Espanha

Gorka Elejabarrieta, dirigente independentista basco: “O referendo à independência não é direito exclusivo da Catalunha”

Gorka Elejabarrieta fotografado no Senado espanhol, em Madrid
Gorka Elejabarrieta fotografado no Senado espanhol, em Madrid
Gorka Castillo

Responsável de política internacional da coligação independentista basca Euskal Herría Bildu (EHB, Unir o País Basco) e perito em resolução de conflitos, Gorka Elejabarrieta frisa que mais importante do que levar a autodeterminação a votos é nós é reconhecer a “plurinacionalidade” de Espanha. E assegura: “O PSOE entendeu que tem de avançar nessa direcção se quiser governar”

Gorka Elejabarrieta, porta-voz no Senado da coligação independentista basca Euskal Herría Bildu (EHB, Unir o País Basco), é um homem tranquilo e sabe gerir o tempo. Deu esta entrevista ao Expresso minutos antes de o presidente do governo regional catalão, Pere Aragonès, comparecer na câmara alta do Parlamento espanhol para defender a amnistia aos envolvidos no processo separatista e um referendo de autodeterminação como o que se celebrou na Escócia em 2014.

A Esquerda Republicana da Catalunha, em que milita Aragonès, e o EHB estão entre os partidos cujos votos serão necessários para uma eventual investidura de Pedro Sánchez, do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, centro-esquerda), como primeiro-ministro. Nessas contas entram também o Partido Nacionalista Basco, o Juntos pela Catalunha e o Bloco Nacionalista Galego. O que leva a oposição de direita a falar de risco de fragmentação de Espanha.

O EHB é associado à ETA, por ser herdeiro político do extinto partido Batasuna, que nas suas várias encarnações foi braço político do grupo terrorista autodissolvido em 2018, deixando um rasto de centenas de mortos e milhares de afetados. Elejabarrieta fala com clareza: “O EHB é uma coligação de partidos em que participa gente que nos momentos em que existia a ETA teve uma visão diferente do que estava a acontecer. A partir dessa posição diferente sobre o passado, fomos capazes de construir um presente juntos e, mais importante, estamos comprometidos a construir um futuro juntos”.

Há dias participou numa reunião com Pedro Sánchez, a primeira a nível oficial entre o EHB e um candidato a primeiro-ministro em Espanha. Como qualifica esse encontro?
Foi mais um passo na normalização das relações entre duas forças políticas importantes. Para nós foi um encontro histórico, digo-o sem banalizar o momento. Pensamos que corrobora outros passos que se foram dando num processo de resolução do conflito basco e de normalização. Sem dúvida, a reunião abre uma janela nova e contribui para fechar parte de um cenário de desencontros que pertence ao passado.

Parte da sociedade basca e espanhola continua a recordar a relação do seu partido com a ETA. A ferida não está sarada.
Faz hoje doze anos que a ETA pôs fim ao uso da violência. Foi a sua resposta a uma conferência internacional em que importantes dirigentes mundiais, como Kofi Annan [antigo secretário-geral da ONU], Bertie Ahern [antigo primeiro-ministro irlandês] ou Gro Harlem Brundtland [antiga primeira-ministra norueguesa] puseram sobre a mesa um roteiro que visava a resolução integral do conflito basco. Recordo isto porque creio que aquela declaração solene de cinco pontos permanece vigente, e alguns dos passos que o Estado espanhol tem dado em relação ao País Basco têm que ver com aquele roteiro.

Doze anos é muito ou pouco tempo para se continuar a utilizar politicamente a ETA?
Depende do ponto de vista. É evidente que o EHB é uma coligação de partidos e um movimento em participa gente que nos momentos em que existia a ETA teve uma visão diferente do que estava a acontecer. Gostamos de sublinhar que a partir dessa posição diferente sobre o passado, fomos capazes de construir um presente juntos e, o mais importante, estamos comprometidos a construir um futuro juntos. O que é curioso é que o EHB não coexistiu com a ETA. Foi fundado depois, embora seja verdade que muitas vezes se lhe aponta uma suposta relação com esse passado.

