A FIFA não gosta que a política entre nos estádios, mas ao entregar a organização do Mundial 2022 ao Catar escancarou as portas à polémica. Porém, nem todas as controvérsias visaram o Catar… Irão, Sérvia, Inglaterra, Marrocos e Alemanha foram seleções particularmente inconformadas com o estado do mundo. E se, no relvado, os “rebeldes” foram os futebolistas, nas bancadas alguns políticos também foram desafiadores
O Mundial do Catar acumulou troféus, ainda que nem todos sejam dignos de registo. Foi a primeira prova do género organizada por um país árabe e/ou muçulmano. Foi a mais cara de todas as edições e aquela onde, pela primeira vez, uma mulher foi destacada para arbitrar um jogo. Foi também a mais polémica.
Para o país anfitrião, outro grande troféu talvez seja a final deste domingo, entre a Argentina de Lionel Messi e a França de Kylian Mbappé. Estes dois futebolistas são estrelas maiores do Paris Saint-Germain, o clube francês que há uns anos andava pelas ruas da amargura quando foi comprado pela Qatar Sports Investments, uma subsidiária do fundo soberano do Catar, que o transformou num dos clubes mais fortes do mundo.
Acusado da prática de sportswashing — o acolhimento de grandes eventos desportivos para melhorar a reputação, projetar influência e desviar a atenção de práticas condenadas a nível internacional —, o Catar ficou ainda mais sob intenso escrutínio.
Visaram-no notícias sobre a corrupção que determinou a atribuição da organização, contabilizaram-se milhares de trabalhadores mortos durante a construção dos luxuosos estádios e foram amplamente denunciadas a submissão das mulheres catarenses a um sistema de tutela masculino e a criminalização da homossexualidade no país.
Ainda a bola não tinha rolado e multiplicavam-se apelos para que o palco fosse aproveitado pelos protagonistas para falarem de direitos humanos. A FIFA ameaçou sancionar desportivamente quem levasse mensagens políticas para os relvados, mas — seja a propósito da realidade político-social do Catar, seja por circunstâncias internas noutros países —, este Mundial foi pretexto para várias manifestações de caráter político. Oito exemplos.
IRÃO. Jogar numa camisa de forças
“Já treinei em muitos sítios, desde a China aos Estados Unidos da América, e nunca na vida vi jogadores que dessem tanto e recebessem tão pouco. (...) Foram imensas as histórias e as pressões que os jogadores receberam, de todas as formas.” Após a eliminação da equipa iraniana, na fase de grupos, o selecionador Carlos Queiroz foi o porta-voz do pesadelo que os seus atletas viveram no Catar.
Com protestos nas ruas do Irão contra o uso obrigatório do hijab (véu islâmico) e num desafio aos limites impostos pela República Islâmica, a Team Melli, como é conhecida a seleção iraniana, disputou o Mundial enfiada numa verdadeira camisa de forças, pressionada pelas ruas e pelo poder.
Antes da competição, nas redes sociais, de forma mais ou menos explícita, alguns jogadores criticaram a violenta repressão aos protestos. Num jogo de preparação dias antes do arranque da prova, os futebolistas iranianos foram mais longe e, na cerimónia protocolar dos hinos, vestiram um casaco preto desprovido de símbolos nacionais por cima do equipamento, em sinal de luto pelos compatriotas mortos nos protestos. E recusaram-se a cantar o hino iraniano.
Já no Catar, no primeiro jogo, contra a Inglaterra, continuaram de boca fechada. Mas nas duas partidas seguintes, entoaram o hino. Esta aparente cedência ao regime não caiu bem entre os manifestantes e assim que a equipa foi eliminada, às mãos do Grande Satã, como o regime dos ayatollahs apelida os Estados Unidos, houve fogo de artifício no Irão a comemorar a derrota.
O vídeo abaixo regista festejos na cidade natal de Mahsa Amini, a jovem curda assassinada pela polícia da moralidade e cujo caso está na origem dos protestos.
