Geração E

Quando o poder é um palco de opressão e abuso: o assédio sexual e moral de que António Capelo é acusado na ACE

Quando o poder é um palco de opressão e abuso: o assédio sexual e moral de que António Capelo é acusado na ACE

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

Mais uma pessoa ligada à Academia Contemporânea do Espetáculo está a ser alvo de imensas denúncias: António Capelo, ator, fundador e ex-professor da própria ACE é acusado de assédio sexual e moral. As denúncias são congruentes entre si, no sentido em que demonstram um padrão comportamental com alunos menores

A Academia Contemporânea do Espetáculo, a ACE, no Porto, assim como todo o meio artístico, não é nova no campo das denúncias de assédio sexual e moral. Recordo que o professor, bailarino e coreógrafo, João Albergaria, ainda este ano, foi acusado por dezenas de jovens de assédio sexual, enquanto as alegadas vítimas ainda eram suas alunas.

“Só com muita terapia pude verbalizar que o que sofri com António Capelo era abuso sexual.”
Mia Filipa, autora de uma das denúncias contra o ator e fundador da ACE

Entretanto, mais uma pessoa ligada à ACE está a ser alvo de imensas denúncias: António Capelo, ator, fundador e ex-professor da própria ACE é acusado de assédio sexual e moral. As denúncias são congruentes entre si, no sentido em que demonstram um padrão comportamental: alunos menores, convites para irem à sua casa no Douro, tentativas com coerção para marcar encontros, e, quando confrontado com uma resposta negativa, por várias vezes, insultou e criou discussões, chegando a tentar inverter a narrativa de quem estava a incitar o encontro.

“Isto acontece há mais de 30 anos. (...) Com 15 anos, entrei na ACE. Presenciei e senti, durante anos, pessoalmente, da parte do António Capelo, abuso de poder, escárnio, ameaças veladas, por não compactuar com o que via. Ouvi mesmo “nunca vais ter trabalho, nunca vais ser nada. (...) “toda a gente sabia das idas dos alunos para casa do António Capelo, drogas… (...)”
Testemunho anónimo, de um ex-aluno da ACE, partilhado na página “Não Tenhas Medo

Alegadamente — e só uso este advérbio para me proteger, porque acredito nas vítimas —, os boatos de que tais comportamentos eram comuns por parte do ator já se arrastam há anos, sendo do conhecimento da direção da Escola. Segundo as testemunhas, os ex-alunos foram sempre aconselhados a desvalorizar situações que os deixassem desconfortáveis. Quando és menor e estás numa escola que não te protege, quando quem te assedia é um homem com poder no meio artístico e a indústria do mesmo do qual queres fazer parte, o caminho que parece mais seguro é calares-te. Neste sentido, cabia à ACE, ainda por cima com alunos menores e já com casos de denúncias contra outros professores, averiguar a situação nem que se tratasse somente de uma mera suspeita. Uma direção da escola que abafa testemunhos de assédio ou até boatos de que tal possa estar a acontecer é cúmplice dos alegados assédios morais e sexuais.

“Tentou que fosse ter com ele várias vezes, convidou-me para fins-de-semana numa casa no Doutro, tentou que eu integrasse a ACE, que me ajudava a seguir o sonho de ser actor, convidou-me para cafés, gelados, almoços, (...) Recusei sempre. (...) Mandava-me mensagem todos os dias. Todos os dias havia uma discussão porque eu não lhe dava aquilo que ele queria.”
Testemunho anónimo, partilhado na página “Não Tenhas Medo”

Em resposta à explosão de denúncias, a direção da ACE publicou um texto deplorável onde, resumindo, afirma que nunca receberam queixas e que nunca foram reportadas queixas formais às autoridades sobre os casos em questão. Ora, volto a referir que os alunos da ACE em questão eram menores quando os testemunhos reportados deram lugar. Eram menores que estavam naquela escola para concretizar um sonho com imensos obstáculos numa indústria tão pequena quanto a de Portugal. Eram intimidados pelo poder de António Capelo e pela sua coerção nas investidas. Não é admissível que uma escola de artes se torne num palco de opressão e assédio, onde o abusador é protegido e a vítima é silenciada.

