George Floyd: três testemunhas, a promessa de "um julgamento histórico" e um problema técnico a suspender a sessão
Scott Olson
O veredicto é esperado para o final de abril ou início de maio. Os 12 jurados terão de decidir por unanimidade, sob pena de o julgamento ser considerado nulo. A possibilidade de nulidade do julgamento ou de absolvição do acusado poderá desencadear novos tumultos em Minneapolis, à semelhança do que já aconteceu no final de maio do ano passado
Esta segunda-feira começou um “julgamento histórico”, em Minneapolis. Foi nestes termos que o advogado da família de George Floyd, o afro-americano que perdeu a vida depois da atuação de um polícia, rotulou o evento. No início do julgamento, vários familiares da vítima ajoelharam-se durante oito minutos e 46 segundos, o tempo que o joelho de Derek Chauvin pressionou o pescoço de George, uma manobra que seria fatal.
“Hoje começa um julgamento histórico, que será um referendo sobre quão longe [os Estados Unidos da] América já chegaram na procura de igualdade e de justiça para todos”, disse Ben Crump, pouco antes do início das alegações iniciais do julgamento do polícia branco Derek Chauvin, em Minneapolis. “Queremos saber onde está a justiça, o mundo inteiro está a observar.” E observou ao longo desta segunda-feira até que a transmissão da Court TV sofreu uma "grande falha técnica" e a imagem foi abaixo, levando o juiz Peter A. Cahill a interromper a sessão, agendando o reatamento para as 9h30 da manhã de terça-feira (15h30 em Lisboa).
Derek Chauvin, de 45 anos, incluindo 19 ao serviço da polícia de Minneapolis, no norte dos Estados Unidos, é acusado de homicídio e homicídio agravado de George Floyd. O caso, que remonta a 25 de maio de 2020, semeou o sentimento de injustiça numa fatia da sociedade norte-americana, originando um número importante de manifestações em muitas cidades do país. “No justice, no peace”, gritou-se então. Isto é, não há justiça, não há paz, gritou-se em vários pontos do país e também no estrangeiro. As palavras de George Floyd, eternizadas num vídeo que captou a detenção violenta, correram também o mundo como slogan antirracista: "I can't breath" ("não consigo respirar"). As mesmas palavras já haviam sido utilizadas por Eric Garner, um afroamericano que morreu às mãos da polícia em Staten Island, Nova Iorque, em 2014. Essa mesma frase também foi utilizada na altura na luta contra o abuso de força policial e nas manifestações nas ruas do país.
A intervenção inicial da acusação terá tido início às 9h30 locais (15h00 em Lisboa) desta segunda-feira por Jerry Blackwell, um famoso advogado afro-americano, numa sessão que decorre num tribunal transformado em campo entrincheirado. As autoridades apelaram a que todas as manifestações programadas para o decorrer do julgamento, que deverá prolongar-se por três ou quatro semanas, sejam pacíficas e calmas.
O memorial para George Floyd no local onde morreu dia 25 de maio de 2020, sob o joelho de um polícia que começou em março de 2021 a ser julgado pelo sucedido
Fotografia Alyssa Schukar/The New York Times/Getty
Os advogados da entidade equivalente ao Ministério Público tentarão mostrar que Derek Chauvin, que comparece em liberdade, mostrou desprezo pela vida de George Floyd, mantendo a pressão mesmo depois de o homem, algemado, ter dito 20 vezes que não conseguia respirar, ter desmaiado e até ter deixado de respirar.
Eric Nelson, o advogado de Derek Chauvin, que se declara inocente, irá garantir que o polícia se limitou a seguir procedimentos autorizados para controlar um suspeito indisciplinado e que não é responsável pela morte de George Floyd. Floyd, que sofria de problemas de saúde, terá, segundo Nelson, sucumbido a uma ‘overdose’ de fentanil, um poderoso opiáceo cujos vestígios foram encontrados na autópsia.
O advogado do polícia “tentará manchar” a memória de George Floyd, mas “os factos são simples. O que matou George Floyd foi uma ‘overdose’ de força excessiva”, afirmou o advogado Ben Crump, acusando o ex-polícia de ter “torturado” Floyd.
“Vamos provar sem sombra de dúvida que o senhor Chauvin está longe de ser inocente”
O procurador no julgamento da morte do afro-americano George Floyd acusou o polícia Derek Chauvin de ter “traído” o seu juramento profissional e de ter usado "força excessiva e irracional".
“Vamos provar sem sombra de dúvida que o senhor Chauvin está longe de ser inocente”, disse Jerry Blackwell, advogado da entidade equivalente ao Ministério Público, na sessão de abertura do julgamento sobre do assassínio de George Floyd, que morreu asfixiado quando se encontrava sob escolta policial, em Minneapolis, em maio de 2020.
A acusação exibiu um vídeo gravado por transeuntes e divulgado nas redes sociais, que mostrou imagens de George Floyd a ser retirado do carro onde seguia sem resistir à polícia e, depois, um polícia a colocar o joelho no pescoço do detido e a pressioná-lo durante cerca de nove minutos, com o afro-americano a dizer que não conseguia respirar, até ficar inconsciente.
As imagens deste vídeo - que se tornou viral nas redes sociais e se espalhou pelos meios de comunicação de todo o planeta – serão uma das provas essenciais da acusação contra Derek Chauvin.
