período indefinidamente longo da existência da Rússia, isolada do Ocidente e sob sua dura e puramente negativa pressão".
Dugin "influencia a política externa da liderança de Putin" há 22 anos
Existe um fosso entre os dois polos que se inicia, mas não se extingue, na narrativa histórica, sublinha Sónia Sénica. A Rússia não entende que foi uma perdedora da Guerra Fria; entende que foi uma decisão interna avançar para a dissolução da URSS. Assim como a Rússia não olha para a Segunda Guerra Mundial como uma vitória dos aliados. "A Rússia olha para o conflito como uma grande guerra patriótica. Se não fosse o Exército soviético, não havia a derrota do nazismo."
Ainda assim, "depois do fim da União Soviética e da Guerra Fria, houve um período tumultuoso em termos políticos e sociais, sob a liderança do Presidente Yeltsin", comenta a investigadora. Os anos 1990, conturbados para uma Rússia em reconfiguração, ajudam a explicar que tenha ascendido ao poder uma liderança como a de Vladimir Putin, "que tenta novamente exaltar o ego e o patriotismo russo".
Aleksandr Dugin faz eco desse apelo: "É preciso fazer um esforço para avançar em direção a este futuro. O povo soviético não conseguia acreditar que a URSS e o comunismo tinham entrado em colapso, e os liberais dos anos 1990 acreditavam que Putin era temporário, e que tudo voltaria. É difícil acreditar no novo, como é agora."
Estas não são, porém, ideias novas. Sónia Sénica encontra, nos livros, discursos e manifestos públicos de Dugin, a bula para este momento da História, que, em detrimento da "libertinagem e declínio ocidentais", adota uma doutrina paternalista. "Dugin tem dito que a Rússia deve ser respeitada internacionalmente como um grande poder, remetendo para o seu passado histórico, para a sua civilização e para os valores que defende, quase como o último reduto dos princípios do cristianismo ortodoxo e da sociedade muito conservadora. É percecionado, muitas vezes, como alguém que influencia a política externa desta liderança de Putin ao longo de 22 anos."
"Há claramente uma influência na narrativa oficial russa e processo decisório de política externa e interna das ideias e do projeto proposto por Dugin para esta grande Rússia, não só historicamente relevante, mas também impactante em termos internacionais, com um espaço de influência que deve ser respeitado pelos seus pares", frisa a investigadora, que encontra na obra de Dugin "orientações muito claras de política externa", com, por exemplo, a guerra na Ucrânia a ser "projetada há vários anos".
Mas Aleksandr Dugin, apelidado de o "cérebro de Putin" ou até de "Rasputin de Putin", vai mais longe no seu texto e chega a explicar por que foi este o momento escolhido para precipitar a guerra na Ucrânia. De acordo com o filósofo, sob a égide da governação de Donald Trump, as tensões entre os EUA e a Rússia viveram um momento de acalmia. "Trump não prestou muita atenção ao crescimento da soberania russa", escreve Dugin, que não vê o antigo Presidente norte-americano como "um atlanticista convicto". Por isso, Trump "julgou que o modesto desempenho da economia russa não representava uma séria ameaça", não se importando com a Crimeia, mas, sim, com a China.
A governação de Joe Biden, o "atlanticista convicto e globalista", veio mudar tudo, frisa Aleksandr Dugin. Biden, analisa o pensador, "está bem ciente de que qualquer sucesso russo na expansão da sua influência desafia a globalização, o mundo unipolar e a hegemonia norte-americana".
A ingerência russa nas eleições norte-americanas de 2016 manteve-se como uma "sombra a pairar sobre a administração Trump", admite a investigadora Sónia Sénica. Esse é um dos fatores que ajudam a explicar que ambas as lideranças tenham sido muito diferentes aos olhos do Kremlin. Se, durante a governação de Donald Trump, "o maior antagonista internacional de Moscovo teve uma liderança pró-Rússia", com Joe Biden, a Rússia viu-se mais pressionada. "Ainda antes da campanha internacional, Biden olhava para a Rússia como a maior ameaça e já chamava assassino a Putin antes da invasão", refere Sónia Sénica, que já frequentou a Academia Diplomática do Ministério dos Negócios Estrangeiros Russo, em Moscovo, em 2003.
