“Perante uma ameaça comum, todos queremos perceber o que se está a passar”: mas como gerir a ansiedade causada pela avalanche de notícias de guerra?
(Foto: Filip Radwanski/SOPA Images/LightRocket via Getty Images)
A informação sobre a Ucrânia chega a um ritmo vertiginoso. Se é normal sentirmo-nos mais colados às notícias nestas circunstâncias, por outro lado a exposição excessiva a estes conteúdos pode ser prejudicial para a saúde mental. O Expresso falou com um especialista na área da comunicação e com uma psicóloga sobre como equilibrar o consumo do fluxo noticioso
As notícias da Ucrânia chegam-nos ao minuto e em tempo real, num fluxo contínuo de novas informações. A cada atualização de página nos jornais, a cada nova emissão dos noticiários na televisão e rádio, a cada clique nas redes sociais. Se há uma semana já tínhamos ouvido falar de Kiev e até da Crimeia, hoje reconhecemos nomes como Donbass, Lviv, Kharkiv e Mariupol. Aprendemos sobre os Acordos de Minsk e sobre o Nord Stream, decoramos o nome Volodymyr Zelensky.
“O consumo de media aumenta sempre em momentos de crise”, explica Miguel Crespo. “Perante uma ameaça comum, todos nós – mesmo os que nos preocupamos menos em estar informados sobre o que se passa no mundo – queremos perceber o que se está a passar, queremos fazer parte. Tal como no início da covid as audiências de todos os meios de comunicação social em todo o mundo aumentaram exponencialmente, também neste momento de guerra as pessoas querem saber mais. Sempre foi assim e provavelmente sempre será.”
A diferença neste momento, afirma o jornalista e investigador do CIES Iscte (Centro de Investigação e Estudos de Sociologia), é que “antigamente era apenas pelos meios de comunicação social, hoje além destes temos obviamente as redes sociais e todas as plataformas digitais”.
Nestas circunstâncias, ficar colado às fontes de informação pode ser “para algumas pessoas, uma estratégia de controlo da sua própria ansiedade”, corrobora Renata Benavente. “O desconhecido pode ser muito perturbador e para algumas pessoas estar sempre em cima do acontecimento pode ser mais pacificador do que não ver notícias. É preciso perceber o impacto que isto tem na saúde psicológica e isso tem de ser avaliado no contexto de cada pessoa, mas de forma geral não é positivo estarmos em permanência a receber informação sobre situações que são geradoras de stress e ansiedade para qualquer um.”
A vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses sublinha que “este acontecimento vem numa altura em que as pessoas estão muito fragilizadas [devido aos dois anos de pandemia] e o impacto que isto tudo tem na saúde mental e no bem estar psicológico vai ser ainda mais acentuado”.
Do “stress de consumo mediático” ao “puzzle incompleto” de quem só lê “as gordas”
Para Miguel Crespo, o enorme fluxo de informação não é um exclusivo deste conflito, mas resulta antes do “mundo e do mundo mediático em que vivemos”.
“Todos nós somos bombardeados desde que acordamos até que vamos dormir por um excesso de informação que nos chega por todas as vias. A única certeza que temos é que hoje, quando chegar a hora de irmos dormir, não conseguimos consumir toda a informação que gostaríamos. E informação no sentido mais lato, não apenas jornalística. Também nunca conseguimos recuperar a informação que deixámos para trás. A lógica de guardar para depois que tantas plataformas têm é apenas algo para acalmar o nosso stress de consumo mediático, porque nunca voltamos lá, porque no dia seguinte recomeça tudo outra vez.”
Como consequência, acabamos por consumir sobretudo “aquilo que na gíria jornalística se diz ‘as gordas’”, ou seja pouco mais que os títulos e destaques. “Isto não tem que ver com públicos específicos. Não tem que ver com as pessoas menos letradas ou com um nível socioeconómico mais baixo. É um problema de todos.” No entanto, como resultado final “ficamos com um puzzle em que faltam muitas peças e isto condiciona a perceção que temos dos acontecimentos.”
(Foto: Antonio Masiello/Getty Images)
“Num conflito, qualquer das partes envolvidas, direta ou indiretamente, vai querer controlar a informação”
No contexto específico atual, a nossa visão dos acontecimentos é ainda mais condicionada. “Num conflito, qualquer das partes envolvidas, direta ou indiretamente, vai querer controlar a informação. Aquilo que é a informação supostamente livre do lado ocidental não é tão condicionada como do lado russo, até porque temos uma perspetiva pela via das últimas décadas que nos indica isso, mas tem algumas limitações. Nunca conseguimos ter uma visão real e global do que está a acontecer.”
Estas limitações, no caso dos países democráticos, prendem-se por exemplo com o facto dos jornalistas não poderem estar exatamente no centro do conflito. “Os jornalistas, mesmo os que estão mais perto, estão a X quilómetros.” Assim, alguma da informação que chega aos meios de comunicação “não é credível ou confirmável”, explica o investigador dando o exemplo da coluna militar russa que se aproxima de Kiev e da qual temos imagens sem que nenhum jornalista ocidental tenha podido aproximar-se.
Do lado da Rússia, a informação é condicionada pelo próprio governo. “Estamos a falar de um regime que, como todos os regimes não democráticos, controla a informação e os meios de informação. Os meios na Rússia apenas reproduziram a versão oficial dos factos, tal como têm alguns condicionamentos. Nos últimos dias, palavras como invasão e guerra são palavras proibidas.
