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Cinco pontos para entender o golpe de Prigozhin na Rússia

Yevgeny Prigozhin
Yevgeny Prigozhin
YULIA MOROZOVA

Raízes, contornos e consequências dos dois dias que abalaram a Rússia e puseram o Kremlin e Putin em causa, tanto interna como externamente

1 – Não foi uma encenação nem um incidente menor

Informações reveladas nas últimas horas pelos diários norte-americanos “The New York Times” e “The Washington Post”apontam no sentido de os serviços de informações dos EUA (os mesmos que tinham alertado em Fevereiro de 2022 para a iminência de uma invasão da Ucrânia) saberem da preparação de uma ação armada do grupo Wagner “contra altos responsáveis russos da área da defesa” e que Putin saberia também disso. Motivo: reagir contra o fim do estatuto especial de que aquela força beneficiava, o que passaria pela integração compulsiva dos seus combatentes nas forças regulares russas.

Numa ação relâmpago, levada a cabo a partir de sexta-feira 23 de Junho à noite (hora de Lisboa), o exército privado ao serviço de Yevgeny Prigozhin, antigo homem de confiança de Putin, ocupou praticamente sem resistência uma cidade de um milhão de habitantes no sul do país – Rostov – e a vizinha sede do comando militar das operações russas no sul da Ucrânia (fazendo reféns o vice-ministro da Defesa Yevkurov e o general Alexeiev, o mesmo que na véspera tinha condenado publicamente as ações dos revoltosos).

Seguiu-se o avanço de forças motorizadas Wagner na direção de Moscovo, marcado por alguns confrontos com helicópteros pró-governamentais (bloggers russos falam em 13 pilotos mortos nestes combates) e algumas forças terrestres. A coluna só parou 200 km a sul da capital russa na tarde de sábado dia 24, quando se negociou uma trégua entre as duas fações, que passava, entre outras coisas, pelo regresso dos Wagner aos seus campos fortificados no sul da Rússia ou em território ucraniano ocupado e pelo desterro de Prigozhin e seus seguidores mais próximos para a Bielorrússia.

2 – Prigozhin queria derrubar Putin?

Na sequência das frequentes diatribes de Prigozhin contra o alto-comando russo e o ministério da Defesa, acusando-os de incompetência e boicote à ação dos Wagner na frente de Bakmut (que conquistariam a 22 de Maio, ao fim de seis meses de luta sangrenta, ainda que daí não resultasse qualquer vantagem tática ou estratégica russa) passou-se o ponto de não regresso na sexta-feira, quando os Wagner, vindos da zona ocupada da Ucrânia e do sul da Rússia, convergiram sobre Rostov e depois começaram a avançar sobre Moscovo. Pretendiam apenas a demissão de Sergei Shoigu de ministro da Defesa e Valeri Guerassimov de chefe do estado-maior, inimigos de estimação de Prigozhin? A reversão das medidas de integração compulsiva do grupo na estrutura militar russa? Ou, como chegou a ser publicado nas contas dos Wagner nas redes sociais, “uma mudança de presidente”? Queria Prigojine chegar, de facto, a Moscovo e concretizar um golpe de estado?

Uma coisa é certa: os 20 mil homens do grupo Wagner, mesmo constituindo uma divisão “à americana”, isto é com os seus próprios blindados, artilharia e aeronaves de apoio, eram insuficientes para tal e, quanto mais se estendessem ao longo de uma linha de centenas de quilómetros (1000 de Rostov a Moscovo), mais teriam os seus flancos e a sua retaguarda expostos a contra-ataques. A menos que a liderança Wagner contasse com um efeito dominó, caso se gerasse uma dinâmica de derrota em que as forças governamentais não combatessem ou aderissem em massa aos revoltosos. A primeira coisa ainda mais ou menos aconteceu mas a segunda não, pesem embora alguns sinais, que devem ter provocado suores frios no Kremlin, de simpatia pelo golpistas entre as baixas patentes militares e os praças, ao lado de quem, afinal, alguns tinham combatido na Ucrânia.

3 – Dupla vitória de Pirro

Em bom rigor, ninguém sai a ganhar com o acordo de sábado entre Yevgeny Prigozhin e Putin, onde o ditador bielorrusso Lukashenko, sátrapa de Putin, apareceu travestido de mediador. A situação pessoal de Prigozhin é dúbia e, ainda que rodeado de uma guarda pessoal aguerrida, a sua sobrevivência na Bielorrússia de Lukashenko levanta interrogações. Os Wagner que não forem para o exílio ou não sejam sumariamente devolvidos às operações encobertas em África (Mali, República Centro-Africana, etc), continuam a ser obrigados a passar para as forças regulares e já há sinais dispersos de grupos de combatentes a gritar “traição!” e a sentirem-se abandonados por Yevgeny Prigozhin.

Aquilo que fazia dos Wagner uma tropa de elite, a começar pelo espírito de corpo (sem prejuízo da crueldade gratuita e do desprezo pela vida dos próprios camaradas muitas vezes evidenciados), dificilmente perdurará com a sua dissolução/integração nas forças regulares. Depois das infantarias aerotransportada e da marinha (delapidadas no infrutífero ataque a Kiev em fevereiro/março de 2022), a Rússia pode ter perdido uma das suas últimas forças terrestres de choque pois os tchetchenos de Kadirov são poucos e ficam muito aquém em competência militar (que não em crueldade).

