Exclusivo

Economia

Inflação dá sinais de vida mas não assusta economistas (nem bancos centrais)

Inflação dá sinais de vida mas não assusta economistas (nem bancos centrais)
Erica Canera/Bloomberg/Getty Images

Subida dos preços tem vindo a acelerar, sobretudo nos Estados Unidos, e mais ligeiramente na zona euro. Economistas consideram que não há razão para alarme, porque o aumento da inflação é temporário, associado à recuperação da crise pandémica. Reserva Federal dos Estados Unidos e Banco Central Europeu mantêm rota comum de apoio à economia

Inflação dá sinais de vida mas não assusta economistas (nem bancos centrais)

Carlos Esteves

Jornalista infográfico

É um valor que não era visto nos Estados Unidos desde o Verão de 2018. Em março deste ano a inflação atingiu 2,6% - medida pela variação homóloga do Índice de Preços no Consumidor - e o tema da subida dos preços saltou para a ribalta. Há razões para alarme? Estamos perante um sobreaquecimento? Os economistas ouvidos pelo Expresso consideram que não, apontando que a aceleração dos preços é um fenómeno temporário, associado à recuperação da crise pandémica. Mais ainda, destacam que na Europa, onde o aumento da inflação se fez sentir de forma bem mais ligeira, permanecendo num patamar baixo, a questão não coloca.

Comecemos pelos números para perceber o que está em causa. Depois de abrandar até quase zero na Primavera do ano passado, acompanhando a primeira vaga da pandemia de covid-19 e a queda da atividade económica na sequência das medidas de restrição à mobilidade para a combater, a inflação nos Estados Unidos tem vindo sucessivamente a subir e atingiu 2,6% em março deste ano, o que compara com 1,7% em fevereiro.

O que explica esta aceleração? Sobretudo os preços dos bens energéticos e dos bens alimentares, que são mais voláteis, indicam os dados do U.S. Bureau of Labor Statistics. Em março e face a um ano atrás, os preços no consumidor dos bens energéticos subiram 13,2% - com o aumento nos combustíveis rodoviários a ultrapassar os 20%. Quanto aos bens alimentares, o incremento foi de 3,5%.

Como resultado, o indicador de inflação subjacente - que exclui estas duas categorias de bens e é um indicador de referência para os economistas e para os bancos centrais - ficou nos 1,6% em março nos Estados Unidos, ainda que também tenha subido face aos 1,3% registados em fevereiro.

Quanto à zona euro, também se tem registado uma subida dos preços, mas a inflação permanece em valores muito mais modestos do que nos Estados Unidos.

Em março, a variação homóloga do Índice Harmonizado de Preços no Consumidor (IHPC) na zona euro chegou aos 1,3% - o valor mais alto desde o início da pandemia -, o que compara com 0,9% em fevereiro, indicam os dados do Eurostat. Recorde-se que só em janeiro a inflação na zona euro saiu de território negativo, onde se manteve durante cinco meses consecutivos.

Tal como nos Estados Unidos, os bens energéticos têm um papel importante nesta subida, com um incremento de 4,3% em março, o que compara com -1,7% em fevereiro.

Olhando para o indicador de inflação subjacente - que, segundo a definição do Eurostat, exclui os bens alimentares não processados e os bens energéticos - a subida dos preços na zona euro em março ficou nos 1%. Um valor até abaixo de fevereiro (1,2%) e de janeiro (1,4%).

Em Portugal, a inflação medida pela variação homóloga do IHPC, registou em março um dos valores mais baixos da zona euro, ficando pelos 0,1%. Considerando não o IHPC - a referência na Europa - mas o Índice de Preços no Consumidor, o valor é um pouco mais alto, mas ainda assim, muito modesto, nos 0,5% em março e inalterado face a fevereiro.

Mais ainda, o indicador de inflação subjacente registou uma variação homóloga de apenas 0,1% em março, recuando 0,6 pontos percentuais face ao valor de fevereiro.

