Geração E

O limite das fantasias — o alegado caso dos homens que violaram em grupo uma menor no Metaverso

O limite das fantasias — o alegado caso dos homens que violaram em grupo uma menor no Metaverso

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

Um grupo de gajos (não peço desculpa pelo uso deste termo, diria o mesmo para ‘gajas’, se a intenção fosse demonstrar desprezo) organizou-se, para violar uma menor em realidade virtual. Tiveram de planear. Um grupo de gajos teve como intenção violar virtualmente uma rapariga. E violou, alegadamente

No início deste ano, foi notícia, comentada por Nacy Jo Sales, que a polícia britânica está a investigar o caso de uma menor, de 16 anos, que foi, alegadamente, sujeita a uma violação em grupo no Metaverso, software de realidade virtual.

“Realidade Virtual”. Repito: “REALIDADE virtual”. Pese embora este meu destaque, pretendo tentar ter uma posição de afastamento e tranquilidade — aviso desde já que irei falhar. Analisemos, então, algumas grandes questões que, a meu ver, nos podem surgir a partir deste alegado acontecimento.

(Acredito que muita gente possa achar que há assuntos mais importantes a tratar, mas a verdade é que este caso pode ser usado como um estudo para o futuro da realidade virtual, ainda por cima quando a própria Meta considera que o Metaverso é o futuro da interação social online.)

Mas não seria bem pior se fosse uma violação real?

Óbvio que entre escolher queimar o braço com óleo de fritar a ferver ou ser sugada por um vulcão em erupção, arrisco-me a dizer que, a tendência seria escolher a primeira opção. No entanto, tal não faz com que fritar um pouco o braço involuntariamente não se encontre, algures na escala de experiência humana, entre o chato e o horrivelmente doloroso. (Mesmo que fosse voluntário, o que seria um caso de estudo psicológico, continuaria a ser doloroso, sejamos francos). Pois bem, aqui não estamos a falar de uma queimadura acidental, mas sim de um grupo de gajos (não peço desculpa pelo uso deste termo, diria o mesmo para ‘gajas’, se a intenção fosse demonstrar desprezo) que se organizou, para violar uma menor em realidade virtual. Tiveram de planear. Um grupo de gajos teve como intenção violar virtualmente uma rapariga. E violou, alegadamente.

Este tipo de normalidade em combinar uma atrocidade destas insere-se no movimento de “Rape Culture”: um contexto/ambiente em que a violação está prevalente e em que a violência sexual está normalizada e é regularmente desculpada nos media e no dia-a-dia. Coisas como “ela estava a pedi-las”, ou “não tivesse ido para casa dele”, ou “com aquela roupa estava à espera de quê”, inserem-se neste contexto. O grupo de homens pode nem ter percebido o impacto que as suas ações poderiam ter, mas isso não faz com que tenha sido menos impactante para a menor. Eles tinham a intenção de violar em grupo, numa tentativa provável de satisfazer uma fantasia (isto, claro, alegadamente).

Mas é só um jogo, Clara, não é a realidade…

A partir do momento em que a vítima tem o impacto de um trauma assim, sente-o, di-lo, então o trauma é real. Não há realidade paralela mais envolvente e imersiva do que a realidade virtual: é o mais próximo de vivenciarmos algo longe da nossa realidade sem sair do sítio. Se, hoje em dia, o bullying online já é considerado mundialmente um problema, por que não percecionar esta alegada violação como um véu que mostra os possíveis problemas futuros?

Por outro lado, podemos trazer para cima da mesa outras experiências com jogos. Começando por um simples: o “Sims”. Acho que toda a gente que já jogou “Sims” já encurralou um Sim para morrer, pondo-o a nadar e tirando-lhe a escada, ou semelhante. No entanto, os Sims são personagens, players, não são avatares de outros jogadores reais. Além disso, o software não permite violações. Sabemos que jogar “Sims” é como brincar às bonecas, mas vendo a ação a desenvolver-se, sabemos o que é possível de acontecer.

Se analisarmos jogos em que cada jogador é mesmo uma pessoa em sua casa, podemos ir buscar o exemplo de “Call Of Duty”, como refere Jo Sales, aquando da análise de um comentário à notícia da alegada violação. Neste jogo, as personagens, jogadas por pessoas reais, podem ser mortas, e tal não é motivo para porem um processo em tribunal por homicídio virtual. No entanto, toda a gente que vai jogar “Call of Duty” sabe que é expectável ser morto a alguma altura, faz parte do jogo. Ser violada virtualmente não vem da descrição do Metaverso…

“Neste universo de realidade virtual, pode interagir com pessoas de todo o mundo, ir a concertos, fazer vendas e ser violada em grupo por outros utilizadores, mesmo que vocês sejam menores e os violados sejam homens adultos!”

