Nota introdutória triste, mas aparentemente necessária
Antes que digam que eu tenho ódio aos homens, digo-vos: desconfio de homens no geral, até prova do contrário, e confio no particular, até prova do contrário. Acho que tendo em conta o panorama de violência contra mulheres, não me parece nada demais, apenas uma reação mais do que justificável. Penso que esta pergunta explica o que quero dizer: Quando nos dizem, a nós mulheres, para termos cuidado ao andar sozinhas na rua à noite, a que perigo se referem?
Para as pessoas que acham que esta minha desconfiança advém de uma má figura parental (como assim?), como já li em muitos comentários, muito se enganam. O meu pai é um pai maravilhoso e apoia-me a 101% (como ele próprio diz). Em vez de fazerem uma vénia ao Freud, absorvam a realidade à vossa volta e as estatísticas que de seguida menciono.
Mais adianto que podem não estar à espera da conclusão a que se chega depois de consultar os dados oficiais e atuais da UN Women. É horripilante e pouco esperançosa a nível global. Felizmente, a chamada de atenção para a igualdade de tratamento de género continua a crescer. É igualmente importante realçar que nem só os homens são perpetuadores de violência. Também há mulheres que matam, também há mulheres que violam. Também há homens vítimas de violação, sendo a pessoa agressora homem (maioritariamente) ou mulher.. Seguimos, então, para o dilema.
O dilema entre o homem que não se conhece e o urso
Nos últimos dias, temos assistido a uma nova trend no TikTok, que depois migrou para o Instagram, especialmente em contas de redes sociais feministas em língua inglesa (para quem segue este tipo de conteúdo): perguntar a mulheres, mas também a homens, se preferiam ficar encurraladas numa floresta com um homem que não conhecem ou com um urso — “Would you rather be stuck in a forest with a man you don’t know or a bear?”
Algumas das respostas, que justificam a escolha do urso, são cómicas de tão tristes e mostram muito do problema sistémico do machismo:
“Urso, porque se eu fosse atacada, mas pessoas acreditariam em mim”
“O uso iria apenas matar-me, e não passar-me [pass me around] por 20 amigos dele primeiro.”
“Os ursos percebem o que são limites e não atacariam sem uma razão válida.”
“Ninguém vai falar do futuro promissor do urso.”
“Um urso não iria filmar e mostrar aos seus amigos.”
“Um urso vê uma ameaça, um homem vê uma oportunidade.”
“Um urso vê-me como um ser humano.”
“Se eu me fizesse de morta, um urso não tentaria ter relações sexuais comigo.”
“Ninguém me vai perguntar o que eu tinha vestido quando o urso me atacou.”
Há muitas mais respostas a este dilema, por escrito e em vídeo, especialmente no TikTok. Houve ainda mulheres que perguntaram aos pais das filhas se preferiam que a filha tivesse sozinha com um urso ou com um homem desconhecido. Um deles disse logo, sem hesitação “urso”. Outro, teve uma reação de perplexidade, descrita pela esposa:
“Perguntei ao meu marido sobre o dilema urso/homem e a nossa filha. Ele escolheu o urso, porque ela não ficaria grávida, e depois riu-me. Mas quando lhe deu o ‘clique cerebral’, ele ficou com um olhar como eu nunca tinha visto em 21 anos.”
Dado este panorama de escolha, resolvi pesquisar sobre o comportamento dos ursos.
O comportamento dos ursos é previsível. Os ursos não são ferozes, sendo naturalmente tímidos, sem grande desejo de interação com humanos. A única razão que os pode fazer aproximar de humanos, ao contrário da sua natureza de os evitar, é se os humanos estiverem perto de uma fonte de comida. Ainda, regra geral, só estão ativos desde a madrugada até ao crepúsculo. Quando estão ativos em outras horas é com o intuito de evitar a presença dos humanos.
Para além de que, pelo menos, a dada altura os ursos hibernam. (Quem me dera que o mesmo se verificasse em alguns homens aVenturados.)
Mas, então, será mesmo mais seguro estar encurralada numa floresta com um urso do que com um homem que não se conhece?
O que nos dizem as estatísticas em termos de assassínio
As estatísticas oficiais mencionadas pela UN Women confirmaram o meu maior receio, que deita parcialmente por terra o dilema homem-não-conhecido/urso. Ora, dados de 2022 mostram que a maioria dos homens que assassinaram mulheres, cerca de 55%, são seus parceiros ou familiares. O mesmo comportamento não se evidencia quando os papeis são trocados, sendo que apenas 12% das mulheres que assassinaram homens eram suas familiares. Mesmo assim, é relevante referir que a grande maioria de pessoas que são assassinadas são homens, cerca de 80% (possivelmente interligado com a maior taxa de envolvimento em crimes). Assim sendo, fiz as contas.
