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Mais saúde, mais Europa: é possível?

Na quarta presidência portuguesa da União Europeia, a pandemia  será um dos temas centrais
Na quarta presidência portuguesa da União Europeia, a pandemia será um dos temas centrais
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Presidência. O abalo provocado pela covid-19 mostrou à União Europeia a importância de reforçar o investimento em projetos de investigação e desenvolvimento para construir um futuro mais resiliente, justo, digital e sustentável

Francisco de Almeida Fernandes

Mais de um ano após o início da pandemia, ainda existe muito por deslindar no campo da ciência, mas são cada vez mais as certezas na política sobre o que a recuperação pós-covid deve representar para a Europa. A quebra das cadeias de abastecimento mundiais deixou a descoberto um continente mais dependente dos mercados externos em várias frentes, nomeadamente numa das mais importantes: a saúde.

Apesar de uma longa história de liderança e competitividade na indústria farmacêutica, nas últimas décadas “a Europa foi perdendo quota de mercado para duas geografias e por razões diferentes”, como explica Hermano Rodrigues ao Expresso. As coordenadas do especialista da consultora EY-Parthenon apontam para os Estados Unidos da América no que concerne à produção de medicamentos inovadores e para a Ásia no fabrico de fármacos “essenciais, genéricos e sem patente” (ver ilustração). Neste último caso, a justificação prende-se essencialmente com três fatores — o custo mais elevado da mão de obra europeia, exigências ambientais mais apertadas e a pressão causada pela política do medicamento, que obriga à busca pelo preço mais baixo. “Tornámo-nos cada vez menos competitivos”, diz, defendendo que a pandemia e “uma certa tendência de regionalização dos grandes blocos económicos” colocaram em causa a soberania europeia em produtos “essenciais para a vida das pessoas”.

Porém, a realidade é diferente quando falamos no desenvolvimento de soluções inovadoras, em que a “Europa continua a ser muito competitiva”, ainda que com alguma diferença em relação aos EUA. Naquele país, Hermano Rodrigues acredita existirem condições “mais favoráveis”, desde logo pelo capital disponível para o investimento em investigação e desenvolvimento (I&D). Além disso, as farmacêuticas têm de lidar apenas com uma entidade reguladora, a FDA, num mercado amplo, uniformizado e praticamente dependente de um sistema privado de cuidados de saúde, que não pressiona o valor monetário dos medicamentos. Na União Europeia (UE), a indústria precisa de se adaptar às exigências dos 27 mercados e passar no crivo da Agência Europeia do Medicamento (EMA), bem como no dos congéneres nacionais, duplicando processos de aprovação.

Inverter a tendência

Em novembro, a Comissão Europeia (CE) lançou a nova Estratégia Farmacêutica para a Europa, para, entre outras coisas, rever a legislação do sector, apoiar o investimento em I&D e reforçar os mecanismos de preparação e resposta a situações de crise como aquela em que vivemos há mais de um ano. Este é apenas um de vários passos para criar uma Europa mais resiliente, um dos pilares prioritários da quarta presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, a par da aposta no digital, na justiça social e na sustentabilidade.

Ao longo dos próximos três meses, o projeto Mais Saúde, Mais Europa, desenvolvido pelo Expresso com o apoio da Apifarma, vai acompanhar em permanência a atividade da presidência e fomentar o debate em dois eventos — Liderança Europeia na Saúde, a 7 de abril e Cancro: Cada Dia Conta, em maio. “Temos de ganhar competitividade industrial na saúde e autonomia estratégica, quer em Portugal, quer na Europa”, afirma João Almeida Lopes. O presidente da Apifarma refere que este é o momento certo para “dar prioridade a projetos de inovação em medicamentos, dispositivos médicos e biotecnologia”.

Garantir aos cidadãos acesso a fármacos inovadores, nomeadamente para doenças raras, deve orientar a ação da presidência e da Comissão ao longo dos próximos anos na reestruturação do sector da saúde na Europa. “Temos de ter, por exemplo, novos antibióticos e terapêuticas inovadoras para o cancro”, partilha Sara Cerdas. A eurodeputada defende ainda que “se trabalharmos a uma só velocidade, como UE e como um todo, ao invés de o fazermos de forma isolada, alcançaremos maior competitividade”.

A digitalização tem sido, ao longo dos últimos anos, apregoada como meio para conquistar ganhos em eficiência nas empresas e instituições. Um dos objetivos estabelecidos pela CE passa precisamente por garantir que os Estados-membros colocam os seus principais serviços públicos, incluindo a assistência médica, no digital até 2030. Contudo, o economista José Mendes Ribeiro acredita que Portugal pode antecipar o prazo e com isso ganhar competitividade. “Conseguimos fazer isto muito mais cedo, e acho que o país tem a dimensão ideal para poder ser um bom exemplo não só para testar tecnologia, mas para ter um investimento relativamente contido que seja bem-sucedido”, diz ao Expresso.

Mercado único da saúde

Mendes Ribeiro acredita que os cidadãos — e o próprio sistema de saúde, público e privado — podiam beneficiar com a implementação de um registo eletrónico de todas as interações com o seu enfermeiro, médico ou técnico de diagnóstico. “Esta tende a ser a grande iniciativa que irá harmonizar a partilha de dados na UE”, afirma, acrescentando que desta forma seria possível caminhar em direção à construção de um mercado único da saúde, sem fronteiras definidas dentro da União. “Diria até que temos capacidade de implementar [o registo] no nosso sistema até final de 2025 para a totalidade dos portugueses”, afiança. Sara Cerdas concorda que é preciso “maior coordenação e maior partilha de dados e informação” no espaço comunitário, que beneficiaria o desenvolvimento de novos medicamentos e a sua monitorização praticamente em tempo real, permitindo maior agilidade e eficácia no combate a doenças.

“A digitalização eficiente e moderna não pode nunca ser esquecida e deve ter sempre as pessoas no centro”, remata Almeida Lopes. Só assim será possível construir uma Europa mais resiliente, social, digital e sustentável no período pós-covid.

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Xolitos

Textos originalmente publicados no Expresso de 19 de março de 2021

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