Feijóo aponta a Sánchez no debate de investidura: “Tenho ao meu alcance os votos para ser primeiro-ministro, mas não aceito o preço”
O presidente do Partido Popular (PP, direita), Alberto Núñez Feijóo, discursa no Congresso para tentar persuadir os deputados a apoiarem a sua investidura como primeiro-ministro
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O conservador Alberto Núñez Feijóo iniciou o debate de investidura, no Congresso dos Deputados, atacando os socialistas por estarem dispostos a amnistiar os independentistas catalães envolvidos na tentativa de secessão de 2017. Assegura que estes também se ofereceram para apoiá-lo, mas não está disposto a aceitar as condições que exigem
É quase certo que entre quarta e sexta-feira o Congresso dos Deputados espanhol rejeitará Alberto Núñez Feijóo para chefe do próximo Governo. O candidato e líder do Partido Popular (PP, conservador) assegura, porém, que lhe seria fácil obter os votos necessários, já que os independentistas catalães com quem negoceia o socialista Pedro Sánchez estariam em igual disposição de lhe dar apoio, desde que aceitasse as suas exigências.
Feijóo proferiu um discurso de 1h45, em tom cordial, ainda que crítico com o Executivo de esquerda. A sessão será retomada às 15h30 (14h30 em Portugal Continental) para as intervenções dos partidos e as réplicas do aspirante a chefiar o próximo Governo.
“Para Puigdemont é igual o primeiro-ministro ser eu ou o senhor”, atirou Feijóo a Sánchez, primeiro-ministro desde 2018 e secretário-geral do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, centro-esquerda). “Tenho ao meu alcance os votos para ser primeiro-ministro, mas não aceito pagar o preço que me pedem para tal.”
Vencedor das legislativas de 23 de julho passado, o político conservador — que inicia esta terça-feira a tentativa de investidura — tem o apoio garantido do Vox (extrema-direita) e das forças locais Coligação Canária e União do Povo Navarro. Vê nisso a prova de que é possível forças diferentes porem-se de acordo sem nenhuma subjugar as demais.
São 172 deputados, quando necessitaria de 176 (maioria absoluta de um total de 350) para ser empossado quarta-feira, na primeira votação, ou pelo menos mais votos a favor do que contra, na segunda ronda, sexta-feira. Feijóo concluiu a intervenção pedindo aos demais partidos que reconsiderem, incluindo os que são “nacionalistas ou abertamente independentistas”, invocando para tal os 14 anos em que presidiu ao governo regional da Galiza (2009-22).
Referindo-se à amnistia pedida pelos nacionalistas catalães ou a um referendo de autodeterminação da Catalunha, Feijóo ironizou: “Isso bastaria, não é? Não vou defender isso, porque tenho princípios e palavra”.
A afirmação de Feijóo suscitou uma reação rápida da porta-voz da frente de esquerda radical Somar, parceira dos socialistas no Governo. “Não tem ao alcance nenhuma maioria para ser presidente, pois se pactuasse com algum partido nacionalista ou independentista, perderia automaticamente o apoio dos 33 deputados do Vox”, frisou Aina Vidal.
Ainda assim, na reta final do discurso, Feijóo deixou o repto aos nacionalistas: “Que vos faz pensar que tudo o que se usa hoje para satisfazer as vossas exigências não será utilizado contra vós quando já não fordes precisos?”.
Feijóo assegura não desejar “um país de pensamento único” e aceitar “a sociedade plural que enriquece Espanha”. Embora não prometa dizer “sim a tudo” (nova farpa a Sánchez), está aberto ao diálogo dentro do marco constitucional.
Particularizando no Partido Nacionalista Basco (PNV) e no Juntos pela Catalunha (JxC, do antigo presidente regional Carles Puigdemont), criticou que se centrem em questões identitárias e pediu que refletissem sobre se o voto dos seus eleitores, mormente moderados e de centro-direita, serve para “aplicar o programa económico do Podemos [esquerda radical].”
Apelo aos valores da Transição Democrática
“Fora da Constituição não há democracia”, sentenciou, do púlpito da câmara baixa das Cortes, o dirigente popular, para quem os requisitos da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC, do atual chefe do governo regional catalão, Pere Aragonès) e do Juntos pela Catalunha (JxC) não são “jurídica nem eticamente aceitáveis”.