Isso não quer contudo dizer que tudo o que é veiculado seja mentira. “Entrou-se aqui numa histeria de cortar o acesso à RT e à Sputnik. Estamos a fazê-lo ao mesmo tempo que criticamos o facto da Rússia por fechar rádios, sites ou jornais que não lhe são favoráveis. Estamos exatamente a fazer a mesma coisa, sendo que achamos que uma é boa e a outra é má. Isso é no mínimo hipócrita”, critica.
O investigador que o MediaLab do Iscte tem um estudo, realizado antes do conflito, que concluiu que não só “o impacto destes dois meios em Portugal era basicamente zero” como “a maior parte dos conteúdos emitidos eram tão factuais como as da CNN e da BBC”. “A diferença é que pelo meio tinha coisas que eram favoráveis ao regime e aos interesses russos.”
Desinformação, contrainformação e as redes sociais
A Guerra do Vietname, nos anos 60, foi o primeiro conflito televisionado. Esta cobertura mediática foi, segundo os especialistas em comunicação, determinante para a construção da opinião pública que ditou o final da intervenção norte-americana. Desde então, os media evoluíram e a cobertura dos conflitos também. A Guerra do Golfo (1990-1991) foi a primeira guerra a acontecer em direto na televisão. A Invasão do Iraque (2003) foi a primeira na era da internet, quando devido à proliferação dos blogues, “pela primeira vez, a informação chegava às pessoas não apenas pelas vias oficiais e pelos media tradicionais.”
O conflito da Ucrânia acontece na era das redes sociais. “O que agora é diferente é que existem redes sociais e portanto qualquer cidadão, esteja no teatro de guerra ou não, pode partilhar informação – seja ela fidedigna, real ou inventada. Temos acesso a muito mais informação, mas temos também dificuldade em identificar qual é a informação que pode ou não ser confiável ou fidedigna.”
No entanto, Miguel Crespo considera que “este não é o contexto em que a desinformação pode ser mais problemática”. “A opinião pública dos países democráticos está praticamente feita e se calhar até já estava feita antes da guerra começar. A desinformação que venha do lado da Rússia para os países ocidentais não vai ter impacto porque esta só funciona quando as pessoas já têm predisposição para acreditar nela. Quando as pessoas já tomaram a sua posição (neste caso: a culpa é dos russos e os ucranianos são as vítimas), por muito que haja desinformação russa a dizer o contrário, é difícil que as pessoas acreditem ou que mudem de opinião.”
“A desinformação foi importante nos anos anteriores ao conflito e será depois de terminar, independentemente de como e quando. E será quando puder influenciar (ex. momentos de eleições ou referendos, como foi o caso das presidenciais dos EUA e o Brexit)”, acrescenta. Embora “a desinformação não altera aquilo que as pessoas pensam sobre a guerra, pelo menos de forma imediata, se uma guerra destas durar anos, então alguma desinformação poderá ter algum efeito”.
Por enquanto, defende, “o que vai funcionar é a desinformação que é típica de todas as guerras”, isto é, as estratégias de “contrainformação” que já constavam nos “manuais da II Guerra Mundial de todos os participantes”. Veicular certas narrativas, como por exemplo se uma cidade já caiu, pode ter um impacto na moral de quem está no terreno.
O que posso então fazer para estar melhor informado sem pôr em causa a minha saúde mental?
Neste cenário, “o que podemos fazer é ser descrentes em relação a toda a informação que nos chega, incluindo pelos meios que consideramos credíveis, em especial nas redes sociais”, aconselha Miguel Crespo.
Recorrer a fact checkers, a vários meios de comunicação social e comparar informação são consideradas boas práticas. Assim como olhar para as datas de publicação e fazer pesquisa reversa de imagens (isto é, arrastar a imagem para o motor de busca para ver onde foi publicada). “Se aparecer alguma publicação anterior à semana passada é porque essa imagem não é desta guerra”, explica o investigador do CIES Iscte.
Por outro lado, Renata Benavente reitera que “é útil mantermo-nos informados, mas é importante evitar a exposição excessiva e, na medida do possível, evitar também que as crianças e jovens tenham um contacto tão permanente e intenso com estas notícias.”
“Cada vez que nos confrontamos com este tema estamos a expor-nos a um fator do stress adicional. O que será benéfico para o nosso bem estar e saúde mental é conseguirmos fazer uma vida o mais aproximada do normal, naturalmente mantendo-nos informados sobre o que está a acontecer no mundo”, afirma a psicóloga.
“Este recurso compulsivo às fontes de informação não é positivo e pode até refletir alguma componente mais ansiogénica que a pessoa possa ter. É preciso trabalhar isto internamente. A pessoa tem de estabelecer limites para si própria.” Por isso, sugere, cada um pode estabelecer horários para consumir notícias. Por outro lado, é aconselhável adotar as estratégias que já foram eficazes noutros momentos de stress e ansiedade que enfrentámos nas nossas vidas (seja ler um livro, ouvir música calma, fazer uma caminhada, etc).
Aderir a iniciativas de apoio aos ucranianos também pode ajudar a dar “um sentido para elaborar e no fundo gerir uma situação que é absolutamente angustiante para todos”. “Este sentimento de controlo e de que estamos a conseguir fazer alguma coisa para apoiar quem mais precisa é uma dimensão muito importante neste equilíbrio entre a negatividade associada à guerra e a esperança no futuro.”