EUA

Trump não foi uma aberração mas o culminar de uma evolução, diz um proeminente consultor republicano

Trump não foi uma aberração mas o culminar de uma evolução, diz um proeminente consultor republicano
ANDREW CABALLERO-REYNOLDS/GETTY IMAGES

Stuart Stevens, veterano de longa data em campanhas políticas (incluindo presidenciais) nos EUA, assume a sua responsabilidade no sucesso de um partido que hoje deplora abertamente, e do qual Trump é o perfeito representante

Luís M. Faria

Jornalista

Entre os livros dos últimos meses que procuram contribuir para um futuro da política americana sem Donald Trump, um dos mais interessantes chama-se "It Was All a Lie" (foi tudo uma mentira) e é escrito por um homem que esteve nas trincheiras das lutas eleitorais como figura-chave durante muito tempo. A acreditar no que ele próprio diz, e a história política recente parece confirmar, Stuart Stevens é um dos consultores políticos americanos mais bem sucedidos das últimas décadas - talvez de sempre.

Trabalhou em dezenas de campanhas, ajudou a eleger muitos candidatos, e mesmo quando não os elegeu muitas vezes eles ficaram numa posição nada desonrosa. Dos cinco candidatos presidenciais com que trabalhou, por exemplo, quatro conseguiram a nomeação e dois tornaram-se presidentes.

Stevens é hoje um membro proeminente do Projeto Lincoln, uma iniciativa de republicanos que se recusam desde o início a aceitar Donald Trump como um verdadeiro conservador e como um exemplo daquilo que o partido republicano deve representar. O termo por que são coletivamente designados - Never Trumpers - diz bem aquilo de que se trata. O Projeto Lincoln assume a forma de um Political Action Committee (comité de ação política, um tipo de associação muito frequente nos EUA), e tem-se notabilizado por alguns anúncios ('memes') que chamam a atenção, na internet e fora dela. Um dos últimos foram duas enormes fotografias afixadas em Times Square, Nova Iorque, onde fotos de Ivanka Trump e Jared Kushner apareciam com ar displicente ao lado de estatísticas sobre vítimas de covid-19 e de uma frase revoltante que terá sido dita quando a pandemia explodiu na cidade: "Os nova-iorquinos vão sofrer e é culpa deles".

Além de Stevens, os membros do Projeto Lincoln incluem outros colegas de profissão seus e o próprio marido de Kelyanne Conway, a ex-assessora de Trump que ficou famosa pela sua defesa dos "factos alternativos" (expressão sua) que o Presidente defende. George Conway é desde há muito um dos principais críticos republicanos de Trump, e a derrota do Presidente deve ter-lhe dado particular satisfação, independentemente dos efeitos que possa ter ou não no seu casamento.

O racismo, elemento central do programa

Pela sua parte, Stevens é claro: Trump é a consequência natural da evolução do seu partido. "Por muito que eu gostasse de ir para a cama à noite assegurando-me de que Donald Trump era um qualquer produto bizarro do sistema - um "cisne negro", como diz o seu ridiculamente não qualificado genro - não posso fazê-lo", escreve. "Não consigo continuar a mentir a mim próprio para afastar a realidade deprimente de que andei a mentir-me durante décadas. Não há nada estranho ou inesperado em Donald Trump. Ele é a conclusão lógica daquilo em que o Partido Republicano se tornou nos últimos cinquenta anos, mais ou menos, um produto natural das sementes de raça, auto-ilusão e raiva que se tornaram a essência do Partido Republicano. Ele não é uma aberração no Partido; é o partido em forma purificada (...). Vejam-no ao espelho e aquela cara laranja inchada, grotesca, é o Partido Republicano hoje."