E agora? Como vai evoluir a inflação? Os economistas ouvidos pelo Expresso consideram que pode continuar a aumentar, mas que isso não é razão para alarme, sobretudo na Europa. Isto porque esse aumento tem uma natureza temporária, associada à recuperação da crise pandémica e aos estímulos para apoiar a retoma, apontam.

"A inflação tem vindo a subir devido ao efeito de base associado ao aumento do preço do petróleo, que tinha caído muito em 2020, e a fatores temporários específicos nalguns países, relacionados com a recuperação da pandemia", considera Márcia Rodrigues, economista do Millennium bcp.

E lembra que esse efeito sente-se particularmente nos Estados Unidos, "onde a recuperação económica está mais avançada e os estímulos orçamentais têm sido mais agressivos". Já na zona euro "a inflação está muito mais baixa".

Também Pedro Brinca, economista e professor da Nova SBE, frisa que nos Estados Unidos "a resposta orçamental foi muitíssimo mais forte do que na zona euro, chegando a cerca de 19% do PIB, já incluindo algumas novas medidas do Presidente Biden". Ora, "respostas orçamentais desta magnitude têm levantado questões acerca do surgimento da inflação e da necessidade de uma resposta ao nível da política monetária convencional", alerta.

Num artigo de opinião publicado há poucos dias no The New York Times, Paul Krugman, economista e laureado com o Nobel da Economia, reconhece que "é expectável assisitir a inflação acima do normal [nos Estados Unidos] este ano". Contudo, considera que "será apenas um blip", ou seja, um pequeno sinal sonoro, desvanecendo-se em seguida.

Lembrando que tal parte da subida da inflação ficará a dever-se aos preços mais voláteis da energia e dos bens alimentares, Krugman considera que pode haver um "aumento transitório da inflação subjacente", mas defende que "isso não representa um problema mais profundo". Tudo porque a recuperação da crise pandémica significa que podem surgir "blips" nos preços de outos bens, para além da energia e dos produtos alimentares, seja por efeitos de base - recuperação de preços muito penalizados durante a pior fase da pandemia - seja por alguns constrangimentos temporários, como a escassez de contentores no comércio internacional.

Fenómeno temporário

Temporário é mesmo, neste contexto, uma palavra-chave e uma das mais ouvidas pelo Expresso junto dos economistas a propósito da aceleração dos preços.

A subida da inflação "é um fenómeno temporário, resultante de efeitos de base (por exemplo, os preços da energia que desceram muito em 2020), de alteração da composição do cabaz de compras (sobretudo na União Económica e Monetária), alterações fiscais (o IVA desceu em 2020, na Alemanha) e também algumas restrições nas cadeias de oferta", salienta Paula Carvalho, economista-chefe do BPI. E considera que "nos Estados Unidos a inflação pode mesmo vir a ultrapassar os 3% temporariamente e na zona euro os 2%". Mas, "em 2022 espera-se que desça de novo", vinca Paula Carvalho, apontando que "o fenómeno é semelhante em Portugal, mas menos intenso".

Em suma "avaliamos este movimento como sendo temporário e os bancos centrais têm repetidamente afirmado que também o encaram desta forma, sem riscos de relevante alteração de tendência", vinca Paula Carvalho.

Bruno Fernandes, economista do Santander, aponta no mesmo sentido: "O crescimento da inflação não resulta de um fenómeno de subida generalizada dos preços, mas sim de situações pontuais que ocorreram durante o espoletar da pandemia, como as oscilações sobre o preço das matérias primas e a redução do IVA por 6 meses na Alemanha. Neste sentido, à medida que estes efeitos se dissipem, a taxa de inflação deverá retomar o seu padrão de crescimento lento". E reforça: "Não se verifica um movimento de subida generalizada no cabaz de preços no consumidor. O economista aponta ainda que "é notório que o efeito da pandemia está a influenciar o próprio cabaz de consumo, levando a que a relevância de cada uma das componentes do cabaz seja distinta em 2021 face a 2020".

