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Segundo dia das Conferências do Estoril: a guerra na Ucrânia, os populismos e as migrações, com a paz como pano de fundo

Segundo dia das Conferências do Estoril: a guerra na Ucrânia, os populismos e as migrações, com a paz como pano de fundo
JOSE SENA GOULAO

Roberta Metsola, António Vitorino, Yulia Tymoshenko e Anne Applebaum foram alguns dos oradores presentes no segundo dia do evento

“Não estamos a lidar com uma crise, estamos a lidar com várias e a tentar encontrar soluções para todas ao mesmo tempo”. A frase é de Roberta Metsola e resume as Conferências do Estoril, que terminaram esta sexta-feira na Nova School of Business and Economics (NOVA SBE), em Cascais.

Sob o mote “pela paz”, o segundo dia da edição 2022 do evento discutiu os diferentes desafios que ameaçam a estabilidade internacional, desde a guerra na Ucrânia, aos populismos e à questão das migrações.

Neste contexto, a presidente do Parlamento Europeu, que esteve presente no encerramento, defendeu ser necessário "voltar aos básicos" e garantir que as pessoas acreditam na política outra vez". “Tem sido demasiado fácil para o espaço entre desencanto e não envolvimento crescer. Quando as pessoas sentem que a democracia não ajuda, viram-lhe as costas" e procuram outras respostas, alerta.

Por esse motivo, considera essencial encontrar soluções para problemas sociais, económicos e ambientais que afetam as sociedades. “Não podemos de falar do mundo futuro sem examinar o mundo presente.”

Apesar dos muitos desafios identificados, a líder do PE mostrou-se otimista “quanto às possibilidades do nosso tempo”, afirmando que a União Europeia tem a capacidade e recursos para fazer mais, só precisa de “fazer melhor”.

“Para mim, a Europa sempre representou oportunidade”, afirmou.

Ucrânia: “É imoral falar de uma guerra prolongada”

Dado o contexto internacional, a guerra na Ucrânia ocupou um lugar central nos debates que aconteceram esta quinta e sexta-feira na SBE. Uma das ideias recorrentes, que foi também expressa por Marcelo Rebelo de Sousa na sessão de abertura, é que a guerra na Ucrânia não é apenas um problema regional, mas antes um conflito global.

Neste contexto, pensar que a guerra não chegará a Portugal é “um erro”, considerou Hryhoriy Nemyria. “Muitas pessoas pensaram o mesmo em 2008 na Georgia, muitos pensaram o mesmo na Crimeia em 2014”, alertou o vice-presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros do Parlamento da Ucrânia, que considera “inevitável” que este tipo de comportamento russo volte a repetir-se.

Hryhoriy Nemyria questionou o “valor das garantias de segurança”, quando as instituições que prometeram proteção à Ucrânia no passado (nomeadamente quando esta desistiu do seu arsenal nuclear) não foram agora capazes de proteger o país.

Na mesma sessão, Yulia Tymoshenko defendeu que “a vitória no campo de batalha” é a única solução para esta guerra. “Em muitos países europeus está a haver conversas sobre como esta guerra vai durar tempo a mais e sobre como devíamos terminar a guerra já”, afirmou a ex-primeira-ministra ucraniana. "Não há dois caminhos para a guerra, só há um. A vitória no campo de batalha. Não é aceitável em nenhum país trocar o seu território pela paz”.

A ex-governante afirmou que a proposta avançada pelo Kremlin “não é um caminho para a paz, mas para a continuação da guerra”. "Seria perder as nossas raízes, a nossa cultura aceitar a ‘russificação’ e isto não é negociável. Significaria capitulação. Ninguém na Ucrânia, do Presidente a uma criança, aceitaria tais condições”, repetiu.

Contudo, sublinhou: “esta guerra precisa de ser parada, urgentemente. É imoral falar de uma guerra prolongada”

Questionada sobre se acredita no processo de adesão à UE, Yulia Tymoshenko afirmou que, para a Ucrânia, este processo não se trata de um “vir”, mas antes de um “voltar” à Europa.

“Nós não apenas acreditamos, mas provámos isso com a nossa História. Os jovens ucranianos estão a abdicar das suas vidas pelo futuro europeu. A Ucrânia é Europa. Não é uma questão de acreditar, mas de pertencer", afirmou. Para a ucraniana, é para destruir esta “localização europeia” que o Kremlin está a atacar “tão cruelmente” o seu país.

Na mesma linha, Anatoliy Aleksandrov sublinhou que esta é precisamente a “diferença” entre Rússia e Ucrânia. Para a segunda, esta luta “não é só sobre território”.

Além disso, durante a sua intervenção, o líder da Divisão de Cooperação Internacional da Secretaria de Segurança Económica da Ucrânia defendeu que este “não é um conflito”. “Conflito é quando há um mal entendido. Isto é agressão.”

"A crise está a chegar", mas devemos lembrar-nos que estamos a lutar por "valores muito mais importantes"

Uma das ideias recorrentes nas Conferências foi que a resposta para os vários desafios no horizonte está na união e cooperação internacional. “Uma Europa unida é mais forte”, sintetizou o ex-Presidente da Polónia, Aleksander Kwaśniewski.

Ainda assim, os oradores não deixaram de abordar o pesado impacto que a guerra está a ter na economia europeia e como este poderá afetar o apoio à Ucrânia.

