Geração E

A cultura de violação nos media: o violador Taveira, a nova série sobre as violações e um apelo ao fim do uso da expressão “Estudasses”

A cultura de violação nos media: o violador Taveira, a nova série sobre as violações e um apelo ao fim do uso da expressão “Estudasses”

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

O professor, arquiteto e violador Tomás Taveira violava alunas desesperadas por melhores notas. Quando elas se queixavam de que ele as estava a magoar — isto tudo gravado em vídeo, de forma não consentida — e pediam para ele parar, ele respondia “ai, dói? Estudasses.” E assim, de um contexto de violação, nasce uma expressão que é usada regularmente fora do seu significado original

Nota introdutória

Nos últimos tempos temos assistido ao desvelar de muitos casos de violação, escondidos, normalizados, desvalorizados pelo tempo em que tudo era ignorado em nome do poder do abusador ou violador, especialmente se o predador fosse um homem com poder. Um exemplo muito forte que representa na perfeição esta descrição é o de P. Diddy.

Ora, neste contexto temporal, surge a notícia de que haverá uma série sobre o “escândalo sexual” de Tomás Taveira.

A origem da expressão “Estudasses”

O Professor, arquiteto e violador Tomás Taveira violava alunas desesperadas por melhores notas. As alunas eram coagidas a aceitar esta transação, que se tratava de violação, com vários fatores: abuso de poder da relação professor-aluna, captação e gravação de imagens sem consentimento e não aceitação de pedidos para parar. Quando elas se queixavam de que ele as estava a magoar — isto tudo gravado em vídeo, de forma não consentida — e pediam para ele parar, ele respondia “ai, dói? Estudasses.” E assim, de um contexto de violação, nasce uma expressão que é usada regularmente fora do seu significado original, no sentido de “não gostas do que estás a fazer, olha, estudasses”. Mas não se fica por aí. Vendem-se, inclusive, camisolas com sinais de aviso de obras a dizer “estudasses”. Os preços variam entre os 10€ e os 15,9€, o que faz com que, com o valor de uma mera refeição fora de casa, consiga apoiar a cultura de violação, sem sequer se aperceber. Tão banalizada está a expressão que, se estiver no Fundão, pode tomar o seu espresso após a refeição, com a sua t-shirt, no café “Estudasses”. Tão temático quanto problemático.

Realço que estas violações foram filmadas pelo próprio violador Taveira, para que as pudesse mostrar orgulhosamente aos amigos. Claro que se disseminaram, na altura, em cassete VHS e fotos, inclusive em revistas — com o título “As Loucuras Sexuais de Taveira, todas as imagens chocantes” — , tendo acabado, mais tarde, no Youtube.

Com a facilidade de propagação de conteúdos na internet, várias expressões usadas pelo violador Taveira tornaram-se amplamente conhecidas, sendo usadas em piadas recorrentes do quotidiano.

Para além da expressão “estudasses”, há outras que também ficaram marcadas no leque da panóplia de expressões problemáticas do comum estudante português, como “está todo lá dentro” e “no cu da querida”. Aliás, todas as expressões dos vídeos fizeram parte de letras da Praxe, pelo menos até 2020, tratando este violador como um herói, ao transformar traumas de vítimas em risadas alcoolizadas.

Devido a este contexto, pela origem da expressão, peço-vos, deixem de usar a expressão “estudasses” e todas as que remetem aos vídeos das violações protagonizadas por Tomás Taveira. Honrem as vítimas. Não potenciem a cultura de violação, desvalorizando os traumas que esta expressão criou. Se usavam a expressão “estudasses” sem qualquer maldade, agora que sabem a origem, por favor, retirem-na no vosso léxico.

A nova série sobre as violações levadas a cabo por Tomás Taveira

Quanto à notícia desta nova série, reparemos no uso da expressão “escândalo sexual” por parte dos média. Ora, não se tratou de um mero “escândalo sexual”. Não foi algo que aconteceu a Tomás Taveira, não foi um escândalo que lhe foi incutido, foi um crime que ele, repetidamente, cometeu contra várias mulheres: ele violou alunas, gravou as violações e partilhou as imagens. Paula Cosme Pinto escreveu precisamente sobre a escolha desta expressão na sua publicação no Instagram.