Na sua intervenção inicial, Jerry Blackwell admitiu que a polícia “faz um trabalho difícil e, às vezes, tem de tomar decisões numa fração de segundo”, mas explicou que “este não foi um desses casos”. E acrescentou: “Este caso durou 479 segundos. Não foi uma fração de segundo”, disse o procurador, alegando que Chauvin “traiu o seu juramento profissional” e que usou “força excessiva e irracional”, provocando a morte do afro-americano.
Scott Olson
A primeira testemunha chamada a depor foi Jena Scurry, uma operadora do serviço de urgência (911), que terá chamado o supervisor quando viu, através de uma câmera de vigilância, o comportamento dos polícias durante a detenção de George Floyd, conta o "New York Times".
"Pode chamar-me de bufa, se quiser" [“You can call me a snitch if you want to"], disse ao sargento antes de revelar o que a apoquentava nas imagens em direto da tal câmera de vigilância (ver o vídeo em baixo, referente à comunicação com o supervisor, publicado há vários meses), onde observa vários polícias "sentados" no corpo de George Floyd. Trata-se de um testemunho que dará força à tese do recurso a violência policial por parte da acusação, validado neste caso por alguém ligado ao serviço de urgência. Esta segunda-feira a operadora do 911 admitiu que o termo "bufa" foi usado pois não está previsto no seu cargo chamar um sargento em casos de recurso de força.
"Ela fez o que nunca fizeram na sua carreira: chamou a polícia por causa da polícia", dissera Blackwell na declaração inicial.
Scurry disse ainda que a detenção de Floyd demorou tanto tempo que ela chegou a perguntar se o vídeo estaria congelado. "O meu instinto estava a dizer-me que algo estava errado", admitiu. A própria admitiu ainda outra possibilidade, a que os polícias poderiam necessitar de reforços no local. Quando ouviu um barulho estranho através do rádio, Scurry optou por chamar reforços: é aí que entra na história Derek Chauvin e um colega. Os primeiros polícias a chegar ao local atuaram sob a alegação de que Floyd terá usado uma nota de 20 dólares falsa no estabelecimento Cup Foods.
A seguir da pausa para almoço, foi a vez do advogado de Chauvin confrontar Jena Scurry, recorrendo ao argumento de que esta, não tendo o mesmo tipo de treino, não está qualificada para avaliar as ações dos polícias. "Você, não sendo uma agente da Polícia de Minneapolis, não está familiarizada com os requisitos para o uso de força, correto?", questionou Eric Nelson. Scurry concordou, pode ler-se no live blog do "NYT".
Depois foi chamada a segunda testemunha no caso, Alisha Oyler, uma operadora de caixa de uma loja nas imediações que testemunhou a detenção violenta de Floyd. Oyler filmou a operação policial do outro lado da estrada e esta segunda-feira foi questionada por que razão o fez. "Porque eu digo sempre que a polícia está sempre a meter-se com as pessoas", respondeu em tribunal entre muitos sinais de nervosismo, aqui citada pela BBC. "E está errado, e não está certo." O advogado de defesa perguntou-lhe se tinha filmado tudo o que tinha acontecido, ao que recebeu uma resposta negativa. Nelson disse então que isso não era surpreendente pois ela estava a trabalhar, "ou pelo menos parcialmente".
A terceira testemunha chamada pelo Estado foi Donald Williams, um segurança de 33 anos. Williams, que viveu naquela cidade a vida toda, presenciou a detenção de Floyd e chegou a falar em "tortura" durante o depoimento. Esta testemunha disse que havia planeado entrar numa loja mas a energia mudou perante o aparato da detenção de Floyd, numa altura em que chegou a ouvir "deviam deixá-lo levantar-se", contou esta segunda-feira em tribunal, numa alusão ao que disse um transeunte preocupado com o estado de George Floyd. A seguir, depois de descrever como Floyd aparentava estar em dificuldade, identificou o polícia responsável pela manobra fatal: Derek Chauvin.
Brandon Williams, o sobrinho de George Floyd, numa conferência de imprensa à porta do edifício onde o julgamento está a decorrer
Brandon Bell
Veredito esperado para final de abril ou início de maio
O julgamento ocorre sem audiência, devido à pandemia de covid-19, mas as sessões serão transmitidas em direto e é esperado que sejam seguidas através da televisão por muitos milhares de norte-americanos.
O Presidente dos EUA, Joe Biden, acompanhará “com atenção” o julgamento do assassínio do afro-americano George Floyd, anunciou esta segunda-feira a Casa Branca. “O Presidente acompanhará as sessões com atenção, assim como todos os americanos”, disse a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, que destacou que, para Biden, o combate às “injustiças raciais” é uma prioridade. “Na altura da morte de George Floyd, ele mencionou que este foi um caso que realmente abriu uma ferida na população americana”, disse Psaki, para justificar o interesse que o Presidente dará ao veredito do julgamento, que é esperado para o final de abril.
O veredito é esperado para o final de abril ou início de maio, sendo que os 12 jurados terão de decidir por unanimidade, sob pena de o julgamento ser considerado nulo. A possibilidade de nulidade do julgamento ou de absolvição do acusado poderá desencadear novos tumultos em Minneapolis, à semelhança do que já aconteceu no final de maio do ano passado.
Os processos contra polícias por violência exercida no cumprimento das suas funções são muito raros, mas as condenações são mais invulgares ainda.