“Alguns futebolistas tiveram atos simbólicos de apoio aos manifestantes. Mas após semanas de protestos, havia a expectativa que os jogadores abandonassem a seleção, em solidariedade com as manifestações”, diz ao Expresso Javad Heirannia, investigador no Centro do Médio Oriente, da Universidade Shahid Beheshti, de Teerão.
“Para uma parte da opinião pública, ações simbólicas não são suficientes. Depois de não cantarem o hino no primeiro jogo, cantaram-no nas outras duas partidas, o que reforçou a ideia de que [Team Melli] era a equipa do governo e não do povo. Parte da opinião pública interpretou a derrota contra os EUA como um falhanço do governo contra a América, defendendo que se o Irão tivesse vencido, o governo teria usado a vitória como propaganda política. A felicidade das pessoas após a derrota foi um protesto contra o sistema político.”
SÉRVIA. Kosovo ‘anexado’ no balneário
As feridas abertas na região dos Balcãs — onde se travou a última grande guerra na Europa (a da Jugoslávia), antes do conflito na Ucrânia — parece que gangrenam em palcos mediáticos como o Mundial de futebol. Dos países que nasceram após o desmembramento da Jugoslávia, apuraram-se dois: Sérvia e Croácia. As equipas não se defrontaram, mas ambas trataram de exaltar os respetivos nacionalismos.
Após passarem às meias-finais, os croatas celebraram entoando canções de Marko Perkovic, de nome artístico “Thompson”, autor de obras que exaltam a Croácia fascista da II Guerra Mundial.
A música do vídeo abaixo, que chegou às redes sociais, faz referência à Herceg-Bosna, uma república croata da Bósnia-Herzegovina que, hoje, para os bósnios é sinónimo de “campos de concentração, violações, tortura, trabalho escravo, perseguições e execuções”.
A Sérvia também não resistiu a provocar. No balneário, foi pendurada uma tela com o mapa do Kosovo, a antiga província sérvia, de maioria albanesa, que decretou a independência unilateral em 2008. O território surgia pintado com as cores da bandeira da Sérvia e com um carimbo por cima a dizer: “Nema Predaje” (Nunca se rendam).
O apelo alude a uma disputa atual que envolve a comunidade sérvia do norte do Kosovo que recusa substituir as placas de matrícula dos seus carros (emitidas pela Sérvia) por placas emitidas pelas autoridades kosovares, como estas o exigem.
A Federação de Futebol do Kosovo apresentou queixa à FIFA. Hajrulla Çeku, ministro kosovar da Cultura, Juventude e Desporto, escreveu no Twitter: “Imagens vergonhosas do vestiário da Sérvia, exibindo mensagens odiosas, xenófobas e genocidas contra o Kosovo, enquanto exploram o palco que é o Mundial da FIFA. Esperamos ações concretas da FIFA, considerando que a Federação de Futebol do Kosovo é membro pleno da FIFA e da UEFA”.
O Kosovo enviaria à FIFA uma segunda queixa contra a Sérvia, “para que os cânticos fascistas fiquem fora dos estádios de uma vez por todas”. Em causa estão alegados incidentes racistas durante o Sérvia-Suíça, a partir das bancadas do Estádio 974 e do banco da Sérvia.
Na equipa suíça, jogam dois jogadores de ascendência albanesa-kosovar — Granit Xhaka e Xherdan Shaqiri — que, no Mundial da Rússia de 2018, celebram golos contra a Sérvia fazendo com as mãos o gesto da águia albanesa.
No Catar, a Suíça levou a melhor sobre a Sérvia, vencendo por 3-2. Shaqiri marcou o primeiro golo helvético, mas foi Xhaka quem mais provocou os sérvios. Nas comemorações da vitória, tirou a camisola e vestiu a do colega Ardon Jashari de trás para a frente de forma a ficar com o nome “Jashari” por cima do peito.
Logo surgiu uma interpretação política. Outro Jashari — Adem Jashari — foi fundador do Exército de Libertação do Kosovo, o grupo paramilitar separatista que lutou pela independência do território, primeiro contra a Jugoslávia e depois contra a Sérvia. Foi assassinado pela polícia sérvia, em 1998.