Márcia Rodrigues não destoa: "O aumento da inflação deve ser visto à luz deste contexto de recuperação da crise pandémica, está a evoluir de forma controlada e não me parece que haja razões para alarme". E considera que "alguma inflação não é necessariamente negativa. Faz parte de períodos de forte crescimento económico, como se espera para 2021 e 2022".

Acresce que inflação subjacente "está baixa, tanto nos Estados Unidos, como na Europa", aponta Márcia Rodrigues. E este é o indicador de referência para os economistas e para os bancos centrais. "A grande preocupação dos bancos centrais é quando a inflação subjacente começa a subir, porque é um sinal de que se está a tornar o que os economistas chamam de sticky (viscosa)", destaca. Ou seja, em que a aceleração dos preços pode assumir um caráter mais prolongado no tempo.

Bruno Fernandes lembra que "o atual sentimento de espiral inflacionista contrasta com o sentimento de deflação, vivido há uns anos atrás". Ora, "tanto agora como no passado, os movimento da inflação são decorrentes de efeitos pontuais do lado da procura, que não são suportados por movimentos do lado da oferta, como por exemplo a subida dos custos unitários do trabalho, o preço da energia ou um contexto de pleno emprego". Tradução: são sentimentos que não são suportados pela realidade.

Também Paula Carvalho considera que "não há razões para alarme" com a subida da inflação. Isto porque "os hiatos do produto ainda são negativos. Por outras palavras, as economias estão ainda a operar abaixo do seu potencial e o mercado de trabalho tem ainda folga significativa".

Paula Carvalho lembra, por exemplo, que "algumas estimativas para a taxa de desemprego em sentido lato nos Estados Unidos colocam este indicador nos 11%, bem acima dos níveis oficiais". Ao mesmo tempo, na zona euro, "também se reconhece que o mercado de trabalho está muito suportado pelas medidas de apoio ao emprego mas que poderá haver deterioração quando estas forem retiradas".

Pedro Brinca faz também uma análise pelo hiato do produto - ou seja, quão abaixo estará o Produto Interno Bruto (PIB) dos diferentes países em relação à capacidade das respetivas economias de gerar riqueza -, para medir o impacto que os pacotes de apoio à economia podem ter na evolução dos preços. O PIB na União Europeia (UE) contraiu 6,4% em 2020, "se assumirmos que a tendência, sem a pandemia, teria sido crescer a cerca de 2,6% ao ano, isto daria um hiato de cerca de 9%", ainda que haja incerteza sobre esse número, reconhece.

Tendo em atenção que o PIB da UE-27 foi em 2019 de cerca de 14 triliões de euros, aplicando uma taxa de crescimento de 2,6% ao ano, daria um PIB Potencial para 2020 de 14,35 triliões de euros e de 14,7 triliões de euros para 2021, indicam os cálculos de Pedro Brinca. Ora, "o plano de recuperação Next Generation EU é de 0,75 triliões de euros, pelo que não será por aí que virá especial pressão sobre os preços, uma vez que isto representa apenas cerca de 5% do PIB da UE e é suposto ser gasto em vários anos. Mesmo dividido pelos 3 anos iniciais, dará menos de 2% do PIB ao ano", argumenta o economista.

Assim, "o fator mais determinante serão porventura os défices orçamentais das respetivas economias", defende Pedro Brinca, lembrando que o Banco Central Europeu (BCE) prevê que em 2021 os défices da zona euro atinjam cerca de 6,4% do respetivo PIB. "Assumindo (porventura por excesso) o mesmo número para a UE, ainda estaríamos longe dos 9% do hiato do produto anteriormente referido", frisa.

"Neste contexto e com base nas previsões dos défices orçamentais para 2021, é difícil sustentar a ideia de que os estímulos orçamentais são excessivos e que levarão decerto a um ressurgimento da inflação de forma acentuada na União Europeia", vinca Pedro Brinca. Mas, deixa um alerta: "Não obstante, os efeitos da mesma podem ser dramáticos se levarem à necessidade de intervenção do BCE e de um aumento das taxas de juro, após uma década em que os agentes económicos estão habituados a taxas de juro estáveis e bastante baixas". Neste sentido, "importa fasear os estímulos orçamentais e ter a capacidade de ajustar os estímulos à medida das necessidades", aconselha o economista, admitindo que "para os Estados Unidos, o perigo do surgimento de inflação seja bem mais real".

