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“(Nós) na cabeça”: Portugal vence em Cannes com uma curta-metragem que custou apenas €5,49

“(Nós) na cabeça”: Portugal vence em Cannes com uma curta-metragem que custou apenas €5,49
João Castro

O Festival de Cannes recebeu os três vencedores da competição do Tiktok para curtas-metragens e “(Nós) na Cabeça” foi premiada com Melhor Argumento (Best Script). O novo filme de 2 minutos e 39 segundos realizado por Lucas Dutra custou apenas €5,49 - o preço das pilhas para o gravador. O elenco conta com Madalena Aragão, Carla Chambel e Luísa Ortigoso

“Tiktok”, “curta-metragem” e “portuguesa”. Onde é que estas três palavras se encontram? Em Cannes, num dos mais prestigiados festivais de cinema do mundo que abriu, pelo segundo ano consecutivo, a janela digital que dá acesso à plataforma das “dancinhas”. Quem a categoriza assim é Lucas Dutra, o jovem português que, fugindo a este “típico conteúdo de alineação”, realizou a curta-metragem “(Nós) na Cabeça”, partilhada na integra no Tiktok, que acaba de ganhar o prémio de Melhor Argumento (Best Script). Depois de conseguir visualizações suficientes para entrar na verdadeira corrida, chega ao Festival de Cannes, onde ganhou um dos três prémios monetários. Em entrevista ao Expresso, antes de apurados os resultados, Lucas Dutra prespetivava: “Para nós, seria muito fixe”, colocando-se na segunda pessoa do plural, ao lado da coargumentista e atriz, Madalena Aragão.

Essa janela assume agora dimensões verticais, sem grande margem panorâmica como aquilo a que o cinema tradicional habituou. A rotação faz-se a 90º e o espectador é levado a espreitar para um determinado momento da vida de um vizinho - ou vizinha, Luísa, a protagonista a quem Madalena Aragão veste a pele. “Somos largados no meio da narrativa”, explica ao Expresso Lucas Dutra, acrescentando: “Não se sabe de onde viemos, nem para onde vamos”. Mas embora não saiba, pelo menos para já, onde esta curta-metragem o leva, sabe onde com ela quis chegar nos seus 2 minutos e 39 segundos de argumento – um condensar que ganhou cunho de “maior desafio” aquando da realização. Esse lugar é Cannes, onde decorre, até 27 de maio, a 76ª edição do Festival.

Tiktok: uma perigosa arma de criação artística?

“De repente”, como é próprio da plataforma de entretenimento instantâneo, “um festival destes”, que para Lucas Dutra representa o “expoente máximo de realizador”, fica à distância de um vídeo numa rede social. E foi no Tiktok que Cannes, o epicentro do “conceituado cinema francês de autor” decidiu regar a já sementada cultura cinematográfica. Madalena Aragão entra em cena: “Há atores que por terem exposto o seu trabalho no Tiktok, ainda que em coisas pequeninas, fazem hoje parte de elencos de séries transmitidas em plataformas de streaming”, conta. “São dadas mais oportunidades a quem tem fome de fazer”.

Essa fome, transformada em vontade, pagou uma mão-de-obra que juntou ainda as atrizes Carla Chambel e Luísa Ortigoso, o diretor de fotografia Miguel Jesus, o operador de som João Castro e o compositor do tema original Eduardo Queiroz. “De repente”, Lucas Dutra vai repetindo este casamento entre preposição e substantivo, “as curtas podem ser filmadas com equipamento nosso, não exigem uma câmara de 50 mil euros ou 50 mil técnicos”. E todo o investimento de que precisou para a materializar foi os €5,49 que gastou na compra de umas pilhas para conseguir pôr o gravador a funcionar. “Trata-se de uma acessibilidade que antes não existia”, continua.

Pode esta tornar-se uma categoria dos Óscares? O Expresso passou a bola aos coargumentistas e a resposta foi comum: um “sim” seguido de um “acho” ainda que Lucas Dutra tenha acrescentado: “Se já chegou a Cannes...”. As reticencias que colocou no ar sugerem a pergunta: Tudo é possível?

Tiktok Short Film Competition. Pode esta tornar-se uma categoria dos Óscares? O Expresso passou a bola aos coargumentistas e a resposta foi comum: um “sim” seguido de um “acho” ainda que Lucas Dutra tenha acrescentado: “Se já chegou a Cannes...”. As reticencias que colocou no ar sugerem a pergunta: Tudo é possível? Ainda não. “Seja como for, ficámos muito felizes com o resultado”, diz. Ainda – porque se há uns anos diria ser impossível o Festival de Cannes chegar ao Tiktok, “de repente” aconteceu, ainda que numa altura em que o seu acesso é cada mais limitado ou até proibido em várias latitudes do globo.

