Coronavírus. Como o sistema político chinês agravou o desastre
O país foi elogiado pelas medidas radicais que tomou contra a epidemia, mas um jurista nota o papel da repressão no alastramento do problema
O país foi elogiado pelas medidas radicais que tomou contra a epidemia, mas um jurista nota o papel da repressão no alastramento do problema
Jornalista
Xu Zhangrun é professor de direito na Universidade de Tsinghua, em Beijing, por acaso a mesma onde estudou o presidente Xi Jinping. Há dias, publicou na internet um texto que relaciona a má gestão do coronavírus com as características repressivas do sistema político chinês. Não é um tema novo, especialmente depois da morte de Li Wenliang, o médico que foi o primeiro a alertar colegas para a existência do novo vírus, tendo sido recompensado com uma visita da polícia a admoestá-lo, juntamente com outros sete profissionais que também fizeram alertas nas redes sociais.
O texto de Xu, intitulado “Pessoas Zangadas Já Não Têm Medo”, faz um apelo veemente à liberdade de expressão, o tipo de posição que na China, quando expressa publicamente, costuma levar as pessoas à cadeia. Provavelmente é o que vai acontecer a Xu, até por ele já ter antecedentes. Em 2018, publicou outro texto a criticar o fim do limite de dois mandatos para o líder máximo do país – uma alteração à constituição feita expressamente para beneficiar Xi Jinping. Na sequência desse texto, foi proibido de dar aulas e de viajar, além de ter sido privado de uma parte substancial do seu salário. Agora, as consequências poderão ser piores.
A China tem permitido um grau invulgar de crítica pública desde que a crise do coronavírus começou, mas essa tolerância não deverá durar muito. Já foram aprovadas novas instruções para “reforçar a orientação da opinião pública” e, a julgar por exemplos anteriores, a repressão não tardará a intensificar-se, sabendo-se que a internet é usada pelo governo como um vasto aparato de controle dos seus cidadãos.
O paradoxo da China é o de que, por um lado, o sistema permite-lhe tomar medidas que noutros países seriam difíceis ou impossíveis - fechar cidades inteiras, construir hospitais em dias - mas, por outro lado, ao impedir a circulação de informação, contribui para que os flagelos se espalhem antes que seja possível contê-los na origem. Isto é uma das ideias-chave no artigo de Xu. Por outro lado, a sua descrição do modo como a crescente concentração de poder levou a uma degradação da eficiência da burocracia nacional reflete, à escala chinesa, um fenómeno que muita gente conhece a outros níveis no seu dia a dia: a prática de sacudir responsabilidades e de culpar quem está por baixo é o estímulo perfeito para que ninguém 'saiba' de um problema quando ele começa, com efeitos que podem ser fatais, nem sempre no sentido figurado, como se vê agora.
Xu explica que “a censura aumenta dia após dia e o seu impacto é o de enfraquecer e obliterar aquelas coisas que podiam e deviam ter um papel positivo a alertar a sociedade para assuntos críticos. Na resposta ao coronavírus, por exemplo, as autoridades começaram por calar a inquietação pública e o comentário aberto através da censura; a seguir, fecharam simplesmente cidades inteiras”.
“O atual caos em Wuhan lançou Hubei na confusão”, prossegue, “mas a raiz do problema em expansão está em Beijing: Aquele que se dedica energicamente a ‘Proteger as Montanhas e os Rios e a Manter Domínio sobre as Montanhas e os Rios’”. Ou seja, Xi Jinping (Xu nunca o refere diretamente pelo nome, designando-o de formas diferentes). “O resultado final do Seu estilo de liderança é, conforme comentadores na internet têm reparado muito ultimamente, que, embora ‘grandes tarefas possam ser realizadas concentrando poder’, em tempos de crise ‘grandes asneiras também são geradas por um poder excessivamente concentrado’. O coronavírus é uma demonstração clara disto”.
São passagens extraordinariamente críticas, no contexto chinês, e talvez só explicadas pelo facto de a China estar a sentir os danos do coronavírus a muitos níveis, desde os de saúde propriamente ditos às limitações de circulação, ao virtual banimento de viajantes chineses que muitos países aplicam, e ao prejuízo económico que o país e muitas pessoas estão a sofrer. Tudo isto põe em causa a imagem de infinita sabedoria que Xi Jinping tem cultivado desde que ascendeu ao poder em 2012. Mas quando Xu quase troça do modo como o presidente procura associar-se diretamente à luta contra o flagelo (“ele empolou muito o ‘pessoalmente isto’ e ‘pessoalmente aquilo’, palavras vazias que só servem para sublinhar a hipocrisia”), a crítica assume um tom pessoal que a torna particularmente arriscada.
Xu não o ignora. “Toda a gente está consciente de que o terror online pode facilmente escapar do reino virtual e tornar-se abertamente físico”, escreve. “São os casos em que as autoridades usam o que souberam online e enviam a polícia para lidar com os internautas em tempo real. A inquietação social alargada que daí resulta estimula uma atmosfera de constante autocensura e as pessoas são afligidas por receios constantes sobre que castigo inexplicável lhes cairá em cima a um determinado momento. É assim que todo o potencial para discussão pública é abafado. Da mesma forma, os próprios canais de comunicação, que em circunstâncias normais deviam existir para disseminar informação pública, são estrangulados e um sistema cívico significativo de aviso rápido, que devia desempenhar um papel crucial em alturas de emergência local ou nacional, é ilegalizado”.
Justamente por isso, é importante falar. Num texto visivelmente erudito que recorre com frequência a referências da cultura tradicional chinesa, o mais importante nunca anda longe. “No momento em que escrevo, na cidade de Wuhan e dentro da província de Hubei, ainda há incontáveis números de pessoas que não conseguiram receber atenção médica adequada e que foram abandonadas num isolamento desesperado”, diz Xu. “Como poderemos saber quantas foram condenadas a uma morte prematura em consequência disso?”
“É um sistema que transforma qualquer desastre natural numa catástrofe ainda maior feita pelo homem”, resume. “A epidemia do coronavírus revelou o núcleo podre da governação chinesa: o coração frágil e vazio do edifício instável do Estado ficou assim à mostra como nunca antes”. Noutra parte do texto, ele utiliza a expressão “impotência sistémica”.
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