Bairro Feliz

As pessoas que fazem das ilhas coração

Comunidade: insularidade é uma palavra difícil, mas representa um estado de espírito muito próprio que vincula gerações de madeirenses e açorianos com toda a carga que acarreta. Pode significar isolamento, mas oferece também um espírito de superação que nunca deixa os insulares virar a cara à luta e dar corpo ao espírito comunitário. Seja ajudando os que mais precisam — por vezes com algo tão simples como o teatro, o futebol ou a aeróbica —, seja mantendo as tradições, amassando os conhecidos bolos lêvedos ou organizando uma exposição dos enxovais de antigamente com artigos emprestados pelos moradores. Esta é a segunda viagem pelo país do projeto Bairro Feliz — um desafio lançado pelo Pingo Doce a todos os bairros, a todos os vizinhos, para descobrirem e apostarem em novas ideias – ao qual o Expresso associa-se. Acompanhe nos próximos meses

Ana Baptista e Tiago Oliveira (textos e fotos)

Orgulho no lugar onde vivem

Hugo Andrade (Bairro da Nazaré, Funchal, Madeira)

“Quando vim para aqui, não tinha a cultura do bairro”, recorda Hugo Andrade, sentado no espaço da Associação OLHO.te, em que não falta “o cão da comunidade, o ‘Óscar’”, e leva-nos pela história de regeneração do local a que hoje chama, com orgulho, casa. “Moro aqui e gosto de morar aqui”, reforça. Estamos naquele que é o maior bairro social da Região Autónoma da Madeira, o Bairro da Nazaré, com uma “população semelhante à da ilha de Porto Santo” e que sempre teve (“e tem”) um “estigma muito pesado”, inserido num espaço urbano “desenraizado” e que durante muito tempo não tinha “identidade cultural”. Entre pessoas fechadas em casa e com problemas (literalmente) ao virar da esquina, a resposta não era óbvia, mas Hugo Andrade optou por encarar o problema de frente e utilizar a sua formação universitária em teatro e comunidade. Foi assim que fundou a OLHO.te em 2014, a que deu o nome em honra à configuração do bairro (“visto de cima parece um olho”, revela).

Muito mudou desde o primeiro projeto que organizou, uma sopa comunitária. A associação já desenvolve inúmeros projetos com e para a comunidade, desde a limpeza do bairro, sensibilização para a violência doméstica (com uma exposição que chegou ao centro do Funchal), aconselhamento, educação cultural, idas com as crianças à praia ou à natureza ou documentários para que o bairro se abra ao mundo. Um processo difícil, mas que “numa pessoa muito persistente e resistente” a desistência nunca foi opção. O trabalho é contínuo e Hugo Andrade não esconde que problemas como a toxicodependência e outros ainda subsistem. Enquanto caminhamos por vias iluminadas, que antes não o eram, paredes com obras de artistas gráficos, que antes estavam degradadas, canteiros cuidados, que antes estavam ao abandono, e os muitos vizinhos que param para cumprimentar ao longo do caminho é fácil perceber que a semente já está instalada. Como Hugo colocou nuns azulejos num dos pilares do bairro: “Sentimento de pertença é ter orgulho do lugar onde vivemos!”

A pertença também ajuda a perceber por que Vera Alves escolheu um local próximo da Rotunda Largo Manuel Alves, no Caniçal, para conversar. “Ali está o meu avô”, confessa, apontando para a placa que lhe presta homenagem junto do monumento aos pescadores da vila. Mesmo ao lado estava a casa onde o avô tinha sempre “caixas de bolachas Insular” só para poder oferecer às pessoas, que ajudava como podia. “Se batiam à porta do Mestre Manuel, ele não dizia que não. Foi quem me transmitiu muitos valores.” Um espírito de solidariedade que levou Vera Alves a querer fazer “algo mais pela freguesia”. Formada em Educação Física, em 2005 pegou na então desativada Associação Grupo de Jovens Caniçalenses e apostou na ginástica aeróbica, com participações ­anuais (e muitas medalhas) nos campeonatos nacionais, e ajudou a criar várias gerações de atletas, também como forma de levar os “mais novos para caminhos menos desvian­tes”. Numa estrutura em que “todos são voluntários”, formou “campeões”, a quem ensinou a “saber perder e ganhar”. Agora é a própria Vera Alves que vive também a sua história de superação, após um acidente de viação que deixou originalmente o lado direito do corpo imobilizado e já a obrigou “a 14 cirur­gias” e a fisioterapia constante para recuperar. Apesar das dificuldades, nunca deixou de lutar, porque para a presidente os “atletas são como os meus filhos. Se choram, também choro com eles”.

É no fundo de um vale profundo, entre as montanhas que marcam o interior madeirense, que se encontra o Curral das Freiras e a Casa do Povo da freguesia, onde Eugénio Vasconcelos trata todos por engenheiro ou doutor. “Somos quase a rotunda da Madeira”, diz, entre risos, para explicar a localização, não tão isolada quanto parece, no coração da ilha. Futebolista profissional (“no meio-campo”) durante 30 anos e companheiro de equipa de Cristiano Ronaldo no Clube de Futebol Andorinha (“tinha irreverência, via-se logo...”), formou-se como enfermeiro, porque a mãe disse que tinha “muita bondade para dar”, e hoje é presidente de uma instituição que oferece vários serviços sociais e culturais a uma população “envelhecida” e com muitas pessoas “sozinhas”. “Para trabalhar no Curral tem que se gostar. É desafiante.” E Eugénio Vasconcelos gosta.