Parece paradoxal, mas Madalena Aragão acredita que “as redes sociais estão a ganhar uma dimensão importante” e dentro ou fora do Tiktok - ainda que seja, para os dois artistas, um tanto preocupante a proporção de espaço que a plataforma tem vindo a perder - “enquanto houver oportunidade é de aproveitar, mas é preciso ir ao encontro da evolução”.

A polissemia em “Nós”

De regresso à janela vertical que se abre, do outro lado começa por se assistir ao encontro do “Nós”. É Luísa, de frente para um pôr do sol e ao lado de uma outra personagem, extrato da sua imaginação - o amor. Mas pode uma personagem ser verdadeiramente secundária quando representa parte da protagonista? A questão ecoa e esvanece. Nestes primeiros segundos de narrativa, essa revelação ainda não está ao descoberto. “O espectador ganha clareza na escuridão” explica Lucas Dutra, “as ideias ficam mais claras, e o dia fica mais escuro”.

Um jogo de cor trabalhado ao mesmo tempo que Eduardo Queiroz treinava ao piano. Uma sinergia que, voltando ao jovem realizador, “casou muito bem” com as falas ritmadas entre curtas pausas, intercalando-se na melodia em crescendo.

Nesse primeiro de quatro planos, desconstruídos num degradê inverso de cores, Luísa, acompanhada de si mesma, termina o diálogo-monólogo falando do tempo. Ou melhor, na falta desse que, no substrato desta narrativa, é composto por breves instantes – ainda assim, suficientes para destrancar o conflito.

Sem apresentações, as restantes personagens apresentam-se. Uma avó, protagonizada por Luísa Ortigoso, de uma ignorância preocupada por vir de uma geração durante a qual pouco ou nada se ouvia falar de saúde mental. Em grande contraste, está uma mãe (Carla Chambel) que, num suave salto, ganha um plano só seu. Fuma as mesmas palavras onde procura conforto, por saber que a felicidade de Luísa, sua filha, é uma mera consequência. Do quê? A protagonista volta a aparecer em correria. Antes, desenha no seu rosto um sorriso para ninguém. O espectador já não vê o imaginário – esse agora está apenas nos nós da cabeça. A opacidade ganha transparência: Luísa sofre de uma doença mental, esquizofrenia.

Corre pela rua, nos mesmos pés de uma geração que vive correndo atrás de um prejuízo imaginário. Licenciaturas atrás de mestrados, mestrados atrás de doutoramentos, doutoramentos atrás de um mercado de trabalho difícil. Lucas Dutra desconstrói o processo criativo, chegando ao cerne do enredo: “Voltamos sempre a esta notícia: um em cada cinco estudantes sofre de uma doença mental. É um bocadinho assustador”.

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A palavra “assustador” surge colada à proximidade que sentem ao olhar para estes números – que não são tão somente números, são pessoas, jovens como Lucas e Madalena. Isso fez com que, segundo o realizador, procurassem na curta-metragem mostrar “uma cozinha normal, de uma casa normal, situada num bairro normal, onde vive uma família normal”.

É ao gerar essa ligação com o espectador através de elementos comuns, que procuram também encurtar uma distância fruto de um estigma que Lucas Dutra descreve, em tom de desabafo artístico, existir dentro de portas portuguesas: “Tudo o que é bom lá fora, é bom aqui. Mas até que digam lá fora que é bom, cá não vale nada”. Até que “lá fora” atribuam um valor a “(Nós) na Cabeça”, é necessário que “dentro” da plataforma Tiktok a nota seja positiva.

Fechadas as inscrições dia 29 de março, as curtas-metragens a concurso ficaram nas mãos populares que determinaram a lista dos 40 pré-selecionados - aqueles com maior número de visualizações, gostos e partilhas. Dessa lista, um painel de júris escolhidos pelo Tiktok escolheu os vencedores - e um deles foi a curta-metragem portuguesa. Os prémios, entregues no Festival de Cannes, dividem-se em três: O Grande Vencedor, que receberá um valor monetário de apoio à criação de 10 mil euros. O Melhor Argumento e a Melhor Realização recebem um montante de 5 mil euros cada.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mortigaodelgado@gmail.com

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