Sónia Sénica defende que as teorias de Dugin se materializam em decisões de política externa. E, de facto, nas suas palavras, Aleksandr Dugin imprime autoridade. Primeiro, faz acusações: "Desde o verão de 2021, os EUA e a NATO começaram a planear uma operação militar para capturar o Donbas e atacar a Crimeia. Assim, o Donbas foi transformado num poderoso centro de futura agressão militar contra a Rússia, com instrutores e mercenários estrangeiros." Depois, justifica a ação do próprio regime: "Putin não esperou até ao início de março, momento para o qual a operação foi planeada, e atacou primeiro." E, tal como o Kremlin, dá como bem-sucedida a primeira fase da guerra, isto é, como concluída "a favor" da Rússia.
Aleksandr_Dugin
Fars Media Corporation (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Aleksandr_Dugin_13981126000.jpg)
"Putinismo", eixo euroasiático e purgas "absolutamente necessárias"
Com maior "soberania" e desprezo pelas normas internacionais, a Rússia começa a trilhar o caminho do autoritarismo formal. É, pelo menos, resume Dugin, o que se pode ler nestas linhas sobre o poder incontestável: "Isto [este momento] exigirá uma institucionalização da doutrina de Putin, e não apenas lealdade a ele pessoalmente. Implicará o estabelecimento de uma nova ideologia, uma espécie de "Putinismo", no qual os princípios básicos da soberania integral seriam consagrados, e, em seguida, outros mecanismos políticos e administrativos também teriam de ser incorporados." A necessidade "ideológica" é, por isso, assumida: "Sem uma ideologia original completa, não sobreviveremos ao confronto com o Ocidente. A ideologização da Rússia é inevitável, não pode ser evitada."
O pensador russo coloca as detenções arbitrárias ao serviço do regime e da identidade do Estado, alertando que "o lugar dos traidores e liberais é predeterminado pelas leis dos tempos de guerra e emergência", pelo que as purgas serão "inevitáveis e absolutamente necessárias". Ainda não começaram, "mas certamente começarão, não são o principal e nem mesmo o secundário", rejeita Dugin, ao mesmo tempo que lamenta que a elite russa se preocupe com demissões e prisões. "Quem não concorda com a soberania e o eurasianismo já está morto. Isso é indiscutível."
Dugin faz questão de afirmar que a Rússia é que se afastou dos Estados ocidentais, e não o contrário, "como o Ocidente gostaria". Essa "vocação euroasiática" e o "excecionalismo russo", como assinala Sónia Sénica, não são exclusivos do discurso de Putin. O Presidente russo vai beber às palavras do teórico inspiração para a "contestação da ordem internacional, da hegemonia norte-americana e do alargamento das instituições NATO e UE".
A investigadora portuguesa concorda com Dugin neste aspeto: a tentativa de isolamento ocidental não está a resultar. "Há uma tentativa clara para tentar isolar a Rússia através desta estratégia dual, económica e da concertação de reforço de baterias, mas a Rússia está a fazer o mesmo. Era algo que já estava previamente equacionado em Moscovo."
A Rússia, que já era alvo de sanções, antecipou o seu reforço, firmando uma "parceria ilimitada com a China" e organizando "deslocações para países africanos e do Médio Oriente, feitas por Lavrov", assegura Sónia Sénica. "A Índia é um parceiro muito relevante dos EUA na questão do Indo-Pacífico, mas é um dos principais parceiros comerciais da Federação Russa. Não condenou a Rússia, e não alinhou nas sanções económicas."
Aleksandr Dugin até antecipa os parceiros que a Rússia deverá aliciar, escrevendo: "Hoje tudo depende de como construímos relações com a China, Índia, Turquia, Irão, países do Médio Oriente, Estados africanos ou a América Latina."
A raiz ideológica a que Vladimir Putin se cola é essencial para compreender a política externa russa. Sónia Sénica refere-se às palavras de Dugin como "ideias confluentes defendidas por Putin e prestigiados nomes da academia, como Karaganov, que influenciam o Kremlin". O alerta de Dugin também está lançado: "Temos de começar com o principal, que é a ideologia. Tudo o resto é secundário. Algo me diz que aqueles que estão no poder e que são verdadeiramente responsáveis pelo destino do país e do povo pensam exatamente da mesma forma."