Aqui as tradições não morrem

Sofia Braga (Furnas, Açores)

Sofia tem 21 anos, uns olhos azuis brilhantes e um sorriso contagiante. Há três anos que trabalha na fábrica de bolos lêvedos da Rosa Quental, a primeira a abrir nas Furnas, nos Açores, em 1970. Quando as colegas da parte da pastelaria estão de folga, é ela quem assume o atendimento aos clientes, e fá-lo bem, sempre bem-disposta e atenciosa. Mas, enquanto tira um café e explica os tipos de queijadas a uma turista estrangeira, revela: “Não gosto de estar aqui na frente. O que eu adoro é estar lá atrás, na fábrica, a fazer os bolos lêvedos. Lá não há clientes. Sou eu e a massa.” Aliás, Sofia não esconde o seu grande sonho: “Gostava muito de ter uma padaria.”

Para já, vai mantendo viva — e com gosto — uma das maio­res tradições dos Açores e das Furnas: os bolos lêvedos. O nome engana, porque não são bolos, apesar de ligeiramente adocicados, mas sim um pão em forma de disco e cuja principal particularidade é ser “muito fofo”.

Para ela, que os amassa à noite e os deixa a levedar para, no dia seguinte de manhã, as colegas da fábrica os assarem — “não no forno, mas numa chapa” —, o segredo está no tempo que a massa fica a levedar e no tipo de gordura que leva. Por isso é que garante que os bolos que ali fazem são melhores do que os da concorrência. “Os nossos ficam fofos durante mais tempo. Tenho a certeza. Já fiz o teste.”

Natural de Ribeira Quente, “a uns oito ou nove quilómetros daqui”, Sofia escolheu as Furnas para morar. Porque, apesar de “não se passar grande coisa em ambas”, ali “há mais coisas, como o supermercado e o talho, e sempre se veem caras novas todos os dias”.

Não fossem as Furnas ser “a capital do turismo dos Açores”, diz Valter, o bem-disposto e divertido empregado do bar do Tony’s, o restaurante mais concorrido da vila e onde o telefone não pára com pedidos de reservas. Fala em espanhol e em inglês sem problema e parece peixe dentro de água atrás daquele balcão, só que o que ele quer mesmo é ser treinador profissional. Já o faz de forma amadora no Futebol Clube de Vale Formoso, mas sabe que terá de “fazer como muitos dos jovens portugueses e emigrar, talvez para a Escócia”, conta. Mesmo assim, não quer que o turismo lhe estrague a terra onde nasceu e vive. “Temos de manter o equilíbrio aqui na zona, para isto não se transformar nas Canárias.”

Maria de Lurdes concorda. Tem 59 anos, mora nas Furnas “desde sempre” e há 30 anos que trabalha no turismo — agora numa loja de souvenirs —, mas é da Associação Portas da Cultura que fala com mais orgulho. Sediada em Povoação, uma das sete freguesias do município com o mesmo nome, tem como objetivo “promover a cultura da zona”, incluindo a das Furnas, que fica a cerca de 10 km de Povoação. “Temos feito várias exposições. Pedimos às pes­soas para nos emprestarem artigos e artefactos que tenham e, às vezes, são elas que nos procuram e fazem questão de emprestar. Acabámos agora de inaugurar uma exposição de dotes e enxovais, coisas com mais de 100 anos. Temos um vestido de noiva e tudo. E já tivemos uma com figuras de santos, antigos e modernos, para mostrar o contraste entre o passado e o presente. E são todas de graça. O nosso objetivo é salvaguardar as tradições, não as deixar morrer”, confessa.

O que é o Bairro Feliz

O projeto

O Bairro Feliz tem como objetivo melhorar a qualidade de vida nos bairros. Para isso é lançado um desafio onde entidades locais públicas ou privadas (associações, IPSS, fundações, cooperativas) ou grupos de vizinhos até cinco pessoas inscrevem projetos “que promovam um impacto positivo” nos seus bairros.

As ideias

Enquadram-se em seis áreas: ambiente; apoio animal; apoio social e cidadania; cultura, património, turismo e lazer; educação; e saúde, bem-estar e desporto. Estas são analisadas por um painel de jurados que faz uma primeira seleção e depois as leva a votação popular nas lojas.

O prémio

Cada vencedor ganha até €1000 para desenvolver o seu projeto.

Os prazos

As candidaturas terminaram a 4 de julho e são avaliadas pelo júri até 9 de outubro. As votações nas lojas vão de 10 de outubro a 25 de novembro, dia em que serão também anunciados os vencedores.

Saiba mais

AQUI. E acompanhe no Expresso e na SIC.

Pessoas mais felizes

No primeiro ano procurámos ideias para tornar os bairros mais felizes. No segundo, os bairros mais felizes. Agora procuramos as pessoas mais felizes com os seus bairros. Pelo terceiro ano consecutivo, o Expresso associa-se ao projeto Bairro Feliz — um desafio lançado pelo Pingo Doce a todos os bairros, a todos os vizinhos, para descobrirem e apostarem em novas ideias.

Textos originalmente publicados no Expresso de 14 de julho de 2023

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