10 meses depois da morte de George Floyd, começa o julgamento do polícia acusado. Mas em Minneapolis não há esperança numa condenação
O memorial para George Floyd no local onde morreu dia 25 de maio de 2020, sob o joelho de um polícia que começou em março de 2021 a ser julgado pelo sucedido
Fotografia Alyssa Schukar/The New York Times/Getty
Já aconteceu várias vezes, então as pessoas tendem a deixar de acreditar: um polícia branco usa demasiada força num cidadão negro, por vezes provocando a sua morte, e quase nunca há julgamento, quanto mais condenações. O homem que pressionou o joelho sobre George Floyd começa a ser julgado esta segunda-feira, mas há todo um "sistema de opressão" que não vai a julgamento apesar de ser essa a raiz do problema
O ano de 2020 foi particularmente violento em muitas cidades norte-americanas. Os protestos pelos direitos civis dos cidadãos negros levaram à destruição de propriedades e a respostas por vezes demasiado musculadas por parte das autoridades.
A pandemia fez o resto: de desamparados, muitos passaram a desesperados e os números que foram sendo publicados ao longo do ano passado mostram que Minneapolis, onde George Floyd pediu várias vezes a Derek Chauvin, polícia, que o deixasse respirar sem sucesso, teve um aumento de 25% nos homicídios, violações e roubos. Só nos bairros que circundam o local que é agora a “Praça George Floyd”, o crime violento disparou 66%, de acordo com estatísticas do Departamento local da polícia, citados pelo “New York Times”.
Boston Globe/getty
A praça é hoje uma espécie de memorial em permanente modificação, ainda não se decidiu o que é que vai nascer ali. Desde a morte do afroamericano que a polícia não entra nesta esquina para evitar confrontos e evitar também pôr em risco algumas das ações que já estão a ser implantadas no sentido de normalizar as relações entre polícias e sociedade civil. A população negra diz sentir-se totalmente desprezada pela polícia, quando não alvo direto de ataque.
Ainda não há estudos sobre a eficácia do que foi aprovado, mas a medida mais aplaudida foi o redirecionamento de 8 milhões do orçamento do Departamento de Polícia para o Departamento de Prevenção da Violência. Com parte desse dinheiro vão ser criadas seis equipas destinadas à intervenção em bairros mais problemáticos, das quais farão parte ex-membros de gangues, pessoas que perderam membros de família por causa da violência policial, ex-presidiários, entre outras.
A zona “autónoma”, o “Estado livre de George Floyd”, como se vê nas fotografias dos escritos nas paredes, é o ponto mais sensível desta luta que não cessou em 2021, apenas não tem tido tantos momentos violentos como o ano passado. Ainda há pouco tempo um polícia deu um soco a um jovem negro e um acampamento de pessoas sem-abrigo foi desmantelado pelo meio de manifestações onde a polícia usou gás-lacrimogénio e também alguma força. O “New York Times” usou dados da própria polícia para mostrar que a utilização de força contra cidadãos brancos é sete vezes inferior à dispensada para resolver o mesmo tipo de situações com cidadãos negros.
Mas também os agentes se queixam de hostilidade, de não conseguirem fazer o seu trabalho corretamente por não poderem patrulhar todas as áreas, etc. Em um ano, cerca de 200 polícias decidiram abandonar a profissão, alguns temporariamente, muitos por stress pós-traumático.
É já nas próximas horas que tem início o julgamento de Derek Chauvin, que enfrenta acusações de homicídio em segundo e terceiro grau e também homicídio involuntário em segundo grau por ter feito pressão com o joelho sobre a garganta de Floyd durante tempo suficiente para, acreditam os procuradores, o matar.
Mas em Minneapolis há agora o medo de que Chauvin venha a ser absolvido, e que isso possa gerar uma onda de protestos enorme, igual ou pior à que se viu no ano passado. Esperança na justiça já não resta muita. “Eu acho que nós já vimos este filme tantas vezes, tantas vezes, tantas vezes que até já sabemos as falas de cor”, disse ao “New York Times” o padre Brian Herron, da Igreja Baptista de Zion, em Minneapolis, numa zona de forte presença da comunidade negra.
Mas este caso ter chegado a julgamento é já uma mudança. Michael Brown, Eric Garner ou Tamir Rice são apenas três nomes negros que desapareceram sem que ninguém fosse julgado pelas suas mortes. Mediaticamente, o caso mais parecido com o de Floyd é talvez o de Trayvon Martin, o rapaz de 17 anos que foi morto por um “vigilante de bairro”, George Zimmerman, em 2013. Foi a sua absolvição que levou ao nascimento do movimento que hoje conhecemos como Black Lives Matter. Esse julgamento foi transmitido pela televisão e este também vai ser, mas os advogados que têm falado nas televisões e para os jornais sobre este caso lamentam que este tipo de julgamentos, que têm de acontecer, deixem muitas vezes de fora o mais importante: entender o que está mal com o sistema, não apenas com as ações de um homem.
NurPhoto/Getty Images
“Os conceitos de uso excessivo da força, reforma na polícia, prestação de contas, justiça sistemática e institucionalizada, tratamento de cidadãos negros, todos eles serão mencionados neste julgamento, mas continuarão a ser os elefantes na sala”, disse à CNN Laura Coates, especialista em assuntos legais e comentadora.
O julgamento vai focar-se não nos méritos do movimento de solidariedade que se gerou em todo o mundo com a luta do cidadão negro nos Estados Unidos em particular, mas numa coisa bastante mais difícil de provar: se o agora ex-polícia de 45 anos Derek Chauvin teve ou não intenção de matar George Floyd e se as suas ações causaram ou não a morte do afroamericano.
A autópsia feita no condado de Hennepin, onde se situa Minneapolis, diz que Floyd morreu de insuficiência cardíaca devido a "subjugação, contenção e compressão do pescoço”, e considerou a morte um homicídio. O relatório do médico legista também menciona doença cardíaca, hipertensão, intoxicação por fentanil (opióide muito potente) e uso recente de metanfetaminas. Os advogados de defesa de Chauvin vão argumentar que foram estes outros problemas de saúde que causaram a morte de Floyd, a estratégia é pública até porque um dos advogados de Chauvin, Eric Nelson, já disse várias vezes que o seu cliente agiu dentro da lei e que não foi o joelho de Chauvin que matou Floyd, mas sim uma overdose de drogas misturada com problemas cardíacos preexistentes.
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