Quanto a Putin, este sai diminuído do conflito. Depois de ter contemporizado com os excessos verbais de Prigozhin, vê a sua autoridade abalada e revelar-se à luz do dia a ineficácia gritante das forças armadas na própria Rússia (guarda nacional, tropas do Ministério do Interior, etc). Ele que no passado se exibia de tronco nu, a cavalo e a disparar armas de fogo, aparece agora engravatado, sem carisma e remetido à segurança do palácio imperial. O homem forte passa a ser Prigozhin que, tal como Zelensky na Ucrânia, cultiva a imagem militar, vestindo capotes com tecido de camuflado ou “softshells” verde-tropa. Como Mussolini na marcha sobre Roma (1922) ou os líderes dos corpos francos alemães que reprimiam sindicalistas e comunistas na Alemanha de Weimar, Prigozhin revela-se capaz de galvanizar os ex-combatentes, força sempre volátil e perigosa para o poder.

Pesem embora os apoios não regateados da Coreia do Norte ou do Irão (sem esquecer Erdogan que, uma vez mais, se inclina para o campo russo num momento decisivo) resta saber como se olhará para tudo isto em Pequim? A pragmática liderança chinesa sentir-se-á bem ao lado de um Putin que nem a sua própria casa consegue manter em ordem?

4 – O grande cisma da opinião pública russa

À parte as manifestações subsequentes aos primeiros dias da invasão da Ucrânia, realizadas em Moscovo e São Petersburgo (ex Leninegrado), a maioria da opinião pública (se é que podemos falar de tal coisa num país sem media nem partidos independentes e donde as organizações não governamentais foram praticamente banidas) apoiou, por ação ou omissão, a dita “operação militar especial”. Agora, esta quase unanimidade estilhaçou-se à luz do dia. Em Rostov houve manifestações, tanto de apoio, como de repúdio dos Wagner (estas reprimidas com tiros para o ar). As televisões estatais não o mostraram, mas muitas pessoas em Moscovo não puderam deixar de ver enormes aparatos policiais e militares à porta dos edifícios governamentais, trincheiras a serem cavadas e barricadas a serem erguidas nos subúrbios a sul. Para além do sobrevoo da capital por helicópteros armados, do decretar de um feriado vindo do nada para amanhã, segunda-feira, dia 26, ou da colocação da cidade num quase estado de sitio, fervilhando boatos de recolher obrigatório, corte do acesso à internet, etc.

Porventura mais corrosivas para o poder russo que as ações armadas, foram as declarações públicas de Yevgeny Prigozhin de quinta-feira passada, 22 de Junho, pondo em causa os fundamentos da invasão de 24 de Fevereiro: “fomos para a Ucrânia combater neonazis e não os havia” ou “a única coisa que a Ucrânia fazia desde 2014 era disparar umas morteiradas na direção das zonas do Donbass que estavam connosco, nunca lhes passando pela cabeça invadir-nos com o apoio da NATO”. Ou, ainda, sobre a verdadeira situação na frente de combate: “milhares de baixas por dia e muitos locais ponde os ucranianos estão a ganhar-nos terreno”.

5 – Profissionais e não mercenários

Por facilidade de expressão, os jornalistas, a começar por mim próprio, referem-se muitas vezes aos Wagner como mercenários, mas esta designação é geradora de múltiplos equívocos. Soldados de fortuna ou combatentes por dinheiro são aqueles que se ofereceram para lutar em conflitos como as guerras de independência africanas dos anos 60, as guerras civis libanesa ou bósnia, etc. Ou que, sendo ex-militares, são recrutados por empresas privadas que fazem segurança ou atuam como supletivos das forças regulares Foi o caso dos Blackwater americanos, que ganharam duvidosa reputação no Iraque e Afeganistão. Ou dos sul-africanos com experiência de combate na selva contratados pelo governo para por termo à ameaça dos jiadistas do Boko Haram no norte da Nigéria. Os Wagner, tendo pontos em comum com toda esta gente, são muito mais que mercenários. Desde 2016, quando se começa a ouvir falar neles, funcionaram como o exército secreto do Kremlin, projectado o poder externo russo para onde este não o podia fazer abertamente, caso do Mali ou da República Centro-Africana, a troco da posse recursos naturais, nomeadamente mineiros e sem grande preocupação com direitos humanos ou regras de contacto com as populações.

Foram usados sem restrições na guerra civil síria e a sua hubris levou-os a ignorar ordens de Moscovo e a, 7 de Fevereiro de 2018, atacar posições de tropas especiais americanas no leste da Síria, em Deir Ezzor, operação que, ao contrário do que esperavam, lhes correu francamente mal. Metralhados pelos Ranger e Deltas, batidos pela artilharia e bombardeados por aeronaves dos EUA, poderão ter tido duas centenas de baixas. Na Líbia, os Wagner apoiaram o marechal Haftar na sua frustrada marcha sobre Tripoli, até serem retalhados pelos drones turcos enviados por Erdogan que, como uma vez mais se provou, nunca joga num só tabuleiro.

Como o aprendiz de feiticeiro da fábula, Putin criou um monstro mas este, a determinada altura, escapou ao controlo do mestre. Agora, nada ficará como dantes, nem na Rússia nem na Ucrânia.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: RCardoso@expresso.impresa.pt

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