Imaginemos uma amostra de 100 000 pessoas assassinadas — que exercício mais macabro, mas enfim. Isto significaria que 80 000 seriam homens, 20 000 mulheres, dentro dos quais, segundo as estatísticas 12% e 55% respetivamente, 9 600 homens teriam sido assassinados por familiares, contrapondo com 11 000 mulheres que teriam sido assassinadas pelo parceiro ou outro familiar. No entanto, se traduzirmos isto para probabilidade em formato de texto, isto significaria que:
Cerca de 6 em cada 10 mulheres assassinadas, têm como assassino um parceiro ou familiar, enquanto em homens tal acontece em 1 em cada 10.
Posto assim, as coisas mudam, não é? Isto tudo quer dizer que os homens que as mulheres conhecem são mais perigosos do que os homens que elas não conhecem, em termos de probabilidade de assassinato. E em termos de violência sexual?
O que nos dizem as estatísticas em termos de violência sexual
Tristemente, o pódio do perigo de assassinato repete-se em termos de violência sexual, com uma ligeira mudança: a grande maioria da violência sexual exercida sobre mulheres acontece a cargo de homens que se conhece de alguma forma, não necessariamente familiares. Esta é a única grande diferença. Num estudo realizado na Escócia, que contou com 991 mulheres vítimas de violação sexual, 91% das mulheres conhecia o seu agressor de alguma forma, sendo que apenas 9% dos violadores eram completos estranhos.
23% das mulheres foram violadas por um parceiro ou ex-parceiro.
24% por um membro da família
44% por ‘outra pessoa conhecida’
32% reportaram à polícia somente 2 anos depois do incidente
22% nunca reportou o incidente à polícia.
Os dados oficiais da UN Women mais gerais corroboram esta tendência, reportando que 15 milhões de raparigas adolescentes, entre os 15 e os 19 anos, já experienciaram sexo forçado, sendo que, na maior parte dos países, o agressor mais provável é um ex-marido, parceiro ou namorado. Apenas 1% das sobreviventes, em 30 países, procurou ajuda profissional.
O panorama de violência sexual geral nas mulheres não foge desta característica: a maior parte da violência sexual contra mulheres é perpetuada por maridos, parceiros, ou ex-maridos ou parceiros. Cerca de 26% das mulheres com 15 anos ou mais sofreu violência de um parceiro íntimo.
Ainda na semana passada, foi notícia que, na Bélgica, uma rapariga de 14 anos foi, alegadamente, submetida a uma violação em grupo [gang rape], cujos suspeitos violadores são também menores, tendo o mais novo 11 anos e o mais velho 16. A situação piora quando percebemos que, alegadamente, a rapariga foi seduzida pelo namorado em direção a uma mata escondida das casas da vizinhança.
Claro que este caso acarreta outras questões, sobre a possível exposição destes menores a conteúdo sexual nocivo, mas foquemo-nos neste facto dado o tema da crónica: foi o namorado que encurralou a jovem de 14 anos para uma mata, para a violar em conjunto com os amigos. Foi o namorado, não um homem desconhecido.
Afinal, estamos mais seguras com um homem que não conhecemos ou com um homem que conhecemos? Agora, depois destas estatísticas, espero que já percebam porque desconfio de homens no geral.
Conclusão horripilante
O trauma coletivo das mulheres em relação à violência sexual perpetuada por homens é tão grande, e justificado, que preferem estar encurraladas na floresta com um urso do que com um homem que não conhecem. No entanto, a triste realidade é que, estatisticamente, é mais provável que um homem que conhecem, e com quem até têm algum tipo de relação, as viole ou as mate do que um desconhecido, como provam dados atuais (e isto sem contar com os casos não reportados).
Ora, assim concluo que, como mulheres, mais depressa encontramos potenciais assassinos e agressores sexuais na nossa própria esfera de conhecidos, ou até na nossa própria casa, do que na floresta. Esta é a dura realidade.
Respondendo ao dilema — “preferias ficar encurralada numa floresta sozinha com um homem que não conheces ou com um urso?”—, não custa nada pesquisar um pouco sobre o comportamento dos ursos.