Apesar de também interpretar o fenómeno da subida da inflação como "temporário", António Ascensão Costa, professor do ISEG, considera "provável que venham a ocorrer outros aumentos localizados e uma evolução menos estável do que o habitual". E alerta: "A inflação pode tornar-se um problema se os aumentos de preços passarem a ser mais generalizados e ao nível da inflação subjacente e se as empresas interiorizarem a expectativa de que os preços estão a subir generalizadamente".

Bancos centrais não tremem no apoio à economia

A questão do surgimento de pressões inflacionistas é crucial porque, no limite, poderia levar um aperto da política monetária por parte dos bancos centrais, como a Reserva Federal dos Estados Unidos (FED) ou o BCE. Afinal, os seus mandatos indicam que devem atuar no sentido da estabilidade dos preços, ainda que no caso da FED haja um duplo objetivo: estabilidade de preços e pleno emprego. Ora, numa altura em que a retoma económica face à crise associada à pandemia de covid-19 ainda não está garantida, sobretudo na Europa, e a capacidade dos Governos manterem apoios orçamentais depende de as taxas de divida soberana permanecerem em patamares baixos, uma inversão da política monetária seria muito complicada.

Mas, os economistas ouvidos pelo Expresso descartam essa possibilidade. "O risco de este aumento da inflação poder levar a alterações de política monetária antes da economia se recompor é reduzido", defende Márcia Rodrigues. "A política monetária tem margem para acomodar esta subida da inflação", reforça, lembrando que nos Estados Unidos - onde a questão se pode colocar de forma mais visível do que na Europa - "a Reserva Federal reviu há alguns meses a estratégia de política monetária, passando a ter maior tolerância em relação a períodos temporários de inflação mais alta".

Paula Carvalho aponta no mesmo sentido: "Os bancos centrais têm reforçado a sua comunicação no sentido de explicar ao mercado que consideram este aumento de inflação temporário e que, dada a permanência de riscos ao crescimento, incerteza significativa e recuperação incompleta, não é ainda a altura de falar de retirada de estímulos".

Sinal disso, Jerome Powell, presidente da FED, reiterou publicamente, há pouco mais de uma semana, que a instituição "fará tudo o que pode para apoiar a economia pelo tempo que for necessário para completar a recuperação”.

Ao mesmo tempo, "o mercado parece também já ter incorporado esta realidade, pois as expetativas de inflação refletidas nas atuais cotações do mercado de dívida refletem aumento de inflação no curto prazo, mas descida nos horizontes mais longos", considera Paula Carvalho. Ou seja, "parece-nos que o mercado de dívida incorpora regresso a crescimento saudável, com taxas de juro mais elevadas, mas sem descontar riscos inflacionistas", vinca. Neste contexto, "os bancos centrais vão continuar o seu papel, tranquilizando os mercados, ajustando se necessário os seus instrumentos e permitindo que as políticas orçamentais cumpram a sua função de suporte ao crescimento e apoio na recuperação", defende Paula Carvalho.

Bruno Fernandes nota, até, que "o BCE não demonstra qualquer preocupação com a evolução da taxa de inflação, tendo deixado já isso bem claro, através das mensagens que os diferentes intervenientes vão fazendo". Neste sentido, "a politica monetária do BCE deverá manter-se inalterada ou expansionista enquanto as condições de contexto assim o exijam", considera o economista.

Ainda assim, "se a retoma prosseguir e vierem a ocorrer outras subidas de preços, mais generalizadas, e sobretudo ao nível do indicador de inflação subjacente, é provável que, no outono, a discussão se venha a intensificar", antecipa António Ascensão Costa. E remata: "No que respeita à área do euro o comportamento da inflação na Alemanha será decisivo, pelo peso do país e pelo seu trauma relativamente à inflação".

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: slourenco@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate