Abusos

Caso António Capelo: antiga aluna recorda o que viveu na escola, do momento "uau" ao que diz ser "o pesadelo" do assédio

António Capelo interpreta Galileu no Teatro do Bolhão
António Capelo interpreta Galileu no Teatro do Bolhão
D.R.

“Chamava-me periquito. Eu era uma pessoa muito franzina, até parecia mais novo do que os meus 16 anos. Ele tinha 42 anos", conta a educadora e candidata pelas listas do Bloco de Esquerda às autárquicas no Porto. Segunda-feira há uma manifestação junto à ACE no Porto. O ator apresentou queixa-crime por difamação contra a página “Não Tenhas Medo”

“Chamava-me periquito. Eu era uma pessoa muito franzina, até parecia mais novo do que os meus 16 anos. Ele tinha 42 anos”. A citação é do primeiro testemunho não anónimo recolhido pelo jornal Público sobre as acusações de assédio a António Capelo, antigo diretor artístico e professor da escola Academia Contemporânea do Espetáculo (ACE), no Porto.

Aos 69 anos, o ator, protagonista de novelas e séries de televisão, está a ser acusado nas redes sociais de assédio sexual e moral por ex-alunos e jovens que seriam menores no momento em que terão ocorrido as situações de assédio. As denúncias são, em geral, anónimas, mas agora, num testemunho escrito, Mia Filipa, antiga aluna da escola e alegada vítima de abuso sexual vem contar como a chegada à academia, o espaço onde finalmente começou a conseguir encontrar-se, se tornou rapidamente “um pesadelo”.

“Foi logo no primeiro ano”, conta. “Primeiro eram umas palmadinhas, a dar-me a entender que sabia perfeitamente que eu gostava de rapazes (...). Às vezes, quando passava por mim num sítio mais apertado, punha-me a mão no rabo, Era tipo ´ah, desculpa’, como se aquilo tivesse sido sem querer”, relata a agora educadora, de 43 anos, atual candidata pelas listas do Bloco de Esquerda às eleições autárquicas do Porto.

Manifestação e reivindicações

Em processo de transição de género, Mia identifica-se como uma pessoa trans feminina e é um dos elementos da Marcha Orgulho LGBTI+ do Porto, onde esta plataforma está a convocar uma manifestação à porta da ACE para a próxima segunda-feira, às 18h, numa iniciativa conjunta com o perfil do Instagram “Não Tenhas Medo”, que tem sido usado para expor queixas contra o ator.

Será o momento de apresentar reivindicações com objetivo “parar o abuso no espaço escolar” porque “a ACE é símbolo desta tragédia, mas é um problema estrutural, que acontece em outras escolas do país”, conta Mia no seu testemunho ao jornal Público. Os manifestantes querem pressionar o Ministério Público a abrir uma linha de denúncias segura, em conjunto com a Direção-Geral da Saúde e a Câmara do Porto,e exigem apoio jurídico, psicológico e indemnizações para as vítimas.

No seu caso, conta: “Só com muita terapia pude verbalizar que o que sofri com António Capelo era abuso sexual”.

Na manifestação, pede apoio: “Quanto mais pessoas estiverem nesta manifestação, menos sozinhas estaremos”, diz Mia Filipa, autora de uma denúncia contra António Capelo enviada à direção do BE, partido que teve o ator como mandatário das candidaturas de Marisa Matias à Presidência da República, em 2016, e às eleições europeias de 2019 e já repudiou, em comunicado, as alegadas práticas de assédio como “atos muito graves”, que remontam “a mais de uma década” e serão alegadamente “consistentes com outros, citados publicamente nos últimos dias”.

O que diz o ator

Do lado do ator, a resposta surgiu num comunicado onde considera as acusações “ graves e totalmente distorcidas da realidade”, pondo em causa a sua “honra”, a sua “vida profissional” e a sua “vida privada”. “Gestos de proximidade, de afeto ou de apoio — como abraços, empréstimos de livros, partilha de refeições ou acolhimento em momentos de necessidade — nunca tiveram outro propósito senão o de educar, apoiar e formar seres humanos e profissionais”, afirma no comunicado citado pelo Público.

O ator apresentou uma queixa-crime por difamação contra a página “Não Tenhas Medo”, dedicada à “exposição de crimes/abusos anónimos” e desvinculou-se da ACE , de que foi fundador. Depois de “anos de atividade ininterrupta”, decidiu afastar-se "das aulas e de todas as funções de direção — artísticas, administrativas e pedagógicas” da ACE, por “compreender que o projeto é maior do que qualquer pessoa e deve ser protegido de circunstâncias que lhe possam retirar credibilidade”, explica no comunicado.

A direção da escola de que foi fundador também apresentou já a sua demissão.

O que recorda Mia

No testemunho enviado ao jornal Público, que está há um ano a investigar este caso, entre outros alegados episódios de assédio noutras escolas de ensino artístico do país, Mia Filipa deixa claro que a criança vítima de bullying homofóbico, em luta constante por não se identificar com nada relacionado com rapazes, teve na ACE, onde conheceu o primeiro homem gay assumido, o seu momento “uau”. Também diz que “olhando para trás”, as situações vividas “pareciam uma coisa mais simpática do que o abuso”, mas na verdade “tudo isto é violência”.

Recorda convites pessoais, momentos vividos, cenas de sexo, as mentiras à mãe para estar fora de casa à noite e, depois, a forma como perdeu um ano, passou a sentir-se “a fruta podre da família” e se tornou na “pessoa que desiste”. Recorda, também, como este caso terá condicionado a sua vida e a abriu a porta “a outros homens com o mesmo tipo de atitude violenta”.

“Só tomei consciência do que me aconteceu aos 39 anos, quando comecei a fazer terapia. Durante muitos anos não via esta situação como abuso. Até me sentia culpada, sentia que eu é que tinha provocado aquilo”, conta.

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