Reivindicando os valores da Transição Democrática de 1975-78 e o que une os partidos do centro democrático, assegurou que a posição que assume teria a aprovação de todos os antigos primeiros-ministros, do falecido Adolfo Suárez ao socialista Felipe González e aos conservadores José María Aznar e Mariano Rajoy. Incluiu mesmo José Luis Rodríguez Zapatero, o ex-governante do PSOE mais próximo de Sánchez, recordando que há 19 anos pediu apoio ao PP para chumbar o plano soberanista do então líder do governo regional basco, o nacionalista Juan José Ibarretxe.
Feijóo atirou-se ao PSOE, a quem acusa de ter deixado de dialogar com o PP e de purgar as suas fileiras de críticos internos, “que se limitam a recordar o que os senhores diziam há dois meses”. Garante, porém, visando Sánchez e falando-lhe diretamente, que “a sua atitude e os seus desprezos não alterarão a minha”. Espera, isso sim, por alguém que venha a chefiar o PSOE com outra diposição.
O primeiro-ministro socialista, Pedro Sánchez, assiste ao discurso de Feijóo ao lado da sua camarada Nadia Calviño, ministra da Economia, e da vice-primeira-ministra Yolanda Díaz, titular da pasta do Trabalho e chefe da aliança de esquerda radical Somar
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Para o líder do PP, é “uma grande falácia” pensar que só cedendo aos independentistas se pode viabilizar um Governo em Espanha. Feijóo lembra que os partidos nacionalistas catalães e bascos que negoceiam com Sánchez — ERC, JxC, PNV e Unir o País Basco (Euskal Herría Bildu, em basco, antigo braço político do grupo terrorista ETA) — somaram apenas 5,5% dos votos nas legislativas. “Nem o independentismo pode pretender nem o PSOE permitir que o Bildu decida por todos os espanhóis, quando há menos de seis meses incluiu mais de 40 terroristas nas suas listas”, atacou, recordando que o partido apresentou às eleições municipais de maio candidatos com crimes de sangue e penas de prisão no cadastro.
Feijóo não está disposto a “outorgar privilégios a quem pôs em grave risco a convivência” nem a “privar de todo o efeito as resoluções judiciais que castigaram essas graves condutas” — o que, a seu ver, pressupõe violar a separação de poderes. O aspirante a chefe do Executivo prefere criar um novo delito de “deslealdade constitucional” e agravar as penas do desvio de fundos, de que estão acusados vários nacionalistas catalães, incluindo Puigdemont. É o oposto de Sánchez, que promoveu a eliminação do delito de sedição, indultou os políticos que cumpriam penas e mexeu na configuração jurídica do desvio de fundos.
Catalães aumentam a parada
No mesmo dia, Aragonès subia a parada, em Barcelona, no parlamento autonómico catalão. Dirigindo-se não a Feijóo, a quem não apoiará, mas a Sánchez, que provavelmente será chamado a tentar a investidura depois do previsível fracasso do conservador, disse: “O futuro primeiro-ministro espanhol tem de se comprometer em encontrar a via para os cidadãos da Catalunha votarem. Há que chegar a um acordo sobre as condições em que a Catalunha poderá decidir sobre a independência".
Puigdemont, cujo partido rivaliza com a ERC pela hegemonia do nacionalismo catalão, demarcou-se de Aragonès. “Não sou da ERC, portanto não posso falar do que a ERC disser nem me sinto implicado pelo que a ERC disser, pactue ou deixe de pactuar”, afirmou na Bélgica, para onde fugiu em 2017 para evitar ser preso. Em Bruxelas, Puigdemont participava num ato em defesa do uso das línguas catalã, basca e galega nas instituições da União Europeia. Já foram adotadas no Parlamento espanhol, pois era uma das condições acordadas com Sánchez para encetar negociações para os partidos catalães viabilizarem a sua putativa recondução.
Face ao provável falhanço de Feijóo, os independentistas aumentam a pressão sobre Sánchez. Recorde-se que o dia de começo do debate põe a contar o prazo de dois meses para formar Governo, findo o qual é obrigatório repetir as eleições.
O presidente do governo autonómico da Catalunha, Pere Aragonès, discursou no parlamento regional ao mesmo tempo que o Congresso dos Deputados debatia a investidura de Alberto Núñez Feijóo
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O politólogo Diogo Noivo, atento analista da política espanhola e autor do livro “Uma história da ETA”, elogia o discurso de Feijóo. “Creio que não virará o Congresso a favor da sua investidura, mas isso não resulta de falta de qualidade sua. É fruto da divisão da política espanhola em blocos, aliás criticada por Feijóo, que frisou que não foi a sociedade espanhola que a criou, mas os políticos.”
Destaca dois eixos na intervenção do líder do PP: “Mostrar à sociedade espanhola o primeiro-ministro que não vão ter, para que empresários, jovens, idosos, presidentes de comunidades autónomas tomem nota. E apresentar propostas programáticas com detalhe muito superior ao esperado neste tipo de discurso”. O que pode ser importante caso Espanha entre num impasse que leve à repetição das legislativas.
“Foi capaz de meter o dedo em todas as feridas de Sánchez, de modo muito eficaz”, prossegue Noivo. A seu ver Feijóo conseguiu apontar os “atropelos à separação de poderes” dos últimos quatro anos e lembrar ao PSOE o “chão comum” que há entre socialistas e populares. “Houve um conteúdo muito duro, mas um tom diferente do que atualmente se vê no PSOE, dividido e até a insultar e expulsar históricos que construíram a democracia em Espanha, e que agoram discordam de Sánchez.”
Quanto à questão territorial, clave da putativa investidura de Sánchez, Noivo leu nas palavras de Feijóo a ideia de que “uma solução de Governo assente em separatistas não respeita a pluralidade cultural e territorial, porque o país tem 17 comunidades autónomas e Sánchez permite-se sequestrar por duas regiões”. Em seguida, para ilustrar isto, enumerou várias das regiões e seus problemas concretos.
Carles Puigdemont, ex-presidente do governo regional da Catalunha, com o atual chefe do executivo autonómico basco, Íñigo Urkullu
Em Madrid, e dado que está a propor-se para governar, o líder do PP orientou em seguida o discurso para o seu programa. Prometeu desbloquear a renovação do Conselho Geral do Poder Judicial, que o seu partido obstaculiza há cinco anos, e quer mudar a forma de escolha dos respetivos membros.
Alertando que “Espanha é o europeu cujos cidadãos mais empobreceram” e citando as previsões de subida da inflação vindas do Banco de Espanha, Feijóo preocupa-se por “os salários não terem subido tanto como os alimentos, a luz e a energia, as hipotecas ou a habitação” e promete reduzir impostos às famílias de rendimentos anuais inferires a 40 mil euros, para compensar o aumento do custo de vida, além de prolongar a descida do IVA em vigor. A seu ver, o Governo de esquerda, no poder desde 2018, tem desaproveitado os fundos europeus.
Feijóo quer uma reforma administrativa e fiscal e assegura que combaterá o desemprego, se puder governar. “Um país como o nosso, que voltou a liderar o desemprego na Europa quando tinha deixado de o fazer, não pode aceitar o desemprego estrutural que tem”, afirmou. Destacando o paradoxo de haver 2,7 milhões de desempregados quando a economia sente a falta de um milhão de trabalhadores, voltou a criticar o Governo em funções.
O líder popular promete ainda isentar de impostos nos dois primeiros anos de atividade dos pequenos empreendedores e revogar o imposto sobre grandes fortunas adotado pelo Executivo PSOE-Somar. Ao propor aumentar o salário mínimo, fez erguer sobrolhos nas bancadas parlamentares da esquerad: “Cinismo”, “credibilidade zro”, “diz que vai fazer tudo aquilo a que se opôs”, ouviu-se da boca de vários deputados, citados pela comunicação espanhola.
Para estimular a natalidade, o programa do PP contempla creches gratuitas para todos até aos três anos, 6000 milhões de euros para apoiar famílias numerosas, monoparentais e desfavorecidas e facilitar a flexibilidade nos horários de trabalho.
Abordando a crise na habitação, promete um plano que combata as ocupações ilegais, que “não param de crescer”, e dê prioridade aos “jovens e vulneráveis”, aumentando a oferta e aproveitando solo público não utilizado, devolvendo “segurança jurídica aos proprietários”.
Num reconhecimento implícito de que as contas podem sair-lhe furadas, o chefe do PP concluiu a intervenção, depois de apelar aos socialistas para recuperar o espírito de concórdia dos primórdios da democracia espanhola, assegurando que servirá o país mesmo que não chege ao Governo.
“Esta mesma tarde podemos iniciar um diálogo honesto e sincero. Todos, sem exceção. Os cidadãos votaram e está nas mãos de Vossas Excelências decidir se serei primeiro-ministro. Nas minhas está fazer aquilo com que me comprometi. Fá-lo-ei no Governo ou na oposição. Sei para que votaram em mim a 23 de julho”, rematou.