Internacional

O duro regresso a Raqqa, minada pelo Daesh

Os Médicos sem Fronteiras vacinam crianças num hospital improvisado em Raqqa
Os Médicos sem Fronteiras vacinam crianças num hospital improvisado em Raqqa
FOTO RICARDO GARCÍA VILANOVA

Reportagem na antiga capital do califado. Voltar a casa (a havê-la) causa mais tensão do que alívio

Ricardo García Vilanova, em Raqqa

A cidade síria que se tornou famosa por ser a capital do Daesh, que a ocupou desde janeiro de 2014 e formou o autodenominado Estado Islâmico, fazia parte de um triângulo cujos outros vértices ficavam em Mossul, no Iraque, e Sirte, na Líbia. Hoje nenhuma das três está sob o controlo do grupo extremista. Raqqa foi a última a cair e pagou um alto preço em vidas humanas e destruição.

Raqqa, que tinha cerca de 470 mil habitantes quando a ofensiva começou, ficou reduzida a 20 mil após onze meses de guerra. A violência que por ali passou deixou um balanço aproximado de 1785 vítimas civis, muitas das quais eram crianças. A ofensiva durou de novembro de 2016 a outubro de 2017, tendo a cidade ficado muito danificada por combates e bombardeamentos.

Não se vê um único edifício sem marcas de metralha na fachada, e esse é o melhor dos casos.

Meses depois de ser libertada das garras do Daesh, parte da população inicia o périplo para tentar regressar a casa. Mas não são poucos os que descobrem, ao voltar a Raqqa, que essa casa já não existe. Os outros, os afortunados que ainda têm algo a que se possa de alguma forma chamar um lar, enfrentam um problema maior: os jiadistas deixaram a cidade pejada de minas e bombas-armadilha.

Crianças sem mãos

Uma equipa da organização humanitária Médicos sem Fronteiras (MSF) chegou a Raqqa em outubro. Instalou um centro de emergências dentro da própria cidade e um serviço de ambulâncias que tem a missão de estabilizar e, posteriormente, trasladar os feridos para o hospital da cidade de Tal Abyad, um trajeto que tem uma duração de hora e meia. Em não raras ocasiões são as próprias famílias que levam os seus feridos ao centro de emergências, já que as comunicações civis na cidade são muito instáveis e na maior parte das vezes não é possível usar o telefone.

“Nos primeiros dias de outubro tínhamos sete vítimas por dia, até um máximo de onze. Agora são vinte e cinco por semana”, conta ao Expresso o coordenador dos Médicos Sem Fronteiras, Craig Kenzie. “De início eram sobretudo homens de meia-idade, mas agora aparecem muitos miúdos.”

Ibrahim tem 14 anos e perdeu ambas as mãos. Husein, de 12, não tem mão esquerda. Mustafa, de 9, tem ferimentos nos pés e no peito. A pequena Bean, de 6 anos, perdeu a mão direita e um dedo da mão esquerda. São os filhos de Ahmed Ibrahim e Fatima Husein Ali, a quem foi atribuído um dos quartos do hospital de Tal Abyad. A 28 de janeiro a família voltava de casa, a dois quilómetros de distância de Raqqa, depois de ter passado dez meses em Qamislhi, à espera da libertação da cidade para regressar e ver se a sua morada subsistia.

Esta família foi das afortunadas, mas a sua sorte pouco durou. A 18 de fevereiro as crianças de Fatima e Ahmed estavam a brincar na rua quando encontraram algo parecido com um cabo. Levaram-no para casa, e foi então que explodiu. “Aqui dão-nos medicamentos, comida, tudo”, diz o pai. “Prefiro ter paciência. Trabalho em Raqqa, a fazer limpezas com contratos de três meses, e vivemos no campo. Lá não há serviços para as crianças, por isso, cada dia que passamos aqui pode compensar um ano para eles.”

Stresse pós-traumático

Ahmed também vem de Raqqa. Conta que ao regressar a casa, há mês e meio, atravessou a rua e um artefacto explodiu, roubando-lhe a perna esquerda. Esteve em coma dois dias e, quando acordou, estava no hospital onde hoje permanece, ainda em recuperação. Lamentavelmente os casos dos miúdos da família de Fatima e Ibrahim ou de Ahmed são apenas alguns dos muitos que surgem regularmente nesta cidade.

É por isso que os Médicos Sem Fronteiras também prestam assistência no âmbito da saúde mental, após amputações ou mortes por bombas-armadilha, ou mesmo àqueles que regressaram à sua terra para se darem conta de que tinham perdido a sua casa e, com ela, as próprias raízes. Nalguns casos isto traduz-se em síndroma de stresse pós-traumático, como explica Christine, responsável por este projeto.

Durante um acontecimento traumático, sentimos que está em perigo a nossa vida ou mesmo a de outros. É possível sentir medo ou ter a sensação de que não somos capazes de controlar o que acontece em nosso redor, prossegue Christine.

A maioria das pessoas já experimentou reações associadas ao stresse, após um evento traumático. Os principais sintomas podem desenvolver-se a par com sentimentos de desespero, vergonha, depressão ou ansiedade, flagelos como o alcoolismo ou a toxicodependência, sintomas físicos ou dor crónica. Também pode haver problemas laborais, e até conjugais, culminando certos casos em divórcio.

O legado dos jiadistas permanece em Raqqa. Mais uma vez, são os civis quem sofre a parte pior de uma guerra.

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