É a terceira vez em menos de cinco anos que os britânicos são chamados a votar em legislativas - duas dessas vezes por causa do Brexit. Estas eleições revestem-se de uma aura de responsabilidade mais espessa do que aquela que assenta sobre outros atos eleitorais dos últimos 40 talvez dos últimos 80 anos. A relação com a UE está em causa, isso é fundamental, mas como em nenhum outro momento dos últimos cem anos discute-se hoje também a união do próprio Reino Unido - e isso é fundacional. Na Escócia, onde o editor da secção de Internacional do Expresso, Pedro Cordeiro, esteve há apenas alguns dias, é dessa dicotomia que se fala em todas as salas entre todas as famílias.
Serve então esta edição especial do Mind the Vote, em dia de eleições no Reino Unido, para resumir os episódios que definiram esta campanha - e oferecer algumas linhas de análise para o que aí vem.
1- Esta é a eleição do Brexit. Mas o que vem a ser o Brexit?
Durante toda a campanha, estas eleições foram rotuladas como “as eleições do Brexit” e de facto esse foi um tema presente, ou omnipresente, se avaliarmos apenas os discursos de Boris Johnson, líder dos conservadores e o candidato que mais se esforçou por passar a mensagem de que só ele pode concretizar a saída do Reino Unido da União Europeia. Jeremy Corbyn, líder dos trabalhistas, ao menos explicou o que quer: uma ligação mais estreita com a Europa que mantenha o Reino Unido no mercado único. Mas é isso um Brexit aceitável para quem votou por uma secessão? É isso um Brexit de todo? Martin Kettle, colunista político do “The Observer”, explica por que é que qualquer acordo bom para os negócios britânicos será visto como uma capitulação aos olhos dos verdadeiros ‘leavers’, os isolacionistas, os que vivem a eterna ressaca do império - “Boris can’t win”.
Muito pouco se falou dos detalhes do acordo conseguido por Johnson em Bruxelas, poucas foram as intervenções políticas que abordaram com consistência, seriedade mas principalmente conhecimento de causa a natureza das futuras das relações comerciais do Reino Unido com a UE, ou com o resto do mundo se as primeiras se tornarem espinhosas. No Mind the Vote #11 explicámos exatamente, na secção “Uma História Fora do Radar”, o que é que ainda falta fazer para que Johnson possa de facto dizer “eu fiz o Brexit”. Está em primeiro lugar nas nossas escolhas dos temas mais importantes desta campanha porque alguns britânicos estão a votar de acordo com as suas convicções contra ou a favor da Europa e, tal como em 2016, faltou esclarecimento da população. Em inglês, no diário “The Guardian”, Simon Jenkins, escritor e apresentador de televisão britânico, escreveu um artigo chamado “‘Vamos fazer o Brexit!’ é a maior mentira destas eleições” que descortina a floresta de imponderáveis que o país ainda tem de atravessar no caminho para o Brexit.
2 - O “radicalismo” do manifesto trabalhista
Esta campanha também foi marcada pelas promessas bastante ambiciosas dos dois principais partidos - e, claro, pelos subsequentes artigos assinados por vários economistas que foram deitando por terra sem grande piedade os sonhos de investimento de Corbyn e Johnson, isto apesar de o líder dos trabalhistas ter sido ainda mais criticado pelas suas medidas radicais. O Instituto de Estudos Fiscais, como escrevemos no Mind the Vote #5, arrasou ambos os manifestos, da posição “extremista” dos eurocéticos conservadores às “nacionalizações anacrónicas” dos trabalhistas. No Mind the Vote #8 explicámos todas as principais medidas sobre o manifesto trabalhista, um documento ao qual até o “Guardian”, um jornal próximo da esquerda, chamou “blitz de investimento financiado pelos ricos”. E o que propôs afinal este revolucionário deputado trabalhista que nunca chegou a qualquer cargo de responsabilidade no parlamento antes de ter sido subitamente eleito líder por um movimento jovem muito mais à esquerda do eleitorado ‘labour’? “Coisas que, se fossem instituídas, apenas nos levariam para mais perto dos serviços públicos que já existem na Alemanha ou em França”, explicou Corbyn quando pressionado para explicar o “radicalismo”.
As propostas do líder da oposição assentam em investimento público, mas Corbyn promete que não mexerá no IVA e que 95% dos britânicos não sofrerão qualquer aumento de impostos, pois só haverá agravamento para quem ganha mais de 80 mil libras (93 mil euros) por ano, num montante global de 82 mil milhões de libras (96 mil milhões de euros). Promete, em contrapartida, aumentar os funcionários públicos em 5% já em 2020, Internet de banda larga universal até 2030 (financiada tributando multinacionais), construir 150 mil casas de habitação social por ano (financiada tributando casas de férias) e garantir seis anos de formação gratuita a todos os adultos. Todos os maiores de 15 anos que trabalhem receberão um salário mínimo de 10 libras (11,67 euros) por hora.
O grande problema dos trabalhistas pode vir a ser, contudo, a sua posição em relação ao Brexit - a indefinição afasta os europeístas e a promessa de um segundo referendo afasta os redutos vermelhos no norte e centro que sempre foram ‘labour’ e agora duvidam. O Mind the vote #15 explica esta dinâmica.
3 - Os dirty tricks da campanha e o susto das notícias falsas
Não começou com esta campanha, começou em força com o referendo à UE em 2016 e desde aí só veio a piorar. As ameaças online, as ofensas, os assassinatos de carácter nas redes sociais e mesmo a violência física são dividendos indesejáveis da divisão ideológica que rasga o país e que por vezes parece forçar os britânicos a uma definição interna desnecessária: ou são ferrenhos europeístas ou patriotas inveterados. Todos os partidos tiveram de lidar com bullying exercido sobre os seus voluntários e candidatos, banhos de água fria despejados de janelas anónimas e os conservadores até receberam encomendas de ratos mortos e em decomposição, provavelmente da parte de ativistas do ‘labour’ que também andaram a tentar dinamitar a campanha de Sam Gyimah, dos liberais-democratas, no bairro londrino de Kensington onde a corrida entre conservadores, trabalhistas e ‘lib-dems’ é a mais renhida destas eleições. O Expresso visitou o local - e lá falaram-nos precisamente desta divisão artificial entre o povo britânico criada por um referendo “que não precisava de ter existido”.
Os trabalhistas têm as suas táticas de guerrilha condenáveis mas, no que a manobras de campanha pouco edificantes diz respeito, os conservadores não ficam atrás. No Mind the Vote #13 recordámos as mentiras que levaram alguns analistas a relembrar os anos em que os ‘tories’ eram considerados o “nasty party”, ou “partido desagradável”. Um exemplo: caso desejem, os candidatos conservadores estão autorizados, têm aliás um livrinho escrito pelos estrategas do partido de onde podem retirar frases a dizer aos eleitores que os liberais-democratas defendem políticas “de ajuda aos proxenetas” e ensinam às crianças que a prostituição é uma carreira. A acusação é justificada por um mal-entendido envolvendo um ex-dirigente local liberal, que já explicou várias vezes que só usou o exemplo da prostituição para falar de atividades profissionais alvo de estigma.
Já na reta final da campanha foram publicados dois estudos que mostram uma constante aposta de todos os partidos em materiais promocionais repletos de informação enviesada, meias-verdades, mentiras puras ou frases fora do contexto. De longe, os maiores prevaricadores são os conservadores. Durante quatro dias de dezembro, 88% dos seus anúncios publicados no Facebook continham informação falsa. A análise aos vários episódios de ‘fake news’ está no nosso último Mind the Vote (#22) antes das eleições. E aqui está talvez o momento mais embaraçoso de Johnson de toda a campanha.
4 - Aquele dia em que Boris Johnson tentou ser mais trabalhista que os trabalhistas
Uma das grandes histórias destas eleições - e uma das maiores incógnitas - é a volatilidade dos círculos eleitorais que sempre votaram ‘labour’ mas também votaram para sair da UE em 2016 - os ‘labour leavers’. Há milhares de pessoas nestas circunscrições, principalmente no norte e centro do país, em zonas que já foram potencias industriais e que consideram a imigração, a burocracia europeia e a globalização entraves ao renascimento económico destas zonas. Foi para elas que Johnson lançou a operação de charme do protecionismo, para pânico generalizado da classe empresarial.
Numa conferência de imprensa que se previa ser só mais uma oportunidade para repetir o slogan “Let’s Get Brexit Done”, Johnson acabou por surpreender ao dizer que quer “apoiar as empresas britânicas introduzindo um regime de intervenção estatal que tornará mais rápido e mais fácil ao Estado intervir nos sectores e negócios que mostrem debilidades” e também planeia, uma vez livre das amarras europeias, implantar um regime de adjudicações públicas que dê prioridade a empresas britânicas. O que acontece hoje é que os governos dos Estados-membros da UE publicam os proponentes a cada obra ou projeto num documento da UE, de acesso público. Johnson quer acabar com essa competição externa. Como? Isso mesmo.
Neste Mind the Vote #14 pode ler a reação quase histérica do Instituto de Assuntos Económicos, um think tank defensor do mercado livre.
5 - A Irlanda do Norte separada do seu Reino?
Johnson prometeu que não quando assinou o acordo com Bruxelas, mas documentos divulgados por Jeremy Corbyn e escritos pelos próprios analistas económicos do governo de Johnson parecem antecipar uma fronteira do Mar da Irlanda. Não tardaram a soar as vozes unionistas - “traidores”, clamaram - que estão a ver-se isoladas do Reino Unido e mais próximas de um eventual referendo pela junção da ilha da Irlanda numa só república.
Corbyn disse aos jornalistas, em Londres, que o relatório é “uma prova concreta” de que Johnson “esteve sempre a enganar as pessoas” sobre a exequibilidade do seu acordo do ‘Brexit’. O documento confidencial, intitulado “Protocolo da Irlanda do Norte: acesso irrestrito ao mercado interno do Reino Unido”, diz, por exemplo, que a maioria dos produtos de uso diário verá o preço subir, o que provavelmente vai afetar os lucros das empresas que os produzem.
Apesar de ter prometido que não vão existir barreiras alfandegárias entre a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte após o ‘Brexit’, este relatório parece dizer quase o oposto ao afirmar que “um certo nível de verificações” será imposto e que o custo de implantar essas novas verificações será bastante oneroso para algumas empresas com margens mais magras de lucro. “Se é assim que Johnson define um bom acordo para a Irlanda do Norte, o que será que reservou para o resto de nós?”, perguntou Corbyn. Um dos pontos em destaque na coluna “potenciais impactos” diz que 98% das pequenas e médias empresas da Irlanda do Norte têm de contar com “dificuldades” em absorver os custos de uma possível barreira alfandegária.
6 - O escândalo do antissemitismo
No último comício de Jeremy Corbyn em Londres houve quem tivesse dispensado o descanso depois de um dia de trabalho para ir chamar-lhe “antissemita” aos berros enquanto a sua comitiva passava. O assunto dominou a campanha e o Expresso escreveu sobre a palavra mais difícil de dizer desta campanha - está aqui.
Ephraim Mirvis, o rabino-chefe britânico e também supervisor das congregações judaicas do país, escreveu num para “The Times” um artigo no qual destrói a atual liderança trabalhista e garante que há razões para os judeus temerem um governo de Jeremy Corbyn. É raríssimo um líder religioso no Reino Unido assumir uma posição política tão clara. Tradicionalmente próxima do ‘Labour’, a comunidade tem vindo a afastar-se nos últimos 15 anos. Mirvis escreve que “a alma da nação está em risco” e, apesar de não querer dizer às pessoas em quem votar, refere que a chefia de Corbyn “é incompatível com os valores britânicos de que tanto nos orgulhamos - dignidade e respeito por todas as pessoas”.
Poucos dias depois, o “The Guardian” divulgava os testemunhos de vários membros do ‘labour’ sobre o tipo de coisas que já tinham ouvido em reuniões, comícios e jantares do partido. Parece difícil de acreditar que ainda haja quem, em 2019, questione o Holocausto - ou quem, não o questionado de todo, considere que foi uma coisa bem feita.