Já num outro artigo, o título escolhido para noticiar a chegada desta nova série foi “Tomás Taveira: os 30 minutos de sexo que fizeram tremer a alta-sociedade do País e abanaram o Governo de Cavaco Silva”. Cara revista Flash e jornalista Hélder Ramalho: não foi sexo, foi violação, uma cassete de 30 minutos de violação. Mais adianto que toda a gente que o deixou passar impune é cúmplice. Neste mesmo artigo deplorável, que salienta a origem humilde do violador e de como tal foi um obstáculo na sua carreira como arquiteto — mas nunca como violador, diga-se —, pode-se ler como o arquiteto violador se sentiu uma vítima, porque o “escândalo” acabou com o seu casamento e o fez sentir rejeitado pela sociedade portuguesa. Violador não é coitadinho, é criminoso. O término do seu casamento não é nada comparativamente ao trauma que ele causou em tantas mulheres.

Apesar de haver provas dos crimes, Tomás Taveira nunca cumpriu pena. Aliás, continuou a sua carreira como arquiteto como se nada tivesse acontecido. A derradeira definição de separar a obra do artista, que, neste caso, a meu ver, é incomportável.

Para todas as pessoas que não percebem a coerção de abuso de poder da relação professor-aluna e argumentam que “elas aceitaram aquela transação”, lembrem-se de que, mesmo partindo dessa premissa totalmente descabida, a partir do momento em que a rapariga demonstra desconforto, pede para parar, diz que dói, e ele não para, “só” (aqui com aspas muito fortes) por isso já se trata de uma violação.

Quanto à série sobre os crimes de violação de Tomás Taveira, se não falaram com as vítimas e se elas não deram o consentimento para falar do que lhes aconteceu, esta série nem deveria acontecer. Aliás, acontecendo, deveria ter como ponto principal os testemunhos consentidos das vítimas, incriminando sem medo o violador Taveira. Se assim for, há esperança. Se tal não se observar, haverá uma revitimização das vítimas, que terão de ver o seu trauma representado de uma forma sobre a qual não tiveram qualquer controlo, mais uma vez.

Comoescreve Paula Cosme Pinto, as vítimas “merecem que exista o respeito de não verem os seus traumas transformados em isco fácil para audiências televisivas. Ou que, pelo menos, possam ser elas as protagonistas consentidas de uma versão da história que lhes traga dignidade”. Este género de documentário feito a partir da vivência das vítimas já foi várias vezes realizado, como por exemplo: o documentário de dois episódios “Leaving Neverland”, com testemunhos das (alegadas) vítimas de violação de Michael Jackson; e na recente minissérie “Quiet on Set”, sobre os abusos infantis e de poder no set da Nickelodeon, por parte de Dan Schneider.

Deixo uma mensagem a Tomás Taveira:

Se leres isto, com os teus 85 anos, espero que a culpa nunca abandone o teu corpo. Eu não sou Deus, mesmo havendo arrependimento, não preciso de te perdoar. Mas uma coisa é certa, o que tu fizeste repetidamente e de forma tão impune, foi tão horrível, desumano e indescritível, que nem a ti desejo que te façam o mesmo.

Links úteis:

Artigo que trata esta nova série como se fosse meramente uma nova novela.Artigo escrito por Eduardo Oliveira para a NiT. Eduardo e NiT: mesmo em jornalismo com ausência de opinião, há forma de demonstrar empatia pelas vítimas de violação. Façam melhor.

Artigo da revista Flash, escrito por Hélder Ramalho, que faz a proeza de conseguir enaltecer mais a personalidade de Tomás Taveira, do que condenar as violações recorrentes levadas a cabo pelo arquiteto. Deplorável.

Definição de “Cultura de Violação”Rape Culture.

Publicação comentada da sempre atenta e perspicaz Paula Cosme Pinto, sobre a série e a forma de o crime como “escândalo sexual”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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