Segundo Stevens, embora desde os anos 50 existam duas correntes no Partido Republicano, até à década seguinte o partido conseguia uma percentagem do voto negro que não era muito diferente da dos democratas. Para ele, foi a passagem da famosa lei dos direitos civis do Presidente Lyndon Johnson (democrata) em 1964, e a consequente opção dos republicanos por uma estratégia de desistir do voto negro, tido como inatingível, para se concentrar no ressentimento dos brancos, que levou ao Partido Republicano que existe hoje.

A evolução passou por Richard Nixon e a sua notória "estratégia sulista" (usar a emancipação negra para conquistar o voto branco em estados que antes votavam nos democratas, por exemplo o Texas), mas também pelos apelos de Ronald Reagan à reforma do 'welfare', o sistema de prestações sociais que era suposto beneficiar largamente os negros - na realidade, a maioria dos seus beneficiários são brancos, mas isso tende a passar despercebido.

O próprio Bill Clinton, com as cicatrizes nas derrotas democratas nas eleições anteriores ainda muito vivas, fez questão de se apresentar como um "democrata diferente". E a reforma do 'welfare' foi uma das suas iniciativas domésticas mais notórias, e mais criticadas.

O seu sucessor, o republicano George W. Bush (por quem Stevens, que trabalhou com ele, manifesta grande simpatia) dizia-se um "conservador com compaixão". Mas os atentados do 11 de Setembro e as subsequentes guerras no Afeganistão e no Iraque consumiram a sua atenção e não lhe permitiram realizar essa parte do seu programa.

"Um sentimento estranho e melancólico"

Stevens nota que a maioria das pessoas tenta normalmente evitar ser sujeita a testes morais que exponham as suas contradições, mas a vitória de Trump tornou isso inevitável para muitos republicanos como ele. Ao longo do livro, ele assume a sua responsabilidade pessoal na criação de um partido que hoje repudia, sugerindo que se andou a enganar porque o que lhe interessava, acima de tudo, era ganhar. "Blame me" (culpem-me).

O problema é que Trump representa um desmentido total das alegadas convicções republicanas mais profundas. Stevens enumera-as: importância do caráter, responsabilidade pessoal, prudência fiscal, pró-comércio livre, pró-imigração, respeito pelas instituições, oposição à Rússia... De tudo isso, ele é o direto oposto, e o facto de ter o apoio da maioria dos republicanos - incluindo os líderes - mostra que o partido não leva realmente a sério os seus próprios valores. Donde, it was all a lie [tudo não passou de uma mentira].

Stevens diz: "Tenho um sentimento estranho e melancólico de chegar aos 65 anos e perceber que passei uma boa parte da minha vida a trabalhar para algo que era não só sem mérito como destrutivo". Vários antigos colegas seus acusam-no de traição, sugerindo que foi o fracasso na campanha de Mitt Romney em 2012 que o terá posto de fora. Ele não parece importar-se muito com a acusação, pois admite achar que as respostas para o futuro estão no Partido Democrata. Por exemplo, não se imagina que daqui a 20 anos os EUA não tenham um sistema de saúde universal, como todos os outros países desenvolvidos.

Quanto à dissolução das fronteiras entre realidade e fantasia que se tornou uma imagem de marca dos últimos quatro anos, Stevens escreve: "A mente de Donald Trump é aquele tablóide que vemos na caixa da mercearia que alega que extraterrestres engravidaram Hillary Clinton para que o filho possa tornar-se Presidente e entregar os Estados Unidos à Federação. Poucos republicanos desafiam Trump nas suas obsessões conspirativas, tratando-o como um cidadão idoso degradado que telefona para o gabinete do seu congressista exigindo saber porque é que a CIA lhe fala através da sua dentadura".

"Os republicanos permitem a Trump equiparar conservadorismo a conspiração, e o sucesso a longo prazo depende de a estupidez se tornar uma praga viral transmitida pelo ar que varrerá o país como os mortos vivos", conclui Stevens. "Parece uma má aposta para um partido político, mas é nela que os republicanos anti-factos que estropiam a verdade estão a apostar o futuro de um partido político, são e respeitado do centro-direita na América".

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