“Tantas vezes estive eu, horas à espera, em frente à sala da direção da ACE para falar dos tais “comportamentos anómalos” [expressão usada no comunicado da Escola]. De funcionários, de professores, de diretores — NADA.”
Testemunho anónimo, partilhado na página “Não Tenhas Medo”

Além disso, sabemos que uma grande parte das denúncias foram feitas por ex-alunos rapazes, já que António Capelo era abertamente gay. Ora, se fazer uma acusação de assédio sexual já é intimidante, ainda por cima contra uma pessoa com poder, quanto mais quando essa denúncia põe a descoberto a possível homossexualidade da vítima. Tudo jogava a favor do padrão comportamental de assédio de António Capelo. Até que as vítimas se uniram e pela união fizeram pressão. Graças às denúncias abundantes contra António Capelo, a Inspeção-Geral de Educação já abriu um processo de averiguações à ACE, como noticiado pelo Jornal Expresso.

“O pior é que num meio tão pequeno todos tínhamos medo de represálias, medo de perder oportunidades, medo de acabar com um sonho”.
Testemunho anónimo, partilhado na página “Não Tenhas Medo”

“O Capelo chamava-me “gordo” várias vezes, em frente aos colegas. Nas aulas, dava-me palmadas no rabo com a desculpa de “corrigir a postura”. Uma vez, à porta da escola, disse: ‘Eu não entendo… os jovens de hoje em dia masturbam-se muito, não é?’ E riu-se, com um olhar perverso. Além disso, conheci relatos de mensagens, vídeos e outras situações de assédio sexual vindas dele. Nada foi investigado. Nada foi assumido. Tudo foi encoberto. E aqui está o ponto mais grave: a ACE sempre soube. (...) Escolheu proteger o agressor e não os alunos. Escolheu apagar as vozes de quem sofreu."
Testemunho anónimo, partilhado na página “Não Tenhas Medo”

António Capelo nega todas as acusações, como seria de esperar de um homem com um lugar de poder que se acha intocável. A união faz a força, António, e tanto está a fazer que a direção da ACE tomou a decisão de se demitir. A ACE também nega ter recebido queixas seguindo os canais oficiais.

Hoje, segunda-feira, às 18h00, está convocada uma manifestação em frente à porta da ACE. Uma iniciativa de Mia, uma das alegadas vítimas, em conjunto com o perfil de Instagram “Não tenhas medo” que está a publicar testemunhos e denúncias sobre este e outros casos semelhantes.

Deixo ainda uma petição criada no sentido de tornar o assédio moral crime aos olhos da Constituição, em vez de um mera contraordenação, já que pode resultar em “incapacidade temporária ou permanente para o trabalho, doença grave ou dano psíquico significicativo” e ainda procura exigir deveres preventivos reforçados nas organizações.

Termino este texto com três afirmações:

  • Se és vítima ou já foste vítima de António Capelo ou outro professor da ACE, junta-te ao movimento. Envia mensagem à página “Não Tenhas Medo” e faz queixa oficial da PSP. Junta-te ao movimento para que haja justiça para ti, para toda a gente que passou por situações semelhantes e para prevenir novas situações. Além disso, o trauma por que passaste não tem de definir a pessoa que és. Não és um trauma, és uma pessoa inteira.
  • António Capelo tem de ser julgado. Pela quantidade de denúncias, há demasiado fumo para não haver efetivamente fogo.
  • A ACE, e todas as organizações e escolas, têm de ouvir os alunos e alunas. Mesmo que haja somente um mero boato de assédio sexual e, ou, moral, há que averiguar. Uma situação deste caráter pode potenciar problemas psicológicos, com um trauma que não tem uma data de validade marcada, ainda por cima num contexto que envolve menores numa indústria tão competitiva como a artística.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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