Quando acabará isso?
Não sei. O que vemos é que é preciso aprender a tecer um relato partilhado a partir de visões diferentes do que se passou no País Basco. Não há um relato único, pensamos que a soma de todos é, definitivamente, o relato partilhado que desejamos. Exercícios similares foram postos em prática com êxito noutros países. Casos como a África do Sul ou a Irlanda são bons exemplos. É certo que não existe um modelo perfeito para olhar o passado e construir um presente e um futuro. Na Irlanda, há polémica em torno ao que chamam “conluio”, a relação que as forças da ordem pública britânicas mantiveram com os grupos paramilitares. Não há dúvida de que o conflito basco causou graves consequências, ainda por resolver. As causas que o geraram ainda subsistem. Acreditamos que é preciso continuar a avançar na construção de um futuro partilhado, porque é o que todos queremos.

Gorka Elejabarrieta (à direita na imagem) cumprimenta o primeiro-ministro Pedro Sánchez, na presença do deputado socialista Santos Cerdán e da deputada independentista basca Mertxe Aizpurua
ÓSCAR DEL POZO/AFP/Getty Images

O presidente do Partido Popular [conservador], Alberto Núñez-Feijóo, alerta que Espanha caminha para a balcanização se Sánchez normalizar politicamente grupos separatistas como o seu.
O que ele pretende com declarações tão fortes é bloquear qualquer tipo de acordo de Sánchez com forças políticas de territórios como o País Basco e a Catalunha, que em Madrid definem como “periferia”. Pessoalmente, falar de balcanização pareceu-me um salto qualitativo em relação a tudo o mais que disseram, pois refere-se a um país que acabou por se dissolver numa guerra. Historicamente, o PP sempre encarou com pavor qualquer passo para o aprofundamento democrático e a descentralização do Estado que reconheça a plurinacionalidade do país. Sempre que se tenta falar destes conceitos em Espanha, o PP está contra. Agora chama-lhe balcanização, ontem era desmembramento do Estado ou rutura. Fá-lo sempre com uma carga muito dramática. Na verdade, o que teme é aceitar que a realidade plurinacional deste país acabe por se manifestar nas estruturas do Estado. Continua a não perceber que a complexidade de Espanha exige um esforço para abrir o debate sobre um novo modelo territorial, e que será difícil governar sem a cumplicidade das formações políticas independentistas catalãs e bascas.

Pensa, portanto, que o modelo autonómico espanhol está obsoleto?
A Constituição, que foi uma fórmula acordada há quase 50 anos entre militares franquistas e os partidos políticos da época, não pode ser ad ӕternum. Passaram muitos anos e nada mudou, embora boa parte dos cidadãos não tenha votado [no referendo à Constituição, em 1978], porque não tinha idade ou nem tinha nascido. A Constituição não pode ser utilizada como travão aos desejos que a vontade popular expressa no País Basco e na Catalunha, de forma regular.

Mas a oposição do PP impede que se pense numa revisão constitucional.
Sim, mas também é evidente que, mesmo sem revisão, o bloco que pode viabilizar a investidura de Sánchez garante maioria suficiente para iniciar de forma decidida a abertura desse debate.

Em que sentido?
No sentido do reconhecimento da plurinacionalidade do Estado e das nações que o compõem. Julgo que já é hora. As forças políticas catalãs e bascas puseram isso sobre a mesa e o PSOE percebeu que tem de avançar nessa direção para governar.

Se for acordado um referendo na Catalunha, terá de haver outro no País Basco?
O referendo não é direito exclusivo da Catalunha. Algumas questões dessa negociação afetam também as reivindicações de soberania dos bascos, embora vivamos situações diferentes e cada um tenha as suas características. Se falarmos da plurinacionalidade do Estado, é difícil reconhecer a Catalunha sem reconhecer o País Basco. Para tal, porém, é preciso um trabalho de ourivesaria política que incentive a cooperação entre partidos independentistas. No nosso caso, temos de nos entender com o Partido Nacionalista Basco [centro-direita] numa proposta comum para levar a Madrid, mas haverá assuntos que requerem o contributo dos partidos catalães, porque isso nos dá mais força nalguns aspetos do debate e mais hipótese de síntese nos objetivos a pactuar com o Governo espanhol. Para construir um cenário desta magnitude, é importante ter regras claras desde o começo, conhecer os limites da negociação e as possibilidades que temos. Pôr o foco unicamente nas linhas vermelhas é um erro. Na nossa opinião, é mais construtivo construir um acordo a partir dos pontos comuns entre as partes e não do que nos divide. Processos semelhantes avançaram com esses princípios. A África do Sul do pós-apartheid era mais ou menos isso. Na Irlanda construíram assim o Acordo de Sexta-feira Santa. Em Espanha são precisos todos para construir um acordo histórico que permita uma nova realidade territorial.

