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Boris Johnson, o “foguetão” que vai “cair num canto remoto do Pacífico”, pede unidade em torno de Liz Truss... mas deixa espaço para voltar

Boris Johnson e a sua mulher, Carrie, abandonando Downing Street após o discurso de despedida do primeiro-ministro britânico
Boris Johnson e a sua mulher, Carrie, abandonando Downing Street após o discurso de despedida do primeiro-ministro britânico
JUSTIN TALLIS/AFP/Getty Images

Sem esconder a mágoa por ter sido afastado pelos seus companheiros de partido, o primeiro-ministro demissionário do Reino Unido despediu-se do país. Em tom autoelogioso, destacou os feitos do seu Governo e recomendou aos conservadores que não façam à sucessora Liz Truss o mesmo que a si. Uma referência histórica, porém, propicia especulação sobre os seus planos

“Quero dizer ao meu partido que se Dylin e Larry conseguem pôr de lado as suas dificuldades ocasionais, o Partido Conservador também consegue.” A menção ao seu cão e ao gato da residência oficial serviu para Boris Johnson apelar à unidade em torno da nova primeira-ministra do Reino Unido. Foi uma das traves-mestras do discurso de oito minutos com que se despediu do cargo.

Diante do n.º 10 de Downing Street, em Londres, o chefe de Governo cessante elogiou ainda os feitos do seu mandato e indicou que se retira da cena política. Agradeceu aos funcionários com quem trabalhou.

“Dentro de horas estarei em Balmoral para visitar Sua Majestarde, a rainha, e a tocha será finalmente passada a um novo líder conservador. O testemunho será entregue, naquilo que se tornou, inesperadamente, uma corrida de estafetas. Mudaram as regras a meio, mas isso agora não importa”, começou por dizer. A referência a regras alteradas sinaliza a mágoa com que Johnson se viu derrubado pelos seus. É o segundo primeiro-ministro britânico consecutivo a quem tal sucede (depois de Theresa May, a quem ajudou a apear), de onde o finca-pé na necessária unidade.

Truss, até agora ministra dos Negócios Estrangeiros, foi eleita líder conservadora num processo que se arrastou ao longo de vários meses. De início a bancada parlamentar tory reduziu o rol de oito candidatos a dois, em votações sucessivas. Tendo ficado ela e o ex-ministro das Finanças Rishi Sunak, a escolha coube então aos 172.437 militantes do partido. Votaram 82,2% deles, dos quais 57,4% preferiram Truss e 42,6% optaram por Sunak.

Contra as chantagens de Putin

Prometendo apoiar Truss “a cada passo do caminho”, e frisando o momento duro que se vive com as consequências económicas de uma guerra sem fim à vista, Johnson garantiu ao país que a nova governante “fará tudo o que for possível para ajudar as pessoas nesta crise, e este país vai aguentar”. Lançou ainda um alerta ao Presidente da Rússia: “Se Putin pensa que pode sair-se bem chantageando ou fazendo bullying ao povo britânico, está redondamente enganado”.

O apoio à Ucrânia foi um dos feitos do seu Executivo que destacou, a par da saída da União Europeia e do programa de vacinação contra a covid-19, sobre o qual recordou que “70% da população obteve uma dose no prazo de seis meses, mais rápido do que qualquer país comparável” com o Reino Unido.

Destacando os projetos do seu Governo — com exagero ao falar de 40 novos hospitais até ao fim da década, que a imprensa britânica assegura que não serão concluídos —, aumento do número de polícias e enfermeiros, melhores salários para professores e novas vias rodoviárias e ferroviárias, Johnson afirmou ter “lançado alicerces que resistirão ao teste do tempo, seja retomando o controlo das nossas leis ou construindo novas infraestruturas vitais”.

A seu ver, isso foi possível, e apoiar o povo face aos desafios atuais será possível, porque os conservadores “compreendem a simetria vital entre ação do Estado e empreendimento do sector privado capitalista e de livre mercado”. São também o garante da sobrevivência do Reino Unido: “Acredito que a nossa união é tão forte que aqueles que querem desfazê-la continuarão a tentar, mas nunca, nunca conseguirão”, afirmou, numa altura em que os nacionalistas escoceses exigem legislativas antecipadas e novo referendo à independência.

À espera dos sinais de Truss

“É um tempo duro para as famílias em todo o país. Podemos e conseguiremos aguentar e sair disto mais fortes, mas digo aos meus companheiros conservadores que é tempo de afastar a política e de nos unirmos em torno de Liz Truss, da sua equipa e do seu programa, para servirmos o povo deste país, porque é isso que o povo deste país quer, precisa e merece”, afirmou o primeiro-ministro cessante, antes de voar para Aberdeen com a mulher, Carrie, para se dirigir à residência escocesa de Isabel II.

Aos 96 anos, a soberana preferiu receber ali o demissionário e a sua sucessora, não fossem os problemas de mobilidade de que padece impedi-la à última hora de viajar até Londres, onde indigitou os anteriores primeiros-ministros.

Parecendo querer esclarecer dúvidas sobre o seu papel na política, Johnson garantiu que vai ser “como um daqueles foguetões de lançamento que cumpriu a sua função”. E anteviu: “Reentrarei calmamente na atmosfera e cairei de forma invisível nalgum canto remoto e obscuro do Pacífico. E, como Cincinato, voltarei ao meu arado.” A referência ao cônsul romano (519 a.C-439 d.C.) é típica de Johnson.

Se para uns isto significa que se retira da vida política, o jornalista Patrick Maguire, do diário “The Times”, recordou que Lúcio Quíncio Cincinato, após afastamento voluntário do poder para se dedicar à pastorícia, foi chamado pelo Senado a regressar ao império como ditador. Admite que Johnson aguarde não por um cargo autoritário mas por uma brecha que lhe permita voltar onde foi feliz.

Sejam quais forem os planos do demissionário, agora é o tempo de Liz Truss. Ao fim da manhã Johnson renunciará formalmente ao cargo perante a rainha, que pouco depois do meio-dia receberá e indigitará a nova primeira-ministra. De regresso à capital, Truss falará ao país pelas 16h e passará o resto do dia a formar o seu Executivo. A composição do mesmo e a capacidade de encaixar figuras que não a tenham apoiado na corrida à liderança darão sinais daquilo ao que vem a nova ocupante do n.º 10 de Downing Street.

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