Geração E

Worldcoin: jovens são alvo fácil e há menores que relatam abordagens da empresa, o que é ilegal

Worldcoin: jovens são alvo fácil e há menores que relatam abordagens da empresa, o que é ilegal
Matilde Fieschi
Muitos utilizadores da Worldcoin são jovens, que “vendem” os seus dados biométricos em troca da criptomoeda. Os responsáveis pelo projeto garantem que é “obrigatório” ter mais de 18 anos para criar um World ID, mas os testemunhos indicam o contrário

A Worldcoin que, até há poucos dias era desconhecida de muitas pessoas, tornou-se palavra recorrente nas conversas dos portugueses - mas não pelas melhores razões. A empresa responsável pela Worldcoin garante que só quem tem mais de 18 anos pode aderir ao projeto e digitalizar a sua íris em troca de criptomoedas, mas há testemunhos que contrariam essas afirmações.

Aliciados por “dinheiro fácil”, menores cedem dados biométricos

Ao Expresso, Ricardo Macieira, diretor regional da Tools for Humanity para a Europa, garante que qualquer pessoa que queira ter acesso ao passaporte digital da Worldcoin (o World ID), tem que ser obrigatoriamente maior de idade.

No entanto, aumenta o número de testemunhos que dá conta que os colaboradores da Worldcoin abordam menores de idade e os convencem a ceder os seus dados biométricos em troca de criptomoedas. No verão passado, Miguel foi um desses casos. Na altura com 17 anos, foi abordado por colaboradores da Worldcoin enquanto passeava no centro comercial. “Estava com a minha namorada, um senhor chamou-nos e nós olhamos. De repente, apareceu com outro colega a dizer que era uma coisa rápida e que ganhávamos 50 euros sem fazer nada”. Quando lhe pediram para instalar a World App, deu a desculpa de não ter acesso à internet mas o colaborador rapidamente disponibilizou o hotspot do seu telemóvel. “Tive que ceder e aderir", afirma ao Expresso.

“O processo parecia tranquilo. Instalar a aplicação, meter os meus dados e isto tudo sem ter que depositar um único cêntimo, por isso pensei que não tinha nada a perder.” Até que lhe foi pedido para digitalizar a sua íris. Assustado, confrontou o colaborador, que não hesitou em responder que “os dados seriam apagados logo de seguida”.

Miguel acabou por aceitar e no final do processo tinha 48 dólares na conta. No entanto, nunca lhe foi explicado como poderia levantar o dinheiro apenas queriam a minha conta lá registada".

Aliciados pela ideia de ganharem dinheiro facilmente, são vários os jovens, muitas vezes menores de idade, que se dirigem aos stands da Worldcoin. Sabem o que vão receber no final, mas não sabem o que têm que dar em troca. “Na escola do meu filho, os miúdos andam histéricos com o dinheiro fácil”, escreve uma mãe no Facebook, depois do filho ter ouvido falar sobre o projeto através dos colegas. Também Ana Reis, expressa a sua preocupação em relação à abordagem intrusiva dos colaboradores da Worldcoin aos menores de idade. “Há duas semanas, o meu filho de 16 anos e dois amigos foram abordados no centro comercial por funcionários da Worldcoin que os convenceram a fazer a leitura da íris", afirmou a mãe.

A grande maioria dos stands da Worldcoin em Portugal, um total de 17, estão situados em centros comerciais ou locais por onde passam centenas de pessoas por dia, como a Gare do Oriente, em Lisboa. Apesar de não haver confirmação por parte dos responsáveis do projeto, estas localizações parecem ser escolhidas estrategicamente para chamar a atenção do maior número possível de pessoas.

Muitos destes jovens não estão interessados nas criptomoedas em si, mas na possibilidade de as trocar por dinheiro real. Catarina, de 26 anos, aderiu à Worldcoin há menos de um mês por considerar uma forma fácil e rápida de ganhar dinheiro. Ao contrário da maioria dos casos, a jovem foi influenciada pela mãe, que também aderiu numa ida ao centro comercial. Quando recebeu o dinheiro, disse à filha para aderir também. No total recebi 125 euros, mas conheço pessoas que conseguiram fazer o ordenado mínimo em duas semanas", conta ao Expresso.

No caso de Clayton, ficou a conhecer o projeto através de um colega de trabalho. Com 22 anos, aderiu à Worldcoin há quatro meses mas desde os 19 anos que investe em criptomoedas. Diz já ter ganho 240 euros desde que permitiu a digitalização da sua íris no centro comercial do Campo Pequeno.

Alguns dos jovens que aderiram à Worldcoin mencionam a falta de informação e conhecimento por parte dos próprios colaboradores. “Durante o processo não te explicam nada, até porque [os colaboradores] pareciam pessoas que sabiam menos que nós. O pouco que perguntei também não sabiam responder muito bem”, conta Ísis, de 23 anos. O mesmo aconteceu com Catarina - “ninguém te diz os riscos ou explicam muito bem do que se trata.”

Nas redes sociais, há quem partilhe a sua experiência com a Worldcoin, afirmando que a digitalização da íris já rendeu várias centenas de euros.

Outros procuram comprar as tais criptomoedas alegando que no “futuro podem vir a valer muito mais” - no Facebook, por exemplo, há grupos destinados à compra e venda de worldcoins.

Cresce a procura por grupos de compra e venda de worldcoins no Facebook

Worldcoin é alvo de investigações em vários países

Os responsáveis pelo projeto têm glorificado o seu sucesso, mas as práticas da Worldcoin têm levantado várias dúvidas quanto à proteção dos dados dos utilizadores. Apesar de os responsáveis garantirem que os dados biométricos são automaticamente eliminados após a digitalização da íris de cada utilizador e a formação do World ID, até à data não existe nenhuma entidade independente que comprove que o projeto cumpre com a destruição e segurança dos dados.

Nunca vamos vender nem monetizar de qualquer forma os dados dos nossos utilizadores", reforça Ricardo Macieira ao Expresso, mas os riscos associados à possibilidade de ocorrer um ataque informático contra a Worldcoin são cada vez mais uma preocupação. Vários países do mundo têm conduzido investigações para analisar as práticas da Worldcoin quanto à privacidade dos utilizadores.

Em Hong Kong, o Gabinete do Comissário para a Privacidade de Dados Pessoais (PCPD) anunciou que estava a decorrer uma investigação sobre a ação da Worldcoin no país. O PCPD afirmou que a presença deste projeto representa sérios riscos para a privacidade dos dados pessoais” dos utilizadores e alertou a população para se informar antes de ceder dados biométricos à Worldcoin.

Na Europa, as agências de proteção de dados de países como França e Reino Unido têm recebido reclamações quanto aos riscos que os utilizadores correm ao ceder os seus dados biométricos. Em Espanha, a Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD) está a investigar a ação Worldcoin no país e já proibiu a recolha de imagens da íris por parte da empresa.

Em Portugal, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) revelou já ter recebido “algumas queixas relacionadas com a recolha de dados biométricos de menores” na Worldcoin. A Comissão garante que as queixas “serão relevantes” na hora de tomar uma decisão e apela a quem tenciona ceder os seus dados biométricos, a ler “atentamente as condições do tratamento de dados” e a refletir "sobre a sensibilidade dos dados que estão a fornecer”.

Investigações não preocupam quem aderiu à Worldcoin

As investigações à Worldcoin não parecem intimidar quem cedeu, de livre vontade, os seus dados biométricos em troca de criptomoedas. Alguns jovens desvalorizam a situação e comparam os dados cedidos à Worldcoin aos dados que são partilhados com o Google, o Facebook ou com outras plataformas na internet.

“A conclusão que tiro é que nada está seguro. Porque até os dados fornecidos às empresas de telecomunicações ou bancos podem ser alvo de ataques informáticos”, afirma Clayton. Também Catarina partilha uma visão semelhante: “não sinto que os meus dados estejam 100% seguros mas se formos a ver, muitas vezes, introduzimos os nossos dados em sites piores.”

Clayton, Ísis e Catarina, admitem ao Expresso, que não se arrependem de ter cedido os seus dados biométricos à Worldcoin e que, provavelmente, voltariam a fazê-lo outra vez.

Como funciona?

“Construir a maior rede financeira e de identidade do mundo” é o lema da Worldcoin, o projeto gerido pela Tools for Humanity e co-fundado por Alex Blania e Sam Altman, criador da OpenaAI e responsável pelo famoso ChatGPT. Em 2022, Portugal foi o país europeu escolhido para testar a versão beta, que promete revolucionar o mundo da tecnologia e das criptomoedas. As longas filas que se formam em redor de esferas metálicas brilhantes parecem evidenciar a força que o projeto ganhou em poucos anos.

A startup americana, com sede nos Estados Unidos e Alemanha, pretende criar uma identidade global digital com recurso a dados biométricos, nomeadamente, a íris ocular de cada utilizador. Ou seja, consiste numa forma de distinguir entre humanos e bots de Inteligência Artificial, já que a íris é exclusiva de cada ser humano.

A identidade digital do projeto é conhecida como World ID e é referido que funciona como um “passaporte digital”. Para criar essa identidade, a pessoa interessada deve descarregar a World App, indicar o seu número de telefone ao colaborador da Worldcoin e em seguida proceder à digitalização da sua íris através de uma “orb”, a tal esfera metálica brilhante que parece saída de um filme futurista. Em troca, a Worldcoin oferece aos novos utilizadores um determinado número de tokens (criptomoedas) que têm o mesmo nome do projecto (worldcoins ou, na sigla, WLD).

O projeto de Sam Altman oferece cerca de 10 tokens a cada utilizador pela sua íris. À data deste artigo, cada token equivalía a cerca de nove dólares (quase nove euros) mas pode sofrer alterações consoante o mercado das criptomoedas, a popularidade do projeto e do seu fundador. As mais recentes notícias sobre Altman e o lançamento do projeto SORA da OpenAI, fizeram disparar o valor de cada WLD que sofreu um aumento superior a 200% em apenas 15 dias, de acordo com a revista “Exame. Para além dos iniciais tokens recebidos após o registo, cada utilizador recebe três worldcoins a cada duas semanas e se conseguir convencer alguém a aderir ao projeto, recebe um total de 25 worldcoins extras.

Segundo a página oficial da Worldcoin, o projeto conta com mais de quatro milhões de inscrições World ID em todo o mundo com utilizadores de 120 nacionalidades diferentes. Atualmente, a startup tem um total de 2.000 orbs espalhadas por 36 países, onde é possível fazer a digitalização da íris.

Artigo de Mariana Jerónimo, editado por Pedro Miguel Coelho

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