Sem renunciar às aspirações separatistas, há algum encaixe territorial em vos fizesse sentirem-se cómodos dentro de Espanha?
Somos independentistas e reclamamos a construção de um Estado próprio para responder de forma mais eficaz aos interesses e necessidades do nosso povo, tanto a nível material como cultural, social e linguístico. Dito isto, não excluímos nenhum cenário intermédio entre o status quo autonómico atual e essa configuração ideal de futuro. O que dizemos é que o novo quadro territorial, seja qual for, tem de ser acordado com o Estado central e referendado pela maioria, no nosso caso, do povo basco.

Surpreende o pragmatismo que o EHB tem demonstado para chegar a acordo com forças como o PSOE no Congresso dos Deputados.
O EHB é uma coligação de partidos políticos, uma espécie de Frente Ampla, que aglutina muitos sectores progressistas e independentistas do povo basco, que tem maneiras diferentes de entender o País Basco e o Estado espanhol. Trabalhamos de forma constante nesta direção, que começa no nível municipal, local, e tem como objetivo final mudar a fundo a realidade social, política e institucional. Também somos um movimento com grande vocação internacionalista, que olha com muito interesse para todos os acontecimentos a nível global, com visão crítica sobre a direção que tomou este planeta onde habitamos. Cremos que a partir do nível local podemos contribuir para essa mudança, cooperando com outros movimentos globais que lutam pela soberania dos povos, o ambiente e a justiça social. Dentro dessa lógica, trabalhamos com o conjunto do Estado espanhol, não só nas instituições como a nível popular e de mão dada com os movimentos sociais.

Não é contraditório defenderem a independência enquanto negoceiam a investidura de um primeiro-ministro de Espanha?
O povo basco premiou este trabalho e queremos seguir por essa via. Continuaremos a apoiar o aprofundamento das melhorias sociais e económicas a favor dos sectores mais vulneráveis do país, no Congresso dos Deputados. Queremos também dar a nossa visão da melhoria da convivência no País Basco e aspiramos a construir um novo modelo territorial no Estado. Pensamos que estes objetivos políticos são bons para a maioria social, não só para bascos e catalães. É bom para o conjunto do Estado e para uma Europa onde os populismos de direita começam a ter mais protagonismo. É bom para um mundo onde as guerras se multiplicam. Veja o que se passa na Palestina e na Ucrânia. Um dos fundadores dos tupamaros do Uruguai, Raúl Sendic, afirmou que se só nos centrarmos no que nos divide, podemos passar toda a vida a discutir, mas se nos centrarmos no que partilhamos, podemos passar o resto da vida a trabalhar juntos. É uma máxima que tivemos em conta ao construir o EHB.

Como responsável de política internacional do EHB, como vê a presente desordem mundial?
Estamos num momento de transição sistémica e, embora a História da Humanidade nos mostre que as mudanças globais profundas nunca surgiram de forma pacífica, ordenada e acordada, é preciso trabalhar para que seja assim. É óbvio que as instituições de governança mundial pacífica estão em crise. As Nações Unidas estão em crise. A sua capacidade de prevenir ou resolver conflitos latentes foi posta em causa. Os conflitos multiplicam-se. Há a Ucrânia e a Palestina, mas há muitos outros que não aparecem nos jornais. África é um paiol de pólvora. O mesmo sucede em Nagorno-Karabakh. Dentro dessa desordem global, em Europa há processos de direitização e populismo emergente muito preocupantes, que põem em perigo não apenas o desenvolvimento de cada um desses países, mas do continente no seu todo. A UE começa a ter sérias dificuldades em ter posição comum em assuntos estratégicos, em consequência do modelo de construção que se impôs.

Acredita que haverá acordo para investir Sánchez?
Existe diálogo, mas devemos ser discretos para que tenha êxito.

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