MARROCOS. Em nome dos árabes e, em especial, da Palestina
Para os “Leões do Atlas”, como é chamada a equipa marroquina, jogar no Catar foi quase como jogar em casa, tal foi a afluência de marroquinos àquele país do Golfo. E tal foi também o apoio declarado de todo o mundo árabe (e também islâmico), empolgado por, pela primeira vez, uma seleção árabe derrubar as barreiras dos oitavos, dos quartos e a chegar às meias-finais de um Mundial.
Os marroquinos assumiram o orgulho da nação árabe e, a cada festejo no relvado, não esqueceram os árabes mais ignorados de todos — os palestinianos.
Enquanto isso, nas ruas do Catar, jornalistas israelitas viam-se e desejavam-se para conseguir entrevistar adeptos, árabes e não só.
Nos últimos anos, Israel tem procurado aproximar-se do mundo árabe celebrando tratados globalmente designados de Acordos de Abraão. Com eles já conseguiu normalizar a relação diplomática com os Emirados Árabes Unidos, Bahrain, Sudão e Marrocos.
No Catar, as reações adversas aos microfones israelitas, em especial de adeptos árabes, conferiu a esta “amizade” um banho de realidade: os Acordos de Abraão aproximam os governos, mas não necessariamente os povos, que não esquecem a ocupação da Palestina.
E nem convencem muitos ocidentais, como estes ingleses a quem um repórter israelita pergunta se acreditam na vitória da sua seleção no Mundial. De forma eufórica, respondem que sim e um deles acrescenta: “Mas mais importante… liberdade para a Palestina”.
DINAMARCA. Mensagem escondida no equipamento
Antes do arranque do Mundial, numa iniciativa pensada pela Federação dos Países Baixos, os capitães de sete seleções anunciaram que iriam jogar com a braçadeira “One Love”. Eram elas Inglaterra, País de Gales, Bélgica, Suíça, Alemanha, Países Baixos e Dinamarca.
A faixa, que tem estampado um coração colorido, seria um manifesto solidário para com a comunidade LGBTQI+ e um apelo à inclusão e à diversidade. Usá-la no Catar seria relevante, já que o país criminaliza a homossexualidade e discrimina as mulheres.
Em socorro das autoridades catarenses, a FIFA ameaçou admoestar com um cartão amarelo os capitães que a usassem em campo. Se as federações nacionais em causa até estariam na disposição de pagar multas, não estavam preparadas para ver jogadores seus a correrem riscos de expulsão. E o protesto caiu.
A Dinamarca, porém, engendrou uma solução criativa para protestar “contra o Catar e o seu registo ao nível dos direitos humanos”. Nas camisolas, todos os detalhes foram clareados, incluindo o símbolo nacional e as clássicas divisas vermelhas e brancas nos ombros.
“Não queremos ser visíveis durante um torneio que custou milhares de vidas. Apoiamos a seleção nacional dinamarquesa em qualquer circunstância, mas isso não é a mesma coisa que apoiar o Catar como país anfitrião. Acreditamos que o desporto deve aproximar as pessoas. E quando isso não acontece, queremos fazer uma declaração”, defendeu o fabricante Hummel.
O terceiro equipamento dinamarquês era totalmente preto, “a cor do luto”.
Na bancada do jogo contra a Tunísia, Helle Thorning-Schmidt, uma antiga primeira-ministra dinamarquesa, ignorou a sensibilidade da FIFA e usou um vestido com mangas arco-íris.
ALEMANHA. Campeã da liberdade de expressão
Após verem o seu capitão, Manuel Neuer, impedido de jogar com a braçadeira arco-irís, os jogadores alemães voltaram o seu incómodo contra a FIFA. No primeiro jogo, contra o Japão, Die Mannschaft posou para a foto com uma mão a tapar a boca. “Foi um sinal, uma mensagem que quisemos passar de que a FIFA está a silenciar-nos”, disse o treinador Hans-Dieter Flick.
Nas bancadas, o protesto voltou-se contra os alemães… No jogo seguinte, contra a Espanha, catarenses nas bancadas acusaram os alemães de hipocrisia cobrindo a boca com uma mão e com a outra mostrando retratos de Mesut Özil, o futebolista germano-turco que renunciou à seleção alemã em 2018 após denunciar atitudes racistas. “Quando ganhamos, sou alemão, quando perdemos, sou um imigrante”, disse após ser usado como bode expiatório pela eliminação alemã no Mundial da Rússia.
Com uma participação humilde, que se ficou pelos três jogos da fase de grupos, os tetracampeões foram das seleções mais combativas e das que mais honraram o compromisso com os direitos humanos, com alguns jogadores a entrarem em campo com chuteiras personalizadas coloridas.
Nas bancadas, alguns políticos alemães seguiram o exemplo, como a ministra do Interior, Nancy Faeser, que, não podendo ser sancionada com um cartão amarelo, assistiu ao jogo com o Japão de braçadeira “One Love” no braço, sentada ao lado do presidente da FIFA Gianni Infantino.
BRASIL. Canarinha faz a união
Pouco tempo antes do início do Mundial, muitos brasileiros estavam confrontados com um dilema: vestir ou não a emblemática camisola amarela e verde para apoiar o escrete? A dúvida instalou-se na sequência da apropriação política da camisola por parte do Presidente Jair Bolsonaro em nome do seu slogan “Deus, Pátria e Família”.
Após vencer as eleições presidenciais, em outubro, Lula da Silva percebeu a sensibilidade do tema e evitou que se tornasse um problema. A 10 de novembro, num post no Twitter, partilhou a intenção de assistir ao Mundial com a camiseta amarela no corpo.
INGLATERRA. Compromisso com o combate ao racismo
O gesto já se tornou um ritual na Premier League e, por consequência, no seio das quatro seleções que emanam do Reino Unido: Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte
No Catar, estiveram ingleses e galeses, que não enjeitaram a montra do Mundial para, mais uma vez, ajoelharem-se brevemente no chão, num protesto contra o racismo.
A coreografia, que dura breves segundos antes do apito inicial, explodiu com o movimento Black Lives Matter, nos Estados Unidos após a morte do afroamericano George Floyd, asfixiado sob o joelho de um polícia.
Apesar de não ser unânime no mundo do futebol, a FIFA tolera este protesto.
BÉLGICA. Do palácio até ao povo
A participação no Mundial dos “Diabos Vermelhos”, como é popularmente designada a equipa da Bélgica, foi utilizada pela casa real do país para dar um toque de modernidade.
Num vídeo divulgado antes do início da competição, o rei Filipe vestiu a camisola do treinador de bancada e, ao estilo descontraído de Isabel II no inesquecível chá com o Ursinho Paddington, abriu as portas do palácio para receber o selecionador Roberto Martínez. Intui-se que depois lhe terá pedido permissão para fazer uma perninha no banco durante os treinos da seleção. O que se segue, terá feito muitos súbditos sorrir…
A Bélgica acabou por ser uma das grandes desilusões do Mundial. Mas fora dos relvados foi uma referência. O rei Filipe não cedeu à tentação de marcar presença nas bancadas dos estádios catarenses, numa decisão que envolveu outras altas figuras do Estado belga.
Por proposta da ministra dos Negócios Estrangeiros, Hadja Lahbib, o país decidiu que enviaria uma delegação oficial limitada ao primeiro-ministro e ao monarca apenas e só se a equipa atingisse as meias-finais. Os “Diabos Vermelhos” não chegaram lá, mas, no campeonato dos chefes de Estado, o monarca belga goleou.
Catar pagou a Beckham para promover o país. Jogador conseguiu andar entre os pingos da chuva Catar "gastou muito dinheiro" para ter "brandura" do Parlamento Europeu Um dedo apontado ao Catar e três ao Ocidente Quiseram calar os alemães, então os alemães taparam a boca pelos direitos humanos na foto da equipa que a FIFA não mostrou
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