Democratas americanos estão a virar à esquerda
Candidatos próximos do “socialismo” de Bernie Sanders estão a ganhar primárias democratas
Candidatos próximos do “socialismo” de Bernie Sanders estão a ganhar primárias democratas
Jornalista da secção Internacional
Ronald Reagan contou uma piada num discurso de 1987. “Como é que se identifica um comunista? É alguém que lê Marx e Lenine. E como é que se distingue um anticomunista? É alguém que entende Marx e Lenine.” A risada foi geral, mas o Muro de Berlim ainda nem tinha vindo abaixo e o medo dos regimes socialistas era ponto comum a quase todos os discursos políticos nos Estados Unidos. Mas na América de 2018 há quem entenda Marx e Lenine, quem os leia e, ainda assim, não tenha medo de se dizer socialista.
Há cada vez mais candidatos pelo Partido Democrata a concorrer apoiados pelos Democratas Socialistas da América (SDA, em inglês), e é sob bandeiras programáticas de esquerda quase nórdica que se vão apresentar às eleições intercalares. Estamos a pouco menos de três meses de 6 de novembro e o contingente de nomes “orgulhosamente socialistas” que conseguiu vencer as primárias democratas e que vai agora disputar com os republicanos os 435 lugares da Câmara dos Representantes e 35 dos 100 do Senado é o maior de sempre — 42 pessoas.
É uma eleição que pode reverter a maioria republicana no Congresso e, no limite, paralisar a Administração Trump ou mesmo dar início a um processo de destituição do Presidente. Exagero? Foi o próprio advogado de Trump que o disse. Segundo Rudy Giuliani, “esta eleição é sobre se há ou não impeachment”. Há dois anos, os republicanos concorreram sem oposição em 28 distritos, mas este ano só não têm um democrata à perna em quatro.
Tudo explodiu com a vitória de Alexandria Ocasio-Cortez, que, com 28 anos e “socialista, claro”, destronou Joe Crowley, um democrata que ia para o seu 10º mandato em Queens e no Bronx, em Nova Iorque, e que há 14 anos não precisava de fazer campanha. O Expresso tentou contactá-la, mas Alexandria respondeu que neste momento “não tem agenda seja para quem for”. Alexandria, que já foi empregada num bar mexicano, é uma das caras mais conhecidas desta onda vermelha que está a transformar o tradicional azul dos democratas num tom arroxeado.
Lisa Ring, de 44 anos, de uma extensa família ligada ao serviço militar e com uma história pessoal pautada por momentos de pobreza, é outra. Ao Expresso diz que o que os americanos ainda não entenderam é que “as escolas, o Exército, os bombeiros, as bibliotecas, a polícia, as estradas, são tudo serviços ‘socialistas’”. Ring, ex-guarda prisional que se recusa a receber dinheiro para a campanha de grandes empresas que não cumpram as suas obrigações sociais, não acredita em políticas centristas.
Quanto ao que irá defender no plano internacional caso seja eleita, Ring é o oposto de Trump e da sua política “América primeiro”. “Todos os problemas com os quais lidamos, guerra, ambiente, pobreza, têm implicações globais, e temos de colaborar com todas as nações, não podemos ser líderes em isolamento.” Diz-se “a nova cara da política norte-americana”, por não estar “refém de nenhum interesse empresarial nem dependente de alguém em posições de poder”.
Um estudo recente do centro de estatística e estudos sociais Pew mostra que os democratas têm vindo a alinhar-se com uma esquerda que na Europa é parte do espectro político mas que nos Estados Unidos assustava até há pouco tempo. Só dois exemplos: em 1994, 30% dos democratas consideravam que a imigração era um benefício e não um fardo para as contas públicas, hoje são 85% a concordar. Quanto aos subsídios sociais, hoje 71% dos democratas acham que o Governo se deve endividar para ajudar os menos favorecidos, há apenas seis anos eram 53%.
Bryan LaVergne, formado em Matemática aplicada à Biologia, faz parte do ramo dos SDA em Houston, Texas, um dos estados mais conservadores do país e onde os SDA estiveram “moribundos” até à eleição de Donald Trump. Em todo o país, os sócios da associação há anos que não excediam os cerca de 5 mil membros, mas depois de Trump o número explodiu e está agora perto dos 45 mil.
Apesar de ser um estado republicano, Bryan LaVergne considera o Texas “um terreno bastante fértil para o socialismo”, diz ao Expresso a partir da sede local dos socialistas. “Em breve o Texas terá uma maioria de mexicanos e outros povos latinos, mas essas pessoas não querem saber de política porque têm dois empregos e uma família para cuidar. O que fazemos nos SDA é ir ter com eles, já que o aparelho democrata oficial não tem feito muito disso, e entender o que precisam.”
LaVergne diz que são jovens como ele o combustível da viragem à esquerda do partido mas que essa força “contagia gente de todas as idades, porque hoje em dia as pessoas querem mais saber de políticas específicas do que de políticos ou de cores”. Oferece como exemplo a sondagem recente, conduzida pela Gallup, sobre o financiamento totalmente público da saúde: 56% dos americanos apoiam a ideia. Quase 76% concordam com o fim das propinas nas universidades, e até a ideia de que o Estado devia encontrar um emprego para cada desempregado recolhe apoio de 55% dos eleitores, segundo o grupo de análise social Data for Progress.
Há, porém, vários democratas que têm chamado à atenção para as consequências desta guinada à esquerda, até porque desde Obama, que deu início à “onda roxa”, o partido perdeu mil lugares nos vários níveis legislativos de cada estado. David de la Fuente, analista política do Third Way, um grupo que defende o realinhamento do Partido Democrata com o centro, desvaloriza este aparente ressurgimento socialista. “O número de socialistas democratas está perto dos 48 mil, ou seja, 0,01% dos norte-americanos. Podem crescer mais, mas haverá um teto, porque as suas ideias não são coincidentes com aquelas que a maioria dos norte-americanos defende”, diz ao Expresso. E deixa um aviso: “Os socialistas democratas da América são diferentes dos partidos socialistas da Europa. Estão mais perto do Die Linke alemão e do francês La France Insoumise do que do vosso PS. De facto, citam o PS ou o SPD alemão entre os ‘neoliberais’. O europeu que apoie uma democracia de pendor social não estaria confortável entre eles.”
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