“A vida é difícil e as pessoas têm uma paciência limitada. A crise está a chegar", referiu Aleksander Kwaśniewski. Por isso, defendeu, devemos lembrar-nos que estamos a lutar por “valores muito mais importantes”. Superar esta situação será “difícil, mas muito importante” para o nosso futuro, sublinhou.

“Durante demasiado tempo na Europa, tomamos a paz por garantida", concordou Kolinda Grabar-Kitarović, na mesma sessão. "A principal mensagem que devíamos enviar hoje é que devemos pensar na situação dos ucranianos”.

A ex-Presidente da Croácia frisou a importância de defender o sistema e instituições, mesmo que não se concorde totalmente com eles. Por isso devemos continuar a lutar contra as ameaças e “não devemos deixar que os bullies mandem no mundo”.

Já a jornalista e escritora Anne Applebaum lembrou que a Europa foi construída com base no princípio “de que tudo pode ser resolvido com diálogo e que a paz pode ser atingida pela cooperação e com o comércio". Segundo a norte-americana, esta crença molda a experiência de muitos europeus.

“Infelizmente nem todos os problemas podem ser resolvidos dessa forma”, lamenta. A Ucrânia é um “lembrete” à Europa que “às vezes é necessário lutar [militarmente] para manter a paz”.

Anne Applebaum argumentou também que “o mais importante de perceber sobre Putin é perceber qual o evento chave que moldou a sua vida, que foi ser um agente da KGB". Consequentemente, ele é “fundamentalmente contra a transição democrática”, que vê como “uma ameaça pessoal e ao seu regime autocrático”.

A jornalista norte-americana falava numa sessão moderada por Paulo Portas sobre “resistir ao populismo”, no qual identificou qual considera ser o principal perigo destes movimentos. “O que é perigoso não é a ideologia que têm, é o facto de que atacam todo o sistema (como as instituições e os media) de forma a mudar as regras para nunca terem de sair do poder. A ideia é que eu represento as pessoas autênticas e por isso devo permanecer no poder. Isso é muito perigoso”.

“Nesta conferência estamos a falar do futuro, mas a Rússia não resolveu o passado”

O nome de Vladimir Putin não foi contudo explicitamente mencionado muitas vezes durante toda a conferência. Ainda assim, os russos presentes como oradores convidados não deixaram de refletir sobre o atual estado da Rússia sob o seu governo.

“Não se pode medir o que é a vida na Rússia depois de 20 anos de Putin”, considerou Natalya Sindeyeva. A fundadora da Dozhd media (o canal de televisão independente russo) alertou para os efeitos da forte propaganda, do incentivo do medo e da procura incessante de inimigos internos que marcaram as décadas de Putin no poder.

“Não conseguem sequer imaginar como é a Rússia agora. Não é possível ver para dentro da Rússia e perceber o que sentem as pessoas. E as pessoas na Rússia não conseguem sequer imaginar o que está a acontecer na Ucrânia. Não acreditam”, afirmou. Os média internos estão “destruídos”, acrescentou.

“As pessoas russas foram alvo de uma lavagem cerebral, mas isso pode ser mudado”, corroborou Vladimir Milov. Tal como Natalya Sindeyeva, o ex-vice-ministro da Energia e agora opositor russo acredita que a mudança é possível, mas que este será “um processo muito doloroso” que “precisa de acontecer”.

“Não há uma solução fácil”, afirma. Até porque, acrescenta, “nesta conferência estamos a falar do futuro, mas a Rússia não resolveu o passado”.

Para o opositor russo, “é necessário mais pressão, de todos os lados”. Isto implica armar a Ucrânia e apoiar todas as suas aspirações, assim como a sua reconstrução.

“Estamos a enfrentar a maior crise de refugiados da Europa, mas não estamos a falar disto”

Outro dos assuntos abordados neste segundo e último dia foi a questão das migrações.

Numa sessão sob o título “Escapar do Inferno”, António Vitorino alertou para a rapidez do fluxo de migrantes causado pela guerra na Ucrânia e para o perfil diferente destas pessoas (sobretudo crianças, mulheres e idosos, ao contrário dos refugiados que chegam de outros países e que são sobretudo homens).

O diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações defendeu que é necessário apoiá-las no imediato, mas também criar condições para reconstruir o país.

Para responder devidamente a este problema, é essencial abrir o debate sobre a regulamentação da migração, o que diz que “infelizmente não está a acontecer devido à polarização do tema”.

“Estamos a enfrentar a maior crise de refugiados da Europa, mas não estamos a falar disto”, corroborou Josephine Goube, que esteve presente na mesma sessão.

A CEO da Sistech (uma ONG que presta apoio na integração de refugiados) alertou para “padrões duplos” no tratamento dos refugiados, que argumenta serem altamente prejudiciais para a integração dos migrantes. “Não é fácil, mas é uma conversa que precisamos de ter”, afirmou.

Para a ativista, é essencial que a integração destas pessoas seja pensada a longo prazo, criando condições para que não fiquem para sempre presas à condição de refugiado.

Na mesma linha, António Vitorino deu o exemplo da pandemia, durante a qual quando todos queríamos estar em casa, em segurança, e em que “a vasta maioria” das pessoas que estava a trabalhar nos serviços essenciais “eram migrantes”. Por isso, os dois oradores argumentaram que as sociedades necessitam destas pessoas.

“Quando queremos, conseguimos encontrar integração”, concluiu Josephine Goube, dando o exemplo dos médicos que só conseguiram autorização para trabalhar nos seus países de acolhimento devido a necessidades criadas pela pandemia.

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