Por isso, não, não é a mesma coisa. Se um comentário a dizer “Essa barriga está a ficar grande, devias emagrecer” ou “Já não tens idade para usar esse tipo de roupa” pode magoar mesmo alguém, quanto mais ser violada numa realidade virtual, ainda por cima sendo uma adolescente com 16 anos.

Sobre o impacto psicológico que uma vivência destas pode comportar, James Cleverly, UK Home Secretary, afirmou ao New York Post: “Eu sei que é fácil descartar isso como não sendo real, mas o objetivo desses ambientes virtuais é que eles são incrivelmente envolventes”.

Terão as fantasias limites?

Se um grupo de homens se organiza para violar uma menor, mesmo que em realidade virtual, antes de tudo acredito que havia uma fantasia comum, tendo eles encontrado um meio de, como quem diz friamente, a testar. Não é difícil perceber a imensidão de kinks de fantasia, basta ir ao menu de um site pornográfico banal. Ora, foi mesmo isso que fiz, fui ao Pornhub perceber que tipo de vídeos havia por lá. Fiquei horrificada com os temas dos vídeos, tais como, “Stepdad teaches school girl”.

Ora, se é verdade que podem existir inúmeras fantasias, a verdade é que na pornografia não estamos numa interação em tempo real com as pessoas, tratam-se de vídeos a que se assiste passivamente, sem capacidade de interação. Os atores/atrizes/performers não estão à mercê do espectador, muito menos sem consentimento.

Assim sendo, o caso de uma violação em realidade virtual, em que uma menor de 16 anos é encurralada e violada em grupo por homens adultos não pode ser equiparada ao uso de pornografia. No entanto, podem estar correlacionadas: se as fantasias destes homens são inapropriadas de transpor para a realidade — repare-se no exemplo acima referido de “Stepdad teaches school girl”— e podendo haver o hábito da masturbação com base neste tipo de atmosfera pornográfica, poderemos dizer que o consumo desde tipo de conteúdo pode levar a um nível de normalização de atos sexuais desajustados da realidade, eliminando assim o valor do consentimento? Isto, porque, estando um vídeo pornográfico disponível numa plataforma, não precisamos de enviar um email aos participantes para obter a sua autorização por escrito, vemos e pronto.

Assim, a realidade era virtual, mas a intenção real. De forma a percebermos a complexidade da falta de noção de realidade que vai, alegadamente, na cabeça daqueles gajos, imaginemos que estão num encontro num bar. Estão a beber um copo, a conversa aquece e vocês perguntam “qual é a tua fantasia sexual?” e a resposta que recebem é “adorava juntar um grupo de amigos e violar uma miúda”, ou “imaginar-me a violar uma miúda em grupo com os meus amigos, dá-me tesão.” Qual seria a vossa reação? Eu fugia.

Por que raio é que um software permite violações?

Por último, é importante perceber como é que um software tão imersivo como o Metaverso permite violações. Já em 2008, McLuhan e Fiore, em “The Medium is the Massage”, afirmavam que as sociedades foram sempre mais definidas pela natureza da sua forma de comunicação do que pelo conteúdo da informação, sendo impossível entender as mudanças sociais e económicas sem perceber como funcionam os meios de comunicação. (pág. 8). Ora, se o futuro da experiência virtual social são estes universos digitais, não deveríamos estar a preparar-nos para criar espaços seguros para toda a gente? Como delinear leis em regime de Metaverso, já que os avatares são pessoas reais?

Para concluir, tenho um comunicado para toda a gente que está, ou já considerou, pôr as suas fantasias de violação no Metaverso, ou outras realidades virtuais:

É o perigo que vos dá tesão? Vão jogar paintball.

É o desafio que vos dá tesão? Vão com um grupo de amigos a uma escape room.

Mas se é o não consentimento que vos dá tesão, então alguma coisa está mal.

Sabem o que começa também com “T” para além de “tesão”? Terapia. Tratem-se.

Mais notícias sobre o caso

The Guardian: A girl was allegedly raped in the metaverse. Is this the beginning of a dark new future?

The Hindu Bureau: Virtual gang rape reported in the Metaverse; probe underway

Euronews: British police launch first investigation into virtual rape in metaverse

Deccan Herald: 16-year-old's virtual avatar gang-raped in